DISCUTIR | A Europa
Cooperação Judiciária Para Quem?
Na área da cooperação judiciária em matéria civil (e a opinião que aqui manifesto é pessoal, não vincula o Conselho Superior da Magistratura nem o Ministério da Justiça), o principal desafio que enfrenta a presidência portuguesa da União Europeia consiste em conciliar estas duas opções: globalizar, aprofundando o processo de unificação europeia, na medida em que isso melhore a vida dos cidadãos, em particular dos mais vulneráveis (incapazes, credores de alimentos, lesados); e impedir que a sociedade em que vivemos se torne totalitária, através do recurso a sistemas informáticos cada vez mais sofisticados, que permitem não só a troca de informação útil mas também a vigilância e a intrusão em áreas reservadas. Para isso é necessário seleccionar o que queremos unificar e o que não queremos, em função de princípios fundamentais comummente aceites.
No momento actual, perspectivam-se iniciativas legislativas ou reformulações, nas seguintes matérias da justiça civil: a transmissão electrónica de documentos em processos judiciais ou e-CODEX (comum à justiça penal); a protecção de adultos vulneráveis; o reconhecimento do estabelecimento da filiação; as obrigações alimentares; e a lei aplicável às obrigações extracontratuais. Sobre algumas destas matérias já existem Regulamentos, como é o caso dos alimentos (Regulamento N.º 4/2009) e da lei aplicável às obrigações extracontratuais (Regulamento N.º 864/2007 ou Roma II), cuja operacionalidade será estudada antes de se concluir pela necessidade de revisão. Sobre outras, poderão existir iniciativas legislativas futuras como sucede com a protecção de adultos vulneráveis e com o estabelecimento da filiação. No que diz respeito ao e-CODEX, a Comissão Europeia já elaborou uma proposta de Regulamento, cuja negociação no Conselho deverá ter início no primeiro semestre de 2021, durante a presidência portuguesa.
Por isso, começo por referir o e-CODEX, que consiste num sistema informático descentralizado, interoperável, de transmissão electrónica segura de documentos e actos entre Estados Membros. O sistema já funciona através do Portal Europeu de Justiça permitindo, por exemplo, a consulta de registos ou a busca de um advogado, noutro Estado Membro. O Regulamento N.º 2020/1783 (obtenção de prova, reformulado) (artigos 7.º e 8.º), e o Regulamento N.º 2020/1784 (citações, reformulado) (artigos 5.º e 6.º) prevêem que a transmissão de pedidos, actos e documentos, nomeadamente entre Tribunais dos Estados Membros, seja feita através do e-CODEX. Estes dois regulamentos reformulados, cuja aplicação terá início em 1 de Julho de 2022, conferem efeitos jurídicos aos actos transmitidos através do e-CODEX e estabelecem que os mesmos não podem ser recusados como meios de prova no processo, pelo facto de serem apresentados em formato electrónico.
Assim,
à medida que este sistema informático se torna parte integrante dos próprios sistemas judiciais dos Estados Membros, o seu funcionamento passa a fazer parte da garantia da independência do poder judicial,
que assenta no princípio da separação de poderes, essencial para assegurar o direito de todo o cidadão a um julgamento equitativo. Daí a necessidade de adoptar uma base legislativa para o funcionamento do e-CODEX que se adeqúe a estes princípios fundamentais. A proposta de texto do futuro Regulamento e-CODEX prevê que este sistema informático venha a ser gerido pela eu-LISA, a Agência Europeia para a Gestão Operacional de Sistemas Informáticos de Grande Escala no Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, cuja principal área de intervenção é a administração interna. Esta agência é responsável pela gestão operacional do Sistema de Informação de Schengen (SIS II), do Sistema de Informação sobre Vistos (VIS), do Eurodac, do Sistema de Entrada/Saída (SES), da DubliNet e do Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem (ETIAS), podendo-lhe ainda ser conferida a responsabilidade pelo desenvolvimento ou gestão operacional de outros sistemas informáticos de grande escala, no espaço de liberdade, segurança e justiça, incluindo sistemas já existentes, se tal estiver previsto nos actos jurídicos da União que regem esses sistemas (cf. artigo 1.º do Regulamento N.º 2018/1726). É o que sucederá com o e-CODEX, se o respectivo Regulamento for adoptado (artigo 9.º da proposta). Será então necessário identificar medidas que complementem os artigos 10.º a 12.º da proposta, para garantir o respeito pela independência do poder judicial, tais como: uma clara separação, no interior da eu-LISA, entre a gestão operacional do sistema informático relativo à Justiça e a gestão dos restantes sistemas relativos a áreas da administração interna; o dever da eu-LISA informar os poderes judiciais dos Estados Membros; auditorias à gestão operacional do e-CODEX feitas por órgãos do poder judicial; a participação do poder judicial nas decisões sobre a gestão do e-CODEX. O que pode implicar igualmente a revisão do Regulamento N.º 2018/1726, que criou a eu-LISA.
Já a revisão do Regulamento N.º 4/2009, sobre cobrança de alimentos, dependerá das necessidades que venham a ser identificadas pela Rede Judiciária Europeia em matéria civil e comercial. Entre outras, levantam-se questões como a necessidade de prever e atribuir valor probatório, à transmissão electrónica de pedidos (iSupport), a clarificação do artigo 43.º de modo a prever a cobrança antecipada das despesas com transferências bancárias, impedindo que sejam descontadas do valor da prestação de alimentos, ou a densificação do conceito autónomo de alimentos para evitar desigualdades de tratamento [cf. considerando (11) e Acórdãos C-120/79 e C-220/95].
Quanto ao Regulamento Roma II, sobre lei aplicável às obrigações extracontratuais, importa reflectir sobre dois preceitos: o artigo 28.º, que confere precedência à Convenção da Haia de 1971, sobre lei aplicável a acidentes de trânsito, quebrando assim a aplicação uniforme do regulamento e a previsibilidade que, neste caso, visa conferir aos lesados em acidentes de viação; e o artigo 1.º, n.º 2, al. g), que exclui a responsabilidade resultante de difamação, do âmbito de aplicação do regulamento.
Por último, poderão ter lugar duas iniciativas em 2022: um Regulamento em matéria de protecção de adultos vulneráveis (maiores acompanhados), que venha colmatar a reduzida adesão dos Estados Membros à Convenção da Haia de 2000, relativa à protecção internacional de adultos; e um Regulamento em matéria de reconhecimento do estabelecimento da filiação.