Brexit: e agora?
As relações Portugal – Reino Unido
Alterações no âmbito da aplicação da lei, segurança e resolução de disputas, das regras de concorrência, e de circulação de pessoas e acesso a profissões
Com o Reino Unido fora do mercado único e da união aduaneira, foram necessários mais de nove meses de esforço conjunto para se chegar a um acordo comercial que protege-se o essencial do relacionamento entre os dois blocos.
A proximidade geográfica, económica e social tornou urgente um entendimento, que sem dúvida foi muito desejado e contribuirá para um caminho comum de desenvolvimento, não obstante o cenário atual ser, significativamente, mais restritivo.
É assim muito importante, antes do mais, sublinhar que este acordo é bem-vindo, proporciona uma plataforma de entendimento futuro e minimiza os condicionalismos, inevitáveis, daqui para a frente.
Feita esta ressalva, importa dizer que este é um acordo feito em condições algo singulares, porquanto ele sucede um cenário de ampla liberdade nas relações comerciais. Ora um acordo comercial, usualmente, liberaliza o comércio entre países, o que neste caso não sucede, pois ele determina, outrossim, um conjunto de barreiras e limites a essa liberdade económica.
O acordo não vai tão longe quanto seria desejável sendo, por muitos, apelidado de “thin deal”; deixa muitas matérias para futura discussão e contém limitações que não podem ser menorizadas. Dito isto, julgo que deve ser visto como um bom ponto de partida, numa negociação que, na realidade, começa agora…
QUANTO À APLICAÇÃO DA LEI, SEGURANÇA E RESOLUÇÃO DE DISPUTAS
O acordo legitima uma extensa cooperação em três áreas principais: intercâmbio de informações e acesso a bases de dados; cooperação entre agências; e facilidade de extradição.
Está prevista a troca automatizada de DNA, impressões digitais e registo de veículos, bem como o acesso aos registos de identificação dos passageiros que viagem de ou para o Reino Unido, sujeito a salvaguardas sobre o uso e armazenamento da informação.
São estabelecidas relações de cooperação entre a Europol, a Eurojust e as autoridades competentes do Reino Unido, a fim de apoiar e reforçar a ação dos Estados-Membros e do Reino Unido na prevenção e combate à criminalidade grave, terrorismo e formas de criminalidade que afetam um interesse comum.
O Reino Unido deixa, contudo, de integrar estas entidades e não participará na gestão das agências ou terá acesso direto às bases de dados da Europol, como a SIENA (Secure Information Exchange Network Application).
O Reino Unido deixa igualmente de ter acesso ao Sistema de Informação Schengen de Segunda Geração (SIS II). Este é o maior e mais amplamente utilizado sistema de partilha de informações para segurança e gestão de fronteiras na Europa e funciona com base em alertas em “tempo real”.
No que se refere aos mecanismos de extradição, o acordo prevê um sistema acelerado, conhecido como “rendição”, que substituirá o Mandado de Detenção Europeu (MDE).
Relativamente à resolução de disputas, o acordo prevê a criação de mecanismos de resolução de conflitos “vinculativos”.
REGRAS DE CONCORRÊNCIA
Este foi, seguramente, um dos temas mais debatidos e de difícil consenso – o chamado “level playing field”. O acordo prevê que os dois blocos devem manter padrões idênticos a nível ambiental, fiscal, laboral e social, de forma a assegurar a inexistência de vantagens competitivas indevidas e que pudessem por em causa uma concorrência leal entre os agentes económicos.
Ficou previsto no acordo a criação de um mecanismo que permita a qualquer das partes aplicar sanções, quando a contraparte divergir na aplicação de regras comuns que assegurem o cumprimento destes princípios fundamentais.
Esta será uma matéria com enorme potencial de conflito, uma vez que a evolução futura dos padrões em qualquer das áreas em apreço, por qualquer das partes, terá de ser avaliada pela outra parte e suscetível de criar discordância quanto aos seus impactos.
Anunciam-se aqui razões para uma negociação constante entre a UE e o Reino Unido para proteger o acordo… sendo que a resolução de eventuais litígios será feita por um painel independente.
O Reino Unido fica obrigado a acompanhar as limitações comunitárias aos auxílios de Estado, ficando ambos os lados comprometidos a revelar os subsídios públicos que concedam ao setor privado.
Este é um tema muito importante e escrutinado no plano interno europeu entre Estados-Membros, sendo proibidos os auxílios de Estado que confiram uma vantagem económica aos beneficiários, suscetível de afetar as trocas comerciais entre os Estados-Membros, ou que favoreçam o beneficiário e que falseie ou ameace falsear a concorrência intracomunitária.
Ora justamente o que se pretende é que se preserve um ambiente de concorrência leal e efetiva, sem distorções que possam lesar as respetivas economias.
CIRCULAÇÃO DE PESSOAS E ACESSO A PROFISSÕES
O controlo fronteiriço é sem dúvida uma das consequências mais visíveis da saída do Reino Unido da União Europeia.
Com o acordo presentemente em vigor, estadias no Reino Unido que excedam os 90 dias, carecem da obtenção de um visto, interrompendo-se assim a liberdade de circulação, designadamente no que se refere à possibilidade de viver, estudar ou trabalhar.
O acordo define igualmente o fim do reconhecimento mútuo automático de qualificações profissionais, estando previsto um enquadramento, que terá ainda de ser trabalhado, para o reconhecimento das qualificações no futuro.
O sistema de imigração foi alvo de profundas alterações, estando assente numa avaliação de condições e competências – sistema por pontos -, que determinará se uma pessoa pode ou não estabelecer-se no Reino Unido.
No plano do ensino, o Reino Unido abandona o Programa Erasmus. Londres já anunciou o projeto “Alan Turing”, com uma dotação de 100 milhões de libras, que substituirá o atual programa europeu de intercâmbio.
Para Portugal, ter-se chegado a um acordo de comércio livre é, sem dúvida, muito importante. O Reino Unido é o nosso primeiro parceiro comercial fora da União Europeia, quarto mercado destino das exportações, e a principal origem de turismo. A continuação de uma relação económica próxima e com o mínimo de barreiras ao livre comércio e à circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, é essencial para a prosperidade da nossa economia.
Também é conhecida a significativa diáspora portuguesa presente no Reino Unido e uma forte presença de britânicos residentes em Portugal, nomeadamente no Algarve, em Lisboa, no Porto e na Madeira.
Com o Brexit, abriu-se um espaço de negociação permanente, daqui para a frente. Um caminho em que soluções políticas e técnicas terão de ser conjugadas para corrigir e preencher as falhas e ausências de um acordo que, reitero, só pode ser visto como um ponto de partida, mas nunca como um ponto de chegada.