A advertência no universo contraordenacional
No regime geral das contraordenações (RGCC[1]), ao contrário do regime penal, as sanções não prosseguem fins retributivo punitivos nem de ressocialização do infrator, mas antes e sobretudo conduzir o infrator ao cumprimento das regras, dissuadindo condutas ilícitas. Além disso, no RGCC afastamo-nos da análise do efeito de culpa ética, pela simples razão que o juízo de culpa se funda apenas na atribuição ao agente da responsabilidade social do facto.
Assim, a advertência devia assumir um papel fundamental para serem atingidos os objetivos acima enunciados. Com efeito, não nos encontramos no domínio da proteção de bens jurídico fundamentais, esses, sim, do âmbito do direito penal!
Por outro lado, atentos os objetivos subjacentes ao regime contraordenacional, designadamente em setores com regulamentação nova e ainda por muitos desconhecida[2], com costumeira remissão para o RGCC, muitas vezes não se justifica fazer seguir um processo, com as despesas e encargos inerentes, caso as finalidades estejam atendidas.
Existem, há muito, regimes contraordenacionais setoriais que consagram a advertência.[3]
No contexto laboral e da segurança social [4], a função pedagógica, de formação e orientação é aí consagrada e assegurada uma vez que se o infrator atuar em violação das medidas recomendadas no auto de advertência, a coima pode ser elevada até ao valor mínimo do grau que corresponda à infração praticada com dolo. Como podemos ler na Separata de Prontuário de Direito de Trabalho[5]:
“… o auto de advertência fica na esfera do advertido como um sinal, um ferrete…”.
Noutro plano setorial, pela Lei quadro das contraordenações ambientais, art.º 47.º-A, a advertência também veio ocupar o seu lugar, sendo eficaz.
O instituto da advertência mostra-se consagrado no código de mercado de valores mobiliários, CMVM, art.º 413.º (aqui visa-se reforçar os mecanismos de controlo e organização interna das pessoas coletivas[6]) e no regime aplicável às contraordenações aeronáuticas civis, art.º 19.º do DL n.º 10/2004, de 9 de janeiro.
Não se trata de um instituto de arquivamento com dispensa de pena ou de suspensão provisória do processo[7], ou lei de clemência[8], ou de um mecanismo de suspensão da sanção[9], ou de execução da sanção[10], ou de não aplicação ou de redução da coima[11], de dispensa e atenuação especial das coimas[12], de dispensa ou redução de coima[13], de dispensa de coima no âmbito do art.º 559.º, do Código do Trabalho, ou de admoestação[14], mas antes um instituto com indicação das medidas de regularização das irregularidades sanáveis e dos respetivos prazos de cumprimento mediante elaboração de auto.
O legislador tem procurado progredir, mas apenas de forma pontual.
Veja-se o Regime Jurídico das Contraordenações Económicas, com a devida nota para o regime de advertência[15], o disposto na Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. O art.º 39.º, n.º3 da referida Lei determina que, exceto em caso de dolo, a instauração de processo de contraordenação depende de prévia advertência do agente, por parte da CNPD, para cumprimento da obrigação omitida ou reintegração da proibição violada em prazo razoável.
Se assim é, porque esperamos então para estender a importância da advertência no RGCC?
A ideia não é nova, mas hoje em dia torna-se imperiosa. O Professor Eduardo Correia defendia uma maior incidência do princípio da oportunidade no âmbito do ilícito de mera ordenação social, como fator de eficácia.

Em tempos de pandemia onde o regime[16] legal é exigente, com o agravamento das dificuldades económicas, com implicações na saúde física e mental, perante a tendência, por saturação, de serem invocadas causas justificativas que, amiúde, se revelam inexistentes, exige-se a consagração mais alargada de um regime de advertência, naturalmente a par de outras medidas[17],[18] mas não imediatamente de previsão de punição no plano penal ou de agravamento de coimas, inclusivamente, com permissão de cobrança imediata da coima aplicável no momento da verificação da infração [19].
Com o legislador a aperfeiçoar, e bem, o combate às infrações contraordenacionais e sua punição[20], urge prevenir, a montante, o desfecho condenatório, por vezes muito pesado, dos processos contraordenacionais.
Se a administração pública (AP) visa a prossecução do interesse público, respeitando os direitos e interesses legalmente protegidos;
se os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Lei e devem atuar com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé, artigo 266.º da CRP;
se a AP está vinculada à Lei e, no caso da existência de margem de livre decisão administrativa (discricionariedade em sentido estrito e margem de livre apreciação), também está vinculada aos princípios fundamentais ou gerais da atividade administrativa, designadamente dever de prossecução do interesse coletivo, dever de imparcialidade, dever de não discriminação e dever de proporcionalidade;
se temos, em vários regimes setoriais, uma boa experiência quanto ao procedimento de advertência[21];
deve então ser alargada, numa revisão a realizar ao RGCC, a possibilidade de aplicação do procedimento de advertência pelas autoridades administrativas.
Fica, pois, a terminar, o apelo à Ordem dos Advogados[22] para que intervenha, no âmbito das suas atribuições[23], para democratizar o regime de advertência no universo contraordenacional geral.
[1] DL n.º 433/82, de 27 de outubro.
[2] É o caso da matéria relativa à segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, e da matéria que regula as práticas comerciais com redução de preço nas vendas a retalho praticadas em estabelecimentos comerciais, com vista ao escoamento das existências, ao aumento do volume de vendas ou a promover o lançamento de um produto não comercializado anteriormente pelo agente económico, DL n.º 70/2007, de 26 de março, todas com recentes e importantes alterações.
[3] Artigo em livro de coautoria, página 55 a 63.
[4] Regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social, Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, art.ºs 10.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea b) e 19.º, n.º 4.
[5] CES, Coimbra editora, página 174 e segs, https://www.rrp.pt/_applications/app_rrp/_assets/images/Rodrigo_Lourenco_auto_advertencia.pdf
[6] Crimes e contra-ordenações no novo código dos valores mobiliários, https://www.cmvm.pt/pt/EstatisticasEstudosEPublicacoes/CadernosDoMercadoDeValoresMobiliarios/Documents/C07FredericoCostaPinto2.pdf, página 383 e 387 (procedimento de advertência, art.º 413.º, do CMVM).
[7] Institutos do processo criminal previstos para penas e não para coimas.
[8] Lei n.º 39/2006, de 25 de agosto que estabeleceu o regime jurídico da dispensa e da atenuação especial da coima em processos de contraordenação por infração às normas nacionais de concorrência.
[9] DL n.º 10/2004, de 9 de janeiro, art.º 29.º do regime aplicável às contraordenações aeronáuticas civis, ou do art.º 415.º, do CMVM -DL n.º 486/99, de 13 de novembro na sua 42.ª versão – a mais recente (DL n.º 144/2019, de 23/09).
[10] Art.º 223.º do DL n.º 298/92, de 31 de dezembro, regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras, RGICSF.
[11] Art.º 30.º Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, regime geral das infrações tributárias.
[12] Art.º 32.º, da Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, regime geral das infrações tributárias.
[13] Art.º 78.º e 79.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, novo regime jurídico da concorrência.
[14] RGCC, art.º 51.º , art.º 47.º-A da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, concretizado, por exemplo, na previsão do regulamento n.º 8/2019, de 2019-01-03, Regulamento de Fiscalização dos Serviços de Gestão de Resíduos Urbanos e Limpeza do Espaço Público no Município do Porto.
[15] Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro.
[16] Art.º 62.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, lei de bases da proteção civil para que o art.º 43.º do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril de 2020 da presidência do conselho de ministros remete, o Decreto-Lei n.º 37-A/2020 de 15 de julho-regime sancionatório aplicável ao incumprimento dos deveres estabelecidos por declaração da situação de alerta, contingência ou calamidade) que estabelece o regime contraordenacional, no âmbito da situação de calamidade, contingência e alerta, constando do seu art.º 9.º remissão para o RGCC.
[17] Como, por exemplo, a obrigatoriedade de o arguido ser representado na fase administrativa e judicial, quanto a processos contraordenacionais, por mandatário.
[18] Veja-se o Decreto-Lei n.º 6-A/2021, de 14 de janeiro que altera o regime contraordenacional no âmbito da situação de calamidade, contingência e alerta e agrava a contraordenação relativa ao teletrabalho obrigatório durante o estado de emergência que, no seu art.º 7.º, remete para a Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, art.º 10.º, n.º 2 b). Ora, essa Lei alude a autos de advertência, mas apenas em caso de infrações classificadas como leves e das quais ainda não tenha resultado prejuízo grave para a segurança social. Portanto, não a situações previstas de agravamento de coimas, Decreto-Lei aludido.
[19] Decreto-Lei n.º 8-A/2021, de 22 de janeiro que altera o regime contraordenacional no âmbito da situação de calamidade, contingência e alerta e procede à qualificação contraordenacional dos deveres impostos pelo estado de emergência.
[20] Portaria n.º 121/2020, de 2020-05-22, que determinou o dia 1/9/2020 para a entrada em funcionamento dos juízos especializados dos tribunais administrativos e fiscais.
[23] Art.º 3.º, alínea j), do estatuto da Ordem dos Advogados, “Ser ouvida sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e ao patrocínio judiciário em geral e propor as alterações legislativas que se entendam convenientes”.