Um novo direito da compra e venda internacional em vigor a partir de outubro
A Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias constitui um regime flexível, pragmático e funcional, cuja entrada em vigor exigirá aos juristas portugueses alguma adaptação
Em “tempos virulentos”, em que os Advogados se têm preocupado diariamente com a leitura e releitura de um “direito emergencial” em permanente evolução, é publicado um diploma que tem por efeito uma alteração significativa do direito da compra e venda internacional de mercadorias. Esta ocasião justificou que publicássemos este breve artigo.
Com efeito, o Decreto n.º 5/2020, de 7 de agosto, aprovou, para adesão, a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias, adotada em Viena, em 11 de abril de 1980. Em anexo a este Decreto consta a versão inglesa, e uma tradução para língua portuguesa, do texto da Convenção. O Aviso n.º 48/2020, de 10 de outubro, tornou público que a República Portuguesa depositou, em 23 de setembro de 2020, o seu instrumento de adesão à Convenção e, conforme consignado neste Aviso, e de acordo com o disposto no artigo 99.º, n.º 2, da Convenção, esta entrará em vigor para a República Portuguesa no dia 1 de outubro de 2021.
A adesão de Portugal era esperada há muito tempo e é elogiada por vários setores. Embora não deixe de ser curioso que este passo ocorra numa altura em que a pandemia suscita várias dúvidas sobre o sentido futuro da globalização económica, e em que o Brexit se materializa (o Reino Unido não é parte da Convenção), merece também o nosso elogio.
Da Convenção são hoje parte 94 Estados e a mesma constitui uma peça essencial do comércio internacional de mercadorias.
A projeção prática da Convenção no nosso País poderá ser significativa. Não se aplicando, em regra, a contratos com consumidores, pode aplicar-se a contratos civis e comerciais e, quanto a estes, constata-se sem surpresa, observando os dados dos últimos anos, que, entre as importações e exportações de Portugal, encontramos numerosas mercadorias incluídas no âmbito de aplicação da Convenção: madeira, cortiça e papel, máquinas, produtos agroalimentares, minérios e metais, químicos e borracha, peles couros e têxteis, entre outras.
Há que começar por observar o âmbito da Convenção, isto é, os casos abrangidos pelo respetivo âmbito material (por exemplo, um contrato de fornecimento, quanto a aspetos de formação do mesmo e a direitos e obrigações das partes) e pelo respetivo âmbito espacial (por exemplo, um contrato entre uma sociedade portuguesa e uma espanhola ou entre aquela e uma alemã). Aplicada há largas décadas, por tribunais, judiciais e arbitrais, pode hoje o sentido das suas disposições ser facilmente explorado, através de um rico acervo de decisões, muitas delas publicadas.
Dentro desse âmbito, a entrada em vigor da Convenção exigirá aos juristas portugueses alguma adaptação, por várias razões. Em primeiro lugar, porque a Convenção contempla conceitos novos. Por exemplo, adota uma noção ampla e elástica de compra e venda internacional, podendo aplicar-se a contratos que, no direito português, pelo menos até hoje, poderiam ser considerados de empreitada.
Em segundo lugar, porque, sobretudo na assessoria jurídica a negociações internacionais, poderá ser importante acautelar alguns aspetos. Assim, por exemplo, não sendo excluída a aplicação da Convenção, poderá ser relevante estipular clausulados complementares, isto é, que facilitem a aplicação futura da Convenção, sobretudo em caso de litígio (por exemplo, fixando no próprio contrato o que é uma “violação fundamental” motivadora do incumprimento, que é a pedra angular da Convenção).
Em terceiro lugar, porque a Convenção não contempla, expressa e diretamente, figuras conhecidas do direito português e tornadas “léxico diário” de muitos juristas em tempos de pandemia, como “alteração das circunstâncias” ou “impossibilidade de prestar” (embora se discuta o respetivo enquadramento).
Em quarto lugar, porque a organização sistemática e o regime da Convenção são distintos dos que constam do Código Civil. Por exemplo, na Convenção não há uma diferenciação entre mora, incumprimento definitivo e cumprimento defeituoso, sendo a lógica unitária, e a base do respetivo sistema é objetiva, prescindindo de culpa, entre vários outros aspetos. Depois, a terminologia e os “caminhos” seguidos dos artigos 913.º ss (e 905.º e ss) não encontram, em vários casos, equiparação na Convenção (ainda que daqui resulte uma vantagem, sendo conhecidas as dificuldades da disciplina daqueles artigos).
Na nossa opinião, a Convenção constitui um regime flexível, pragmático e funcional, como é particularmente desejável no comércio. Simplesmente, as soluções que oferece são próprias e individuais e o respeito pelas mesmas exige que se evitem “nacionalizações” do respetivo sentido, para as “adaptar” ou mesmo “subordinar” a visões nacionais. Um marco jurídico global de aplaudir, não ficando a boa notícia prejudicada pela adaptação que exigirá a Advogados e a Magistrados do nosso País.