O próprio Estado alimenta uma elevada carga de litigiosidade
O Boletim OA entrevistou a Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, Dulce Manuel Neto, primeira mulher a presidir a um tribunal superior em Portugal, que nos fala do estado da justiça administrativa e fiscal
Este ano completam-se 10 anos do memorando de entendimento do Estado português com a Troika. Considera que as medidas iniciadas nessa altura diminuíram o número de processos pendentes nos Tribunais Administrativos e Fiscais?
Não, de todo, as medidas iniciadas nessa altura não diminuíram o número de processos pendentes, não aumentaram a capacidade de resposta destes tribunais nem resolveram os seus problemas estruturais de funcionamento. Repare, o memorando foi assinado em maio de 2011, numa altura em que estes tribunais se encontravam completamente asfixiados, com uma pendência anual em 1ª instância a rondar os 60.000 processos, dos quais cerca de 43.000 só na área tributária, para um exíguo número de 101 juízes em efetividade de funções nas duas áreas dos 17 tribunais administrativos e fiscais, e com falta de funcionários. Isto para já não falar da asfixia dos dois tribunais de 2ª instância.
Uma asfixia que resultava de uma prolongada e ostensiva falta de meios para fazer face a níveis de litigiosidade para os quais estes tribunais, em particular os tributários, nunca foram preparados e que geraram níveis insuportáveis de pendências acumuladas em todas as instâncias. Lembro-me que em 2010 a secção do contencioso tributário do tribunal 2ª instância do norte, com um volume elevadíssimo de processos e que julga em formação coletiva de três juízes, tinha apenas dois juízes em exercício de funções.
E apesar da situação económica e financeira que o país então atravessava ter agravado a situação, sobretudo no contencioso tributário face ao forte investimento do Estado na máquina fiscal e na eficiência dos seus serviços, dotando-a de meios e instrumentos e até de estímulos remuneratórios à arrecadação de receita, continuou a faltar o investimento nestes tribunais, como se pode constatar, desde logo, pela ausência da necessária autorização ministerial para o recrutamento e formação de juízes para esta jurisdição, que já não existira com regularidade no passado e que também não existiu nos anos de 2011, 2012, 2013 e 2015, ao contrário do que aconteceu para os tribunais comuns. Razão por que em 2014 a pendência na 1ª instância já aumentara para 68.000 processos e subira para 75.575 em 2015, dos quais 53.791 só na área tributária.
Claro que existe [Pendência nos Tribunais Administrativos e Fiscais], ainda que esteja a abrandar ligeiramente
O memorando continha três medidas para aumentar a eficiência destes tribunais. A primeira consistia na criação de “secções especializadas” com a assistência de pessoal técnico especializado para o julgamento dos casos de maior dimensão. A segunda consistia na criação de um “grupo de trabalho temporário” constituído por juízes que resolveriam processos tributários de valor superior a 1 milhão de euros. E a terceira foi a que o governo português apresentou à Troika como a solução para a morosidade dos tribunais tributários, traduzida na implementação da lei da arbitragem fiscal que acabara de obter consagração legal em Portugal através do DL nº 10/2011, de 20 de janeiro.
A primeira medida nunca foi concretizada. Nunca surgiram os diplomas que permitissem a criação dessas secções e a implementação da assessoria técnica aos juízes. Assessoria que, aliás, continua a não existir atualmente, ainda que imposta pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, isto é, imposta por uma lei da Assembleia da República aprovada em 2002 e que se mantém em vigor. Contudo, não vejo ninguém sobressaltar-se com este desvio ou desobediência prolongada ao órgão de soberania que representa e exprime a vontade dos portugueses e que zela pelo cumprimento das leis.
A segunda medida levou à criação temporária, em 2012, de duas equipas de juízes para tramitarem e decidirem processos tributários de valor superior a 1 milhão de euros, ainda que eles representassem uma fatia muito reduzida dos processos pendentes. Recordo que em dezembro de 2015 havia 1.205 processos desse valor num universo de 53.791 processos pendentes. Como previsto no memorando, foram extintas em 2015.
Quanto à terceira medida, há que ter a noção que o brilho da vantagem da via arbitral, como é, sem dúvida, a celeridade, pressupõe um número muito limitado de processos, sob pena de a celeridade se dissipar, pelo que ela não foi nem nunca será a solução para reduzir o elevadíssimo nível de pendências destes tribunais.
É comum a ideia de que existe uma elevada pendência dos Tribunais Administrativos e Fiscais. E existe? Que motivos provocam tal morosidade?
Claro que existe, ainda que esteja a abrandar ligeiramente face à autorização ministerial que a partir de 2018 foi anualmente concedida para o recrutamento e formação de juízes para esta jurisdição e face às medidas adotadas no âmbito do pacote legislativo que no final desse ano começou a ser implementado.
Em dezembro de 2018 a pendência global em 1ª instância situava-se nos 71.337 processos, baixou para 67.242 no final de 2019 e desceu para 60.676 no final de 2020. No fundo, a atenção e o investimento começaram a mostrar alguns frutos, se bem que haja ainda muito a fazer para resolver as pesadas pendências acumuladas nas duas instâncias e para elevar a capacidade de resposta face à intensa procura da justiça administrativa e fiscal.
Porque não podemos esquecer que as elevadas pendências acumuladas ao longo de anos resultaram de uma intensa procura conjugada com um prolongado desinvestimento em meios e recursos materiais e humanos para estes tribunais, num cenário em que o próprio Estado alimenta uma elevada carga de litigiosidade que chega escusadamente à fase judicial. O que tudo leva a uma morosidade que a nós, magistrados, que corporizamos o rosto mais visível da justiça, tanto nos envergonha, ainda que não seja justo falar apenas em processos com atraso na decisão e nunca falar dos milhares de processos que anualmente são decididos em prazo razoável.
Mas nunca consegui compreender como é que sendo Portugal um país com problemas de défice excessivo e com permanente necessidade de obtenção de receita, não investe realmente nos seus tribunais tributários, quando são eles os que maior peso têm para a obtenção de receita pública, havendo aqui uma responsabilidade acrescida do Estado de os fazer funcionar. E também não compreendo como foi possível que o Estado fizesse o investimento que fez na eficiência da máquina fiscal e descurasse que essa eficiência só se alcança plenamente se os tribunais tributários tiverem condições para dar resposta atempada e adequada aos litígios que essa máquina potencia, tiverem condições para controlar, de forma rápida, o processo de arrecadação da receita tributária que tão essencial é para o país.
Portanto, o problema da morosidade dos tribunais desta jurisdição não reside no modelo constitucional de organização judiciária. Reside no modo como lhes tem sido permitido operar,
reside em pendências excessivas que, desacompanhadas do investimento que se impunha, inutilizaram a racionalidade associada a um bom funcionamento e a uma boa gestão, pese embora os esforços e a dedicação da generalidade dos juízes que nela servem.
Os tribunais administrativos e fiscais são, por expressa determinação constitucional, órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome dos cidadãos, contudo estes cidadãos esperam anos pela decisão. Como pensa reverter esta situação?
Não há fórmulas mágicas nem varinhas de condão para ultrapassar de forma rápida uma situação anómala herdada do passado e para cuja resolução não bastam expedientes normativos. Mas poderia ser ultrapassada de forma mais rápida mediante medidas excepcionais, designadamente através da assessoria aos juízes, o que permitiria um reforço substancial da capacidade de resolução processual.
Como já disse, os juízes destes tribunais continuam a não dispor de assessoria técnica e jurídica, apesar de todos sabermos que ela é indispensável para uma adequada e atempada resolução de litígios que exijam conhecimentos que não são estritamente jurídicos e que frequentemente envolvem matérias de elevada tecnicidade e complexidade. Aliás, essa complexidade e tecnicidade tem conduzido a uma crescente especialização dos advogados que litigam nesta jurisdição, que trabalham cada vez mais em equipa e com auxílio de técnicos especialistas, enquanto o juiz não dispõe de um mero assistente administrativo, o que o obriga a ir pessoalmente procurar toda a legislação e todos os elementos doutrinais e jurisprudenciais necessários para decidir cada caso, a ir pessoalmente às livrarias procurar e comprar obras e publicações indispensáveis à resolução dos mais variados litígios, dado que muitos destes tribunais não possuem sequer biblioteca.
Como não tenho poder para criar esses meios, esforço-me por alertar e sensibilizar os decisores políticos, em apelos ao investimento na justiça administrativa e fiscal e avisos à sua premência, porque não é preciso fazer futurologia para saber que o impacto da pandemia na economia será profundo e irá provocar um forte aumento de litígios nestes tribunais, em particular na área da contratação pública, do emprego público, da segurança social, do asilo, dos auxílios de Estado, da fiscalidade e da tributação.
Mas mantenho a esperança, uma esperança lúcida e atuante, na melhoria da justiça administrativa e fiscal, não só pelo esforço do seu corpo de magistrados, que tem alcançado taxas anuais de resolução processual superiores a 100%, mas também pela atenção que a Senhora Ministra da Justiça tem votado a estes tribunais e que evidencia a vontade de os tornar mais eficientes, com a implementação de medidas essenciais – como foi o tão longamente esperado ajustamento e alargamento do quadro legal de magistrados, o recrutamento anual de juízes, a implementação de juízos de competência especializada e a constituição de equipas de juízes para a recuperação de pendências. Para além de ter neste momento em atividade um enérgico grupo de trabalho para gizar e operacionalizar outras medidas.
A que acresce o esforço que a nível da justiça tributária está a ser desenvolvido pelo atual Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Fiscais com vista à redução dos litígios tributários, seja a nível da sua resolução administrativa, a montante do sistema judicial, seja a nível preventivo da conflitualidade.

Na sua perspectiva a tão falada transição digital, ou seja, o processo de informatização e digitalização da justiça Administrativa e Fiscal (SITAF) será um meio para diminuir a pendência? O que está previsto neste contexto?
Foi necessária esta crise pandémica para realmente compreendermos que as soluções digitais permitem obter ganhos de eficiência, sobretudo a nível de tribunais superiores, com as sessões de julgamento dos recursos a decorrer muito bem em plataformas digitais, com a tramitação dos processos à distância através do SITAF, ainda que as debilidades estruturais do SITAF se continuem a fazer sentir.
E, sobretudo, pôs em evidência a necessidade e a urgência de acelerar a transição da Justiça para a era digital que caracteriza o século XXI, tendo funcionado como um acelerador de mudanças, um acelerador de futuros. O Plano de Recuperação e Resiliência espelha essa necessidade e urgência ao eleger a transição digital dos serviços públicos, nomeadamente dos serviços judiciais, e ao dar atenção aos tribunais administrativos e fiscais por via de um projetado forte investimento em plataformas digitais estruturantes.
E mal seria que depois de tudo o que se passou se tentasse um regresso à normalidade conhecida do passado. Penso que isso seria um tremendo erro, senão mesmo uma traição, porque esta crise proporcionou-nos uma oportunidade única de redefinir os padrões de normalidade e de reformular o sistema de operar judicialmente, evidenciando novos modelos que se mostram capazes de otimizar a racionalização dos meios e a organização do trabalho e de alcançar uma justiça mais célere, mais eficiente, mais transparente e mais próxima.
E, portanto, estes tribunais terão de ter não só um grande reforço nas infraestruturas e plataformas tecnológicas, mas também em ferramentas digitais que farão toda a diferença para dar um salto quântico a nível de tempos da resposta e da qualidade dessa resposta, ainda que para tal seja igualmente imprescindível o investimento em meios humanos, em particular assessores e técnicos informáticos.
Há quem diga que se usam com demasiada frequência os processos cautelares e que o que eventualmente se pretende é tornar todo e qualquer processo num processo mais rápido, independentemente de ser real a sua “especial urgência”. A sua experiência corrobora esta suspeita?
Vivemos numa sociedade urgente e ansiosa, caracterizada por processos de mobilização da opinião pública para julgamentos em palcos da comunicação social que reivindicam respostas rápidas. E apesar de a Justiça não se fazer nesses palcos e nesse tempo, penso que isso contribui para a expectativa, senão mesmo para a exigência, de tornar todo e qualquer processo urgente, independentemente de ser real a sua especial urgência.
Por outro lado, tendo o legislador qualificado como urgente toda a tutela cautelar, isso tem levado a uma utilização excessiva das providências cautelares, para onde os requerentes passaram a transportar toda a matéria relacionada com a pretensão deduzida no processo principal, tentando obter dessa forma a mais rápida tutela disponível. O que levou a que mecanismos de natureza excecional se tornassem de utilização corrente e se agravasse o congestionamento processual nos tribunais administrativos.
Acresce que essa qualificação legal é também conferida a todos os processos cautelares relativos à formação de contratos, aos processos em matéria de acidentes em serviço, de asilo, de perda de mandato, de intimação para a prestação de informações, de intimação para consulta de processos e passagem de certidões, de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias. O que significa que os juízes são diariamente absorvidos pelo contencioso administrativo que a lei qualifica como urgente, independentemente da sua concreta e especial urgência, e lhes falte tempo para o estudo e decisão de todos os demais processos, com a consequente acumulação de pendências nos processos não urgentes.
Como vê a existência de arbitragem na justiça administrativa, por exemplo, o Centro de Arbitragem Administrativa? E a recorrente previsão, nos contratos celebrados pelo Estado Português, do recurso à arbitragem privada para a resolução dos litígios?
É problemático que o Estado queira delegar em entidades privadas o julgamento de conflitos gerados no exercício de funções públicas e que visam a prossecução do interesse público,
sabendo que estão em jogo importantes interesses da comunidade e que nesse tabuleiro atuam influentes poderes de facto e grandes interesses políticos, económicos e financeiros, o que reforça a necessidade de assegurar ao máximo a imparcialidade e a independência dos julgadores, de os subtrair à órbita de influência e de pressão de outros poderes. Os árbitros não são magistrados e a sua independência dificilmente será a mesma do juiz estadual, sujeito a um estatuto extremamente rigoroso e controlado em termos de restrições e deveres funcionais. E daí esta minha convicção de que só um corpo de juízes sujeito a rígidos deveres e garantias orgânicas e estatutárias, designadamente ao dever de absoluta exclusividade e proibição de atividade político-partidária, pode assegurar, de forma plena, uma justiça independente e imparcial.
Mas o que me preocupa é o facto de a arbitragem ter servido de pretexto para o desinvestimento do Estado nos seus tribunais, enfraquecendo o poder judicial numa área tão sensível como é a área do direito administrativo e fiscal,
designadamente na área da resolução de litígios gerados pela contratação pública.
De todo o modo, no passado mês de setembro foram implementados juízos especializados em contratação pública, pelo que se tivermos magistrados suficientes para os reforçar e lhes for assegurada assessoria técnica especializada, penso que deixa de existir justificação para o recurso à arbitragem em litígios que têm, efetivamente, de ser resolvidos de forma célere. Entretanto, há que encontrar solução para o congestionamento dos tribunais de 2ª instância, porque também eles têm de conseguir dar resposta célere aos recursos interpostos de sentenças proferidas nesses juízos especializados.
Foi apresentado na Assembleia da República o Projecto Lei nº 837/XIV/2.ª que proíbe o recurso do Estado e pessoas colectivas públicas à arbitragem em matéria administrativa e fiscal, a Ordem dos Advogados manifestou-se contra, qual é a sua opinião?
Enquanto presidente do CSTAF devo limitar-me a expressar a posição que este órgão emitiu no parecer que enviou à Comissão de Assuntos Constitucionais, no sentido de não tomar posição sobre a opção política e legislativa vertida nessa iniciativa legislativa, ainda que afirmando que isso não significava que este órgão não continuasse a pugnar pela atribuição de instrumentos legais e de recursos humanos, materiais e técnicos para que os tribunais desta jurisdição pudessem exercer cabalmente as competências que legalmente lhes estão conferidas.
Em sede de recurso quais as áreas do direito/matérias que mais têm sido apreciadas pelo STA? É necessário reforçar uma formação mais especializada para os juízes nessas áreas?
As matérias são muito diversificadas, seja na secção do contencioso administrativo, seja na secção do contencioso tributário, sendo muito difícil apontar uma área ou matéria mais examinada e decidida no STA. O que posso dizer é que o tipo de litigância registada ao longo dos últimos anos evidencia a necessidade de magistrados não só com uma elevada competência jurídica e técnica, mas também com conhecimentos abrangentes e multidisciplinares e, sobretudo, dotados de sensibilidade e capacidade para compreender um mundo globalizado que suscita questões tão variadas e complexas como as que se colocam, por exemplo, no direito do ambiente, nas migrações, no asilo e regimes de proteção a refugiados, ou as que se colocam na fiscalidade associada a uma economia mundial e digital, como é o caso da tributação do comércio eletrónico e dos serviços digitais. Mas os juízes conselheiros têm revelado níveis de cultura jurídica, de formação intelectual e preparação técnica, de experiência e de maturidade que os habilitam a responder, ainda que com árduo e constante trabalho de preparação e estudo, a todas essas matérias, até porque não têm os pesados acervos processuais dos juízes da 1ª instância.
Que efeito teve a pandemia na pendência nos Tribunais Administrativos e Fiscais?
O CSTAF fez uma análise à atividade judicial desenvolvida nos tribunais desta jurisdição durante os dois períodos de suspensão de prazos processuais – o primeiro entre 9 de março e 3 de Junho de 2020, e o segundo entre 22 de janeiro e 6 de Abril de 2021 – e essa análise evidenciou uma produtividade altamente satisfatória, revelada pelo elevado número de decisões finais proferidas tanto em processos urgentes como, maioritariamente, em processos não urgentes.
Naquele primeiro período, que totalizou 63 dias úteis, foram proferidas no STA 346 acórdãos e decisões sumárias. E no segundo período, que totalizou 53 dias úteis, foram proferidas 410 acórdãos e decisões sumárias. O que evidencia uma atividade judicial superior à normal, quando comparada com a de trimestres de anos anteriores.
E se a nível de 1ª instância diminuiu drasticamente a realização de actos de natureza presencial, o certo é que a produtividade dos juízes, medida pelo número de decisões finais que introduziram no SITAF, é também altamente satisfatória, tanto em processos urgentes como em processos não urgentes, tendo os magistrados aproveitado a oportunidade para recuperar pendências atrasadas.
No primeiro período foram proferidas 6.013 sentenças, o que equivale a uma atividade normal comparativamente a trimestres de anos anteriores, e que merece realce face às dificuldades inicialmente enfrentadas perante a súbita necessidade de adaptação a uma nova realidade e a um distinto modelo de exercício da atividade judicial e face aos constrangimentos inerentes a um desempenho funcional em situação de confinamento, com o encerramento das creches e escolas a obrigar a prestar assistência permanente ao agregado familiar e a cuidar de filhos e de pais idosos perante a impossibilidade de obter apoio externo. E no segundo período foram proferidas 5.726 sentenças, o que revela o nível de resiliência do corpo de magistrados e funcionários destes tribunais, do seu esforço, compromisso e sentido de dever no desempenho de funções em tão difícil contexto.
Muito recentemente o STA foi instado a decidir sobre as medidas de restrição de circulação de e para a Área Metropolitana de Lisboa (AML). Como encara estas medidas?
Não comento as medidas adotadas pelo Conselho de Ministros, sobretudo aquelas cuja legalidade e constitucionalidade tem sido judicialmente questionada, já que é ao Supremo Tribunal a que presido que compete fiscalizar e pronunciar-se, em 1ª instância, sobre a legalidade dos atos e normas regulamentares que emanam desse órgão no uso da função administrativa do Governo.
Que comentário faz à nova Lei dos Contratos Públicos?
Não quero pronunciar-me sobre a matéria, dado que é nos tribunais administrativos que reside a competência para resolver a litigiosidade gerada pela contratação pública e que serão os juízes destes tribunais a aplicar e a interpretar as normas desse diploma, designadamente as que resultam de algumas alterações que têm gerado polémica. Deixo os comentários aos juristas, a análise crítica à doutrina e as respostas à jurisprudência. A mim compete-me pugnar por meios e soluções que permitam a estes tribunais decidir todo o contencioso associado, de modo atempado e adequado, sabendo que ele tem, em regra, natureza urgente e níveis elevados de complexidade.
O que responde aos que defendem a extinção dos Tribunais Administrativos?
Respondo que a crescente especificidade, complexidade e tecnicidade dos litígios de natureza administrativa e fiscal exige um corpo de juízes dotado de uma especial preparação e sensibilidade para compreender as relações jurídicas administrativas e tributárias, o que só é possível alcançar com um particular e específico recrutamento, seguido de sólida e consistente formação, acompanhada de contínua atualização, tudo sedimentado por uma experiência que demora toda uma carreira a firmar.
E não tendo os magistrados dos tribunais comuns essa formação, sensibilidade e experiência, estou convicta que a extinção destes tribunais ou a unificação das jurisdições constituiria um fator indutor de ineficiências e de diminuição da qualidade da justiça administrativa e fiscal. Penso, aliás, que seria um enorme e perigoso retrocesso numa era que trouxe novos e difíceis desafios para os juristas e juízes que operam com o direito público, dada a necessidade de compreensão de realidades cada vez mais dinâmicas e complexas, com novas dimensões jurídicas, económicas, tecnológicas, políticas, sociais e ambientais, que exigem uma constante atualização face a um direito público sempre em mutação e em expansão, que obriga à especialização.
O STA sempre foi constituído maioritariamente por homens, mas também foi o primeiro Tribunal Superior do país a ter uma mulher na vice-presidência, através da sua eleição em 2011, e desde 2019, com a sua eleição, o primeiro Tribunal Superior presidido por uma mulher. No seu entender esta cultura de vivência humana em igualdade de género é transversal a toda jurisdição em especial e ao país em geral? Como vê a evolução do acesso das mulheres aos lugares de topo?
Basta olhar para o número de juízas mulheres em lugares de liderança nestes tribunais para constatar como a cultura de vivência humana em igualdade de género é transversal a toda a jurisdição. Repare, tanto a presidente como as duas vice-presidentes do STA são mulheres eleitas pelos seus pares em colégios maioritariamente masculinos. Nos dois tribunais de 2ª instância temos uma presidente e duas vice-presidentes mulheres. Na 1ª instância, e por recente nomeação do CSTAF, todos os cargos de presidência dos tribunais serão exercidos por mulheres a partir de setembro.
Mas o exercício destes cargos por mulheres representa apenas mais um passo, natural e inevitável, nesta longa caminhada que temos percorrido desde os tempos em que nos estava vedado o acesso à magistratura e onde diariamente temos prestado provas não só da nossa aptidão, competência, empenho e brio profissional, como de capacidades de liderança, ocupando gradualmente, com toda a naturalidade e justiça, espaços e funções historicamente masculinos.
Quais são as linhas mestras deste seu mandato?
O papel e o peso do STA face às suas vastas e relevantes competências – já que funciona como tribunal de recurso, de revista, de reenvio prejudicial e de uniformização de jurisprudência, com a acrescida competência de julgar, em primeiro grau de jurisdição, processos relativos a atos e omissões de importantes órgãos e entidades públicas, designadamente do Presidente da República, da Assembleia da República e do seu Presidente, do Conselho de Ministros e do Primeiro-Ministro – ditaram-me três linhas e compromissos: garantir aos juízes conselheiros a independência e a dignidade compatível com a missão em que se encontram investidos; estimular um ambiente propício para que o STA se mantenha, através da qualidade das suas decisões, como o farol do sentido da lei para os cidadãos e agentes económicos em geral; fomentar a estabilidade da sua jurisprudência, tão necessárias à certeza do direito e à segurança jurídica.
Mas porque sou, por inerência, presidente do órgão de gestão desta jurisdição, o mandato é, neste domínio, bem mais espinhoso. Porque passa por dar voz e visibilidade pública às especificidades e dificuldades desta jurisdição, por desenvolver esforços de intervenção e estratégias de gestão para melhorar a capacidade e a qualidade da resposta dos seus magistrados, num incessante esforço que tem de ser desenvolvido para alcançar e garantir aos cidadãos uma boa administração da justiça e obter, por essa via, a sua confiança e respeito.
Dulce Manuel Neto
Nasceu a 17 de Março de 1961 em Coimbra. Em 1984 licenciou-se em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Em 1985 ingressou no Centro de Estudos Judiciários tendo sido Juíza de Direito nos tribunais judiciais de Sátão, Estarreja e Aveiro. Em finais de 1992, foi nomeada, em comissão permanente de serviço, juíza de Direito na jurisdição administrativa e fiscal, tendo exercido funções no Tribunal Administrativo de Círculo do Porto, no Tribunal Tributário de Primeira Instância do Porto e no Tribunal Tributário de Primeira Instância de Aveiro. Entre 2000 e 2009 foi juíza nos tribunais de segunda instância da jurisdição administrativa e fiscal, e em 2008, foi nomeada juíza desembargadora da Relação de Guimarães.
Em setembro de 2009, tornou-se juíza conselheira do Supremo Tribunal Administrativo. Em maio de 2010 foi nomeada presidente do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, tendo sido eleita vice-presidente do Supremo Tribunal Administrativo, em Fevereiro de 2012, para um mandato de cinco anos. Em setembro de 2019 foi eleita presidente do Supremo Tribunal Administrativo tornando-se na primeira mulher a presidir a um tribunal superior em Portugal.