Tão importante como ter boas leis é a sua eficaz aplicação
O Boletim OA entrevistou o Presidente do Tribunal de Contas, Juiz Conselheiro José Tavares, que nos mostrou o Tribunal, do contador de Almada Negreiros à cadeira do Marquês de Pombal, e nos falou da sua história e dos desafios para o futuro.
Que comentário faz sobre a nova lei da contratação pública? A jurisprudência do Tribunal de Contas (TdC) acompanha de perto esta matéria. Quais os aspectos mais críticos?
A contratação pública é uma das matérias mais importantes para o Tribunal de Contas. Por várias razões! Em primeiro lugar, cerca de 25 a 30% da despesa pública resulta de contratos celebrados por entidades de natureza pública; por outro lado, é crucial que a contratação pública contribua para uma sã economia de mercado, respeitando, em particular, os princípios da concorrência e da transparência, permitindo assim a escolha das melhores propostas para a prossecução do interesse público.
E é preciso ser muito rigoroso com a salvaguarda do interesse público quando são atribuídos poderes discricionários aos órgãos de gestão públicos.
Neste contexto, direi que a recente alteração vai exigir do Tribunal de Contas uma atenção acrescida à aplicação do novo regime e às suas consequências. É o que estamos a fazer.
No contexto do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a fiscalização dos contratos públicos e controlo dos fundos europeus será ainda mais exigente. Quando se prevê o uso de inteligência artificial para este fim?
O nosso grau de exigência é sempre o da maior qualidade possível. Como tenho referido, estamos muito empenhados em investir na inteligência artificial, nomeadamente no domínio da contratação pública, em que temos vindo a desenvolver aplicações experimentais.
Já demos os primeiros passos em relação à prestação de contas e vamos continuar neste sentido nas outras áreas de ação do Tribunal, com benefícios para todos.
Considerando a falta de comunicação entre os vários organismos públicos envolvidos, de que forma está o TdC a trabalhar na implementação da interoperabilidade dos sistemas de informação associados à operacionalização dos fundos europeus?
O Tribunal de Contas procura ser sempre um elemento agregador, sem prejuízo da sua independência e tudo faremos para que essa interoperabilidade seja uma realidade permanente, criando um verdadeiro sistema de vasos comunicantes.
No Relatório de Auditoria ao Portugal 2020, identificámos que a falta de interoperabilidade dos sistemas de informação, no âmbito da gestão e absorção dos fundos europeus, é um dos principais problemas para a realização dos objetivos e das metas a atingir. A este propósito, estamos a desenvolver ações de interligação eletrónica entre sistemas de entidades públicas. Aliás, o Tribunal formulou recomendações a esse respeito e o seu acolhimento pelas entidades que asseguram a governação será objeto de acompanhamento.

Na auditoria ao Portugal 2020 o TdC criticou os baixos níveis de execução, em virtude da “aprovação tardia” dos programas operacionais, da “complexidade e morosidade” do processo de designação das suas autoridades de gestão, entre outros factores. Em sete anos apenas 60% de um montante global de cerca de 26 mil milhões de euros de financiamento europeu, foram concretizados. O que falta fazer para que se revertam estes números? Acredita que as recomendações do Tribunal poderão fazer a diferença na execução do PRR?
O Relatório de Auditoria que refere teve também como finalidade principal extrair lições para a execução do PRR e, em geral, para a execução do novo Quadro Financeiro Plurianual 2021-2027. É um dos contributos do Tribunal para o bom êxito destes Planos, cumprindo assim a sua função pedagógica. As recomendações formuladas apelam precisamente a que sejam devidamente ponderados e corrigidos os aspetos menos positivos, responsabilizando assim os gestores.
No seu entender, o chumbo do orçamento vai ter impacto na aplicação da “bazuca” europeia?
Não necessariamente. Nos termos da Lei de Enquadramento Orçamental, até à aprovação do Orçamento para 2022, aplicar-se-á, com as necessárias adaptações, o Orçamento de 2021. Há, no entanto, que garantir as condições indispensáveis ao funcionamento eficaz das entidades públicas envolvidas.
Enquanto Presidente do TdC como avalia a legislação relativa à prevenção e combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo?
É sempre possível aperfeiçoar as leis. Mas tão importante como ter boas leis é a sua eficaz aplicação.
Creio também que é fundamental, antes de qualquer alteração legislativa, ponderar os resultados dessa aplicação.
Apesar de reconhecer a evolução positiva que tem havido nesta matéria e a vontade de, nos planos nacional e internacional, dar novos passos, estamos numa área em que esta cooperação internacional é absolutamente vital. É aqui que, neste momento, temos de pôr o acento tónico.
Antevejo, no futuro próximo, por exigência da sociedade global, progressos significativos no mundo dos chamados “paraísos fiscais” e das empresas offshore.
Que balanço faz da actividade do Conselho de Prevenção da Corrupção e como encara a proposta de criação do Mecanismo Anticorrupção como nova entidade nesta área?
Em minha opinião,
o Conselho de Prevenção da Corrupção tem desempenhado um papel extremamente relevante na prevenção da corrupção em Portugal.
Foi este Conselho que pôs na ordem do dia, desde 2009, a necessidade da gestão de riscos no Setor Público. Há um antes e um depois da Recomendação do CPC sobre planos de prevenção de riscos de gestão, incluindo os de corrupção.
Por outro lado, tenho de realçar o investimento do CPC no âmbito da educação, através de múltiplas iniciativas, abrangendo milhares de alunos e professores.
São também relevantes muitas outras Recomendações, nomeadamente, no âmbito da contratação pública, algumas das quais acolhidas pelo Legislador, como é o caso das declarações sobre conflitos de interesses.
A proposta de criação do Mecanismo Nacional Anticorrupção prevê a continuação desta função de prevenção, acrescentando-lhe uma função sancionatória.
Aguardemos, pois, o resultado final. Neste momento, gostaria de salientar a importância da prevenção, nomeadamente na educação, como investimento para o futuro.
O Bastonário da Ordem dos Advogados tem referido que é necessária uma reformulação total do combate à corrupção em Portugal. Concorda?
Não posso comentar a afirmação do Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados sem conhecer os contornos da reformulação que propõe.
Posso, porém, referir que o Senhor Bastonário foi recentemente ouvido pelo CPC, no âmbito das nossas audições regulares, tendo-nos apresentado ideias e sugestões de grande valia para ajudar o Conselho a recomendar medidas para prevenir a corrupção.
Tendo presente que a corrupção é um tema central nas preocupações dos cidadãos, que impacto causam, no seu entender, as decisões judiciais sobre crimes de corrupção na imagem que estes têm sobre a Justiça?
Não comento decisões judiciais, mas posso dizer que acredito na Justiça, que é a primeira virtude das instituições sociais, como bem sublinha John Rawls.
O TdC e o Conselho de Prevenção da Corrupção têm desenvolvido inúmeras acções no âmbito da literacia financeira, especialmente, junto das escolas. Considera que a comunicação com os cidadãos, com o objectivo de informar sobre o uso adequado do dinheiro público, está a ser feita de forma eficaz?
Estamos a fazer para que tal aconteça, sempre com o espírito de aperfeiçoamento permanente. Neste sentido, além de todas as iniciativas que temos vindo a desenvolver há anos com a Academia e as escolas públicas e privadas, criámos a Rede de Escolas contra a Corrupção, que já está no terreno.
No próximo dia 9 de dezembro, em que comemoramos o Dia Internacional contra a Corrupção, iremos realizar uma ação numa Escola Secundária, transmitida por streaming para todas as escolas. Esperamos que tenha o impacto desejado.
A propósito de “Relatório Panorâmico: Demografia e Educação”, o TdC alertou para o risco de, precisamente em virtude do persistente declínio populacional, o financiamento público se desviar para outr as áreas em desfavor da educação. Considera que as políticas públicas estão suficientemente orientadas para a salvaguarda das próximas gerações, no que respeita à sustentabilidade económica, ambiental e social?
É uma preocupação de todos e a todos os níveis. Não há dúvidas sobre isso. Mas creio que há uma sensibilização muito forte para acautelar a equidade intergeracional nos domínios económico, financeiro, ambiental e social. E o Tribunal de Contas continuará a dar certamente o seu contributo.
O TdC, à semelhança de outras instituições, também se confronta com a falta de recursos humanos, em particular, para acompanhar os dossiers mais sensíveis?

Os recursos humanos são a riqueza das instituições e a sua gestão deve constituir uma preocupação permanente, de forma a garantir uma situação de equilíbrio permanente.
Os recursos são escassos e não devemos estar sempre a lamentar a permanente falta de recursos. É importante que façamos em cada momento o melhor possível com os recursos que temos, sejam recursos humanos, materiais ou financeiros.
Da sua experiência como Director-Geral do Tribunal de Contas durante 25 anos, o que destacaria quanto à evolução do trabalho desenvolvido e ao posicionamento do Tribunal nestes últimos anos?
Creio que o Tribunal de Contas tem sabido adaptar-se às fases de evolução que o País tem vivido, cumprindo a sua missão com independência, verdade, qualidade e sentido de responsabilidade. E, acima de tudo, tem sido uma Instituição geradora de confiança nos cidadãos, sobretudo nos momentos de crise. Todos os nossos relatórios e decisões são públicos e, por isso, escrutináveis.
Como estudioso da história do Tribunal e das Instituições que o precederam desde 1389, creio ter sido sempre uma Instituição relevante na estrutura do Estado.
Numa visão global do TdC, quais são actualmente as suas principais áreas de acção, as mais relevantes e as mais deficitárias?
Não é possível controlar tudo, mas é necessário dispor do poder de controlar a aplicação de todos os recursos públicos.
As nossas ações são definidas segundo critérios de interesse público, tendo em atenção, por exemplo, a sua tempestividade e relevância financeira e social.
Neste momento, o Tribunal tem em cima da mesa a aplicação dos fundos europeus, a contratação pública, a prestação de contas com qualidade, a aplicação total do Sistema de Normalização Contabilística, o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas, a transição climática, as Tecnologias de Informação e os seus impactos, a descentralização e os seus efeitos, a saúde e a segurança social, as infraestruturas, além de muitas outras ações. E, claro, a efetivação, sendo caso disso, das responsabilidades financeiras inerentes à gestão pública.
É um universo enorme e complexo que está a nosso cargo, envolvendo cerca de 6500 entidades públicas. No próximo dia 10 de dezembro, vamos aprovar o plano de ação para o próximo ano. E, no início de 2022, começaremos a preparar o Plano Estratégico 2023-2025.
O Tribunal realiza auditorias e indica muitas vezes infracções e ilegalidades praticadas, formulando também recomendações. O que acontece depois?
Relativamente às recomendações, o Tribunal acompanha sempre o seu acolhimento, fazendo, por vezes, auditorias de seguimento. Os destinatários das recomendações têm o dever de informar o Tribunal sobre o destino dado às recomendações.

O não acolhimento tem de ser justificado perante o Tribunal, responsabilizando sempre o destinatário. Não sendo justificado, constitui infração financeira e, por isso, punível.
No que respeita às infrações financeiras apontadas nos relatórios de auditoria, as mesmas são julgadas na Secção de Julgamento do Tribunal, mediante requerimento, em primeira linha, do Ministério Público. Aqui está uma área em que também é obrigatória a constituição de advogado.
Deixe-me ainda sublinhar que, no caso da fiscalização prévia, os atos e contratos a que o Tribunal recuse o visto não podem ser executados.
A História que as Contas contam
José F. F. Tavares
Mestre em Direito (Ciências Jurídico-Políticas) pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi Advogado de 1982 a 1993, tendo realizado o estágio em Advocacia com Adelino da Palma Carlos. É Professor Universitário nas áreas da Administração Pública e Direito Administrativo e das Finanças Públicas e Direito Financeiro (desde 1980). Foi membro fundador e Diretor da Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente (1994-2013). Coordenador da Revista do Tribunal de Contas. Coordenador das Relações do Tribunal de Contas com a União Europeia e internacionais (1986-2020). Diretor do Gabinete de Estudos do Tribunal de Contas (1986-1995). Diretor-Geral do Tribunal de Contas, sendo, por inerência, Presidente do Conselho Administrativo do Tribunal de Contas e Chefe do Gabinete do Presidente (fevereiro de 1995 – fevereiro de 2020), e Secretário-Geral do Conselho de Prevenção da Corrupção, por inerência do cargo de Diretor-Geral do Tribunal de Contas (2008-2020). Colaborador do Conselho Económico e Social. Membro da Comissão de Fiscalização do Instituto Universitário Europeu (2002-2006). Presidente e Membro do Conselho de Fiscalização da Agência Espacial Europeia (2008-2009). Membro da equipa de Pares que realizou as Peer Reviews ao Tribunal de Contas francês (2011-2012 e 2016-2017) e da equipa de Pares que realizou a Peer Review ao Tribunal de Contas de Espanha (2014-2015).
É Presidente do Tribunal de Contas desde 7 de Outubro de 2020.