A REVISÃO DA LEI DA CONCORRÊNCIA
Foi publicada, em 17 de agosto de 2022, a Lei n.º 17/022, a qual introduz um vasto conjunto de alterações ao regime jurídico da concorrência plasmado na Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, e modifica ainda os Estatutos da Autoridade da Concorrência (AdC). Trata-se da terceira alteração ao regime da concorrência de 2012 e da primeira alteração aos Estatutos da AdC.
O ensejo é a transposição da chamada Diretiva ECN+ (Diretiva UE 2019/1 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, que visa atribuir às autoridades da concorrência dos Estados-Membros competência para aplicarem a lei de forma mais eficaz e garantir o bom funcionamento do mercado interno), a qual retira o seu nome da “European Competition Network”, a rede de cooperação entre as autoridades nacionais de concorrência na UE.
De forma sintética, percorremos de seguida algumas das alterações com maior impacto na vida de empresas, associações empresariais e respetivos dirigentes.
RESPONSABILIDADE DAS SOCIEDADES-MÃE
A delimitação do âmbito subjetivo das normas de direito da concorrência assenta no conceito de “empresa”
– entidade que exerça uma atividade económica, independentemente do seu estatuto jurídico e modo de financiamento – sujeito passivo da imputação da disciplina jusconcorrencial. O perímetro desta entidade é definido pela “unidade económica” decorrente de uma relação de controlo ou laços de interdependência.
A nova versão da Lei da Concorrência (LdC) prevê agora, no seu art. 73.º, n.º 2, al. a), a possibilidade de ser responsabilizada qualquer entidade que integre a “unidade económica” da alegada infratora e a controle. Por outras palavras, uma sociedade-mãe.
À problemática indeterminação do conceito de “empresa” – de raiz económica e não jurídica – junta-se agora a possibilidade de a responsabilidade contraordenacional pela prática de uma infração por uma filial ser imputada à sociedade-mãe. Não cremos que seja solução compatível com o restante ordenamento jurídico português.
Desde logo, à luz do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade sancionatória resultante do art. 30.º, n.º 3, da Constituição: o princípio da responsabilidade individual e pessoal das pessoas singulares e coletivas não nos parece poder ser afastado a propósito da transposição de uma diretiva. Por outro lado, tal imputação implicaria necessariamente uma objetivação da responsabilidade contraordenacional que é impedida pelo princípio constitucional da culpa.
Acrescente-se que, para quem conheça minimamente a dinâmica das empresas multinacionais e o inevitável grau de autonomia de que gozam as respetivas filiais nacionais, o cenário no qual uma sociedade seja responsabilizada pelo comportamento de uma filial do qual não teve conhecimento (nem porventura meios para ter conhecimento) é pouco menos do que uma aberração.
VOLUME DE NEGÓCIOS MUNDIAL
A responsabilização das sociedades-mãe afigura-se particularmente problemática quando conjugada com outra novidade atinente à base de cálculo da coima aplicável.
Seguindo a matriz europeia, a lei portuguesa consagra o modelo assente numa percentagem (máxima de 10%) do volume de negócios anual da “empresa” em causa. Enquanto a lei europeia – direcionada por definição a comportamentos transnacionais – sempre assumiu como referência o volume de negócios total (leia-se global) da empresa, a lei portuguesa nunca explicitou qual a base – nacional ou global – na qual deveria assentar o cálculo da medida da coima.
Compreensivelmente, dada a baliza clara emanada do art. 18.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, segundo o qual a “determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação.” Orientação plasmada, aliás, no art. 69.º, n.º 1, al. b), da LdC que elege como um dos critérios para a determinação da coima a “natureza e a dimensão do mercado afetado pela infração”. Ora, nos casos em que uma determinada prática tenha lugar unicamente no mercado nacional que é, portanto, o mercado afetado, que sentido faz utilizar outro volume de negócios que não o estritamente nacional como base para o cálculo do valor da coima?
A questão é particularmente relevante para empresas multinacionais que tenham presença em Portugal. A nova redação da lei parece, à primeira vista, implicar a contingência de uma tal empresa (leia-se, a sociedade-mãe) enfrentar uma coima calculada sobre o seu volume de negócios total enquanto sanção por um comportamento ocorrido no mercado português. Para a maioria das multinacionais, qualquer percentagem aplicada sobre o seu volume de negócios total resulta numa cifra astronómica, o que suscita óbvias questões à luz do princípio da proporcionalidade.
Não é que a lei impedisse em absoluto a AdC de no passado utilizar o volume de negócios total de determinada empresa como base de cálculo. Simplesmente, atenta a baliza legal que impõe a consideração do “mercado afetado” como critério de determinação da medida da coima, tal somente poderia suceder se o comportamento censurado tivesse afetado o mercado total no qual atuasse a empresa. Ora, neste tipo de casos transnacionais não é normalmente a AdC portuguesa quem tem competência para investigar e sancionar, recaindo tal responsabilidade tipicamente sobre a Comissão Europeia. Por esta razão, e ao que saibamos, a AdC nunca calculou uma coima aplicada a uma empresa multinacional com base no respetivo volume de negócios total.
Não cremos que a nova redação da lei possa modificar esta abordagem, atenta a baliza legal do “mercado afetado” que o RGCO e a própria LdC continuam a consagrar. Parece-nos, assim, ser esta uma alteração que visa sobretudo um propósito dissuasor ad terrorem mas que enfrenta sérios obstáculos legais de vária ordem caso a AdC o pretenda utilizar.
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA NAS ASSOCIAÇÕES EMPRESARIAIS
A anterior versão da lei já consagrava um regime de responsabilidade solidária das empresas que fossem membros de uma associação no caso de esta ser condenada ao pagamento de uma coima em sede de processo contraordenacional. Tratava-se de um regime canhestro padecendo de provável inconstitucionalidade.
A nova versão da LdC apura e detalha o regime, determinando agora que nos casos em que a associação possa entrar em situação de insolvência como resultado do pagamento da coima (cenário provável para a maioria das associações empresariais), deverá ser solicitada a todas as associadas uma contribuição para assegurar aquele pagamento. Caso as contribuições não sejam integralmente recebidas, desencadeia-se então a responsabilidade solidária das empresas cujos representantes tenham desempenhado cargos diretivos na associação ao tempo da infração e ainda das empresas que estavam ativas no mercado onde ocorreu a infração.
Não tendo resolvido todos os problemas de constitucionalidade, o novo regime apresenta-se, pelo menos, mais claro.
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Determina a Lei n.º 17/022 que as alterações nela contidas se aplicam “aos procedimentos desencadeados após a respetiva entrada em vigor”. O que seja exatamente “desencadeados” é questão que irá seguramente ocupar os tribunais nos tempos vindouros pois trata-se de terminologia desconhecida do ordenamento jurídico, sobretudo no campo sancionatório.
Não será a única questão, pois o novo articulado coloca questões complexas de compatibilização entre o direito da UE, o direito constitucional nacional e o direito sancionatório