Incêndios e incendiários
Sempre que ocorrem eventos graves, sobretudo quando divulgados e explorados na comunicação social, logo se levantam vozes a reclamar mais prontas e mais graves sanções penais aos infratores; assim também com os incêndios que nos têm atormentado. É uma reação natural por parte de quem crê que os crimes se previnem eficazmente com a gravosidade das penas. É uma medida fácil, rápida e custa nada, mas a facilidade serve as mais das vezes apenas para justificar ou desculpar a insuficiência de outras medidas de prevenção mais eficazes, mas também mais complexas e onerosas.
Já o Marquês de Beccaria, que muitos consideram o pai do iluminismo penal e dos principais do direito penal clássico, defendia no século XVII que a prevenção dos crimes era mais eficaz com a prontidão das penas e a extirpação das suas causas do que com a gravidade das sanções e ainda agora muitos entendem que assim é e deve ser. A questão é complexa e as opções políticas são essencialmente ideológicas, mais de crença do que de ciência, mas os dados empíricos do passado recente mostram que muitos dos incendiários são inimputáveis, permanentes por anomalia psíquica ou ocasionais por intoxicação pelo álcool ou pela droga e também que muitos dos incêndios são causados por negligência doa seus agentes, devido à mais das vezes à incompetência cultural ou técnica na manipulação das alfaias agrícolas. Haverá sempre, porém, doentes mentais, bêbados, drogados e incompetentes, não sendo a gravidade das penas que os impedirá de causarem os incêndios.
A teoria e a experiência ensinam-nos que a gravidade das penas tem um efeito dissuasor em alguns tipos de criminalidade, sobretudo a de natureza económico-financeira, mas não só, em que a prática do crime pressupõe um juízo de utilidade marginal, mas até nestes a probabilidade da sua descoberta e punição pesa geralmente mais na decisão do que a pena aplicável. Não assim, ou não tanto assim, nos crimes em que a motivação do agente é de natureza emocional como julgamos ser o caso da maioria dos incêndios intencionalmente provocados.
Não temos notícia de que os incêndios causados com dolo sejam motivados por procura de lucro direto ou indireto,
embora muitos o proclamem como principal motivação. É assim também, por exemplo, com a violência doméstica em que o agravamento das penas decretado nos últimos anos parece não diminuir a sua frequência e gravidade. É também geralmente reconhecido que é nas comunidades em que o sistema penal é mais repressivo que se verificam mais crimes e mais graves, questionando-se desde há muito qual a causa e o efeito, com muitos a defenderem que a gravidade das penas aplicáveis tem motivos outros que não só a proporção com a gravidade do dano, o que evidentemente repugna a uma sociedade estruturada e inspirada pelo ideal democrático
O crime de incêndio florestal, p.p. pelos artigos 274.º, 274.º-A e 286.º do Código Penal, é dos mais gravemente puníveis entre os crimes de perigo comum em cuja categoria se insere. Se for doloso, a pena base é de um a oito anos de prisão, mas em razão da gravidade do evento e da motivação do incendiário pode atingir 16 anos. Se for causado por negligência a pena base é a prisão até três anos ou multa, mas em razão da gravidade do evento causado ou se praticado com negligência grosseira a pena tem como limite cinco anos de prisão. Só quem não tenha das penas e das prisões uma ideia mínima do seu real sacrifício pode entender que as penas aplicáveis são insuficientes.
O regime sancionatório previsto na lei para os inimputáveis, para a suspensão da execução da pena de prisão e concessão da liberdade condicional parece-nos adequado à natureza e perigosidade do crime. A lei dispõe que a medida de segurança aplicável aos inimputáveis pode ser aplicada sob a forma de internamento coincidente com os meses de maior risco de ocorrência de fogos e que a suspensão da execução do internamento, a liberdade para prova, a suspensão da execução da pena de prisão e a liberdade condicional podem ser subordinadas à obrigação de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, no período coincidente com os meses de maior risco de ocorrência de fogos. Ao direito penal democrático importa sobretudo a prevenção e o regime sancionatório vigente, aditado em 2017 na sequência das catástrofes que então ocorreram, satisfaz essa finalidade.
Embora durante muitos anos ligado aos bombeiros, não sou esperto nas técnicas do combate aos incêndios nem nas suas causas, mas preocupa-me e perturba-me a ligeireza com que se alterna a procura de causas e culpados e a desmotivação para aqueles que denodadamente fazem o que podem e sabem no combate aos incêndios. É injusto apontar o dedo a quem combate as chamas e nem as loas que lhes cantam de quando em vez compensam moralmente os riscos pessoais, físicos e não só, até jurídico criminais a que estão sujeitos, como o mostram processos pendentes nos tribunais. Impressionam-me os avultadíssimos gastos no combate e os danos, tantas vezes irreparáveis, e simplesmente me interrogo se não vai sendo tempo de atender às causas estruturais dos grandes fogos florestais e começar o combate por aí, o que, dizem os especialistas, será bem mais económico e eficaz. Será, porém, mais fácil e mais barato agravar as penas aplicáveis aos incendiários, para satisfazer o populismo penal reinante neste nosso tempo dominado pelas redes sociais e pelos pasquins do costume. Para o ano haverá mais incêndios, mais propostas de agravação das penas e tudo continuará como até aqui!
Parece haver quem “pense” que os incêndios em Portugal são uma fatalidade e que enquanto houver portugueses continuará a haver incendiários e incêndios! Acabem-se com os portugueses e acabam-se os fogos florestais! Nessa altura ninguém se preocupará nem levantará a exigir medidas, nem sequer o agravamento de penas para os incendiários! Desculpas!
Sejamos justos, porém. Não tenho notícia que as autoridades defendam o agravamento das sanções penais. Fico mais tranquilo