AS DECLARAÇÕES DE RESPONSABILIDADE NO SETOR DA SAÚDE
1. APRESENTAÇÃO DO TEMA
No setor da saúde, alguns profissionais (médicos e enfermeiros) têm vindo a apresentar aos seus superiores hierárquicos declarações que visam afastar a sua responsabilidade por danos que possam ocorrer no âmbito da prestação de cuidados, invocando falta de recursos humanos ou materiais.
Este tema coloca diversas dificuldades jurídicas. Procuraremos sugerir algumas vias de interpretação, com respeito pelos princípios e normas jurídicas aplicáveis, considerando os direitos dos pacientes e a dignidade dos profissionais. Com efeito, estamos a falar de áreas profissionais muito exigentes, quer ao nível da formação, quer ao nível do seu exercício quotidiano.
2. NULIDADE DA DECLARAÇÃO (FACE AOS PACIENTES)
Uma resposta simples à questão da validade destas escusas, seria afirmar a sua nulidade tout court. Para tanto poderíamos invocar a ordem pública ou, ao nível da fundamentação legal, o artigo 809.º CC e, sobretudo a alínea a) do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro[1]
. Esta norma proíbe este tipo de cláusulas, mesmo que merecessem o acordo da contraparte![2]
Ora, sendo – para mais – expressas de forma unilateral, a resposta é a sua nulidade.
A melhor doutrina aceita as cláusulas de exclusão ou limitação da responsabilidade como tese geral.[3]
Todavia, no caso de danos a bens jurídicos pessoais como a vida, a saúde e a integridade física e moral, as cláusulas de exclusão ou limitação da responsabilidade civil são proibidas. Sigamos as palavras do nosso Mestre, Professor António Pinto Monteiro:
“A este respeito, começamos por chamar a atenção para o facto de que, a nosso ver, o art. 504.º, n.º 4, constituirá um precipitado de um princípio mais amplo destinado não apenas a proteger a pessoa transportada, mas a pessoa tout court, de ordem pública, pelo que deverá afirmar-se a nulidade de convenções exoneratórias respeitantes a danos pessoais, independentemente da sua fonte (transporte, produtos defeituosos ou perigosos, intervenções cirúrgicas e atos médicos, em geral, etc.) e da sua natureza (contratual ou extracontratual).
Pela mesma razão se devem considerar interditas quaisquer cláusulas destinadas a limitar ou a excluir uma eventual responsabilidade emergente da atividade médica (lato sensu). (…) Estão em causa valores como a vida, saúde, integridade física, cujo respeito e proteção decorre de princípios fundamentais de ordem pública, não podendo o médico beneficiar de qualquer cláusula exoneratória hipoteticamente aceite pelo doente[4]
.”[5]
Em suma, o direito à reparação por dano injusto, previsto no artigo 24.º da Convenção sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina[6]
, não pode ser afetado. No mesmo sentido, o artigo 483.º do Código Civil, que consagra um princípio geral de direito: o Princípio da Responsabilidade.
Por outro lado, o direito a uma boa prestação de cuidados de saúde não pode ser afetado por estas declarações de responsabilidade. A Lei de Bases da Saúde[7], Base 2, n.º 1, al. b) contém uma redação exigente. A pessoa tem direito: “a aceder aos cuidados de saúde adequados à sua situação, com prontidão e no tempo considerado clinicamente aceitável, de forma digna, de acordo com a melhor evidência científica disponível e seguindo as boas práticas de qualidade e segurança em saúde.”[8]
3. AS RELAÇÕES INTERNAS ENTRE O MÉDICO E A INSTITUIÇÃO E O DEVER DE RESPEITO PELAS LEGES ARTIS
Todavia, o médico – ao redigir estas “declarações de responsabilidade” – pensa em opor estas “escusas” não ao paciente, mas sim face à instituição. É neste âmbito que estes documentos devem ser lidos e interpretados. E, nesse preciso contorno, têm valor jurídico e devem ser tomados em consideração, não apenas no plano político e organizacional, mas também no plano do Direito.
O médico deve, em primeiro lugar, defender a vida e a saúde dos seus doentes. Para tanto deve agir de acordo com as leges artis. Conceito este que ganhou grande âmbito com a ratificação da Convenção sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina, cujo artigo 4.º prevê o valor jurídico das normas técnicas e obrigações profissionais emanados pela ciência (bio)médica. Ou seja, os protocolos, guidelines, normas de conduta ou
– com maior peso ainda – os regulamentos emanados pela Ordem dos Médicos, designadamente o Código Deontológico da Ordem dos Médicos[9] e o Regulamento dos Tempos Padrão das Consultas Médicas[10] – têm valor jurídico e são condição necessária para proteger aquele que é o princípio máximo da medicina: proteger os direitos dos seus pacientes.
4. O DEVER DE OBEDIÊNCIA E O DEVER DE LEGALIDADE
Os médicos são, muitas vezes, trabalhadores subordinados, seja na medicina privada (contrato de trabalho), seja na medicina pública (contrato de trabalho em funções públicas ou outro regime). Consequentemente, o profissional está sujeito ao dever de obediência hierárquica. Donde se pode criar um conflito de deveres: por um lado, o dever de cumprir uma ordem (trabalhar com uma determinada escala de profissionais, ou com determinado equipamento ou sem gozar do descanso legalmente previsto) e o dever de cumprir a lei (que inclui as normas técnicas da profissão). Neste quadro, devemos seguir a doutrina legalista[11] na formulação mais ampla e defender que o médico deve recusar cumprir ordens, se estas violarem a lei em sentido amplo.
No caso dos médicos, o dever de agir de acordo com a lei, com a ética e deontologia profissional e com as regras de boas práticas da profissão (art. 4.º CDHB) sobrepõe-se ao dever de respeitar a hierarquia. Para além de que o médico goza de autonomia técnica, e deve obediência ao imperativo ético de colocar o bem-estar e a saúde do doente como o comando supremo.
Ora, é exatamente nesta confluência de princípios que se situam as “declarações de responsabilidade” ou “escusas de responsabilidade”. O médico zeloso, cumpridor e ciente do seu dever ético e deontológico para com os doentes averigua que não tem as condições adequadas para o cabal e correto exercício da sua profissão. Não pode, pois, o médico calar-se ou omitir o seu dever de “reclamar” (artigo 271.º da Constituição) e avisar perante as situações de risco ou de falta de segurança para os doentes. As consequências práticas far-se-ão sentir sobre a instituição. Vejamos.
5. O MÉDICO EM MEDICINA PÚBLICA
O funcionamento anormal do serviço (n.º 3 e 4 do artigo 7.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro) será mais fácil de provar se o doente juntar aos autos uma “declaração de responsabilidade” do médico, no qual se denunciam carências de meios humanos ou materiais, ou seja, falta de recursos humanos, a escassez de equipamentos ou outros fatores que possam comprometer o exercício da respetiva profissão.
No que respeita à responsabilidade do médico individual, a própria lei já lhe concede uma boa proteção, na medida em que apenas responde se tiver agido com culpa grave ou dolo (cf. art. 8.º da Lei n.º 67/2007). Ainda assim, as “declarações de responsabilidade” podem ajudar a formar o juízo de censura ético-jurídico, “em face das circunstâncias de cada caso” como impõe o n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil.
No plano da responsabilidade criminal e disciplinar não vigora a culpa em abstrato, antes uma conceção subjetivista, pelo que o tribunal deve valorar as condições concretas de exercício da profissão para assacar um justo juízo de culpa. Donde, as “declarações de responsabilidade” podem contribuir para diminuir ou excluir a culpa do agente. Naturalmente, nunca abrange situações de má prática por negligência grosseira ou dolo ou abandono das funções, designadamente, no caso mais extremo, na prática do crime de recusa de médico (artigo 284.º do Código Penal).
6. O MÉDICO EM MEDICINA PRIVADA
No que respeita à responsabilidade do médico individual, a própria lei já lhe concede uma boa proteção
Nestes casos importa recordar que – em regra – há um contrato (um contrato total)[12] – entre o paciente e o hospital/ clínica privada e que este último é o devedor da prestação, pelo que perante um dano decorrente da atividade médica, o hospital será o principal demandado. Também aqui a “declaração de responsabilidade” poderá facilitar a prova de uma “culpa da organização” que conduziu ao dano. Em sede de eventual ação de direito de regresso da clínica contra o médico, este poderia beneficiar de uma diminuição ou exclusão da culpa, com apoio no documento de “reclamação”.[13]
No caso de um contrato dividido, no qual o médico mantém uma relação contratual direta com o doente e trabalha (em regra) sem subordinação e sem vínculos hierárquicos, entendemos que as “declarações de responsabilidade” terão menor eficácia. Perante intervenções programadas, nas quais a expertise e a reputação do médico individual foram o requisito fundamental daquela relação terapêutica, exige-se que este médico apenas exerça a sua profissão se dispuser dos meios (humanos e materiais) adequados. Não poderá este médico alijar a sua responsabilidade, visto que não tem qualquer dever de obediência. Se aceita trabalhar em condições inapropriadas, levando clientes privados para uma clínica sem condições, responde por culpa própria.
CONCLUSÃO
No âmbito das relações externas (face ao paciente), estas declarações não isentam o profissional de responsabilidade civil, nem da sanção penal ou disciplinar. Todavia, podem contribuir para a defesa, em qualquer destas formas de responsabilidade, na medida em que revelam que o profissional é zeloso, preocupado com o bom funcionamento do serviço e cumpriu o seu dever de aviso e reclamação face aos superiores hierárquicos de que existem falhas e carências de recursos humanos e/ ou materiais. O tribunal terá a sabedoria de avaliar a culpa do profissional, “em face das circunstâncias de cada caso”.
No plano das relações internas, o médico fica mais protegido pois cumpriu o seu dever de avisar perante falhas organizacionais e, nos casos em que pudesse haver direito de regresso, o profissional terá a sua posição jurídica robustecida. Pelo contrário, a instituição mais facilmente será condenada por “culpa do serviço” (artigo 7.º/ 3 e 4 da Lei n.º 67/2007) ou por responsabilidade contratual, nas relações privadas.
[1] São em absoluto proibidas, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que: a) Excluam ou limitem, de modo direto ou indireto, a responsabilidade por danos causados à vida, à integridade moral ou física ou à saúde das pessoas;
[2] Cf. António PINTO MONTEIRO em “Exclusões de responsabilidade na atividade médica”, in PEREIRA, André Gonçalo Dias / MATOS, Filipe Miguel Albuquerque / DOMENECH, Javier Barceló / ROSENVALD, Nelson (Coord.), Responsabilidade civil em saúde: diálogo como Prof. Doutor Jorge Sinde Monteiro, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2021, pp. 33-58. Disponível em http://www.centrodedireitobiomedico.org/publica%C3%A7%C3%B5es/publica%C3%A7%C3%B5es-online/responsabilidade-civil-em-sa%C3%BAde-di%C3%A1logo-com-o-prof-doutor-jorge-sinde
[3] António Pinto Monteiro – Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 1985 (3.ª reimpressão), 2020.
[4] Nem a mesma terá qualquer efeito, obviamente, sobre a responsabilidade criminal em que, sendo caso disso – cfr. Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica em Portugal, cit., n.º 3, o médico incorre.
[5] Cf. António PINTO MONTEIRO em “Exclusões de responsabilidade na atividade médica”, in PEREIRA, André Gonçalo Dias / MATOS, Filipe Miguel Albuquerque / DOMENECH, Javier Barceló / ROSENVALD, Nelson (Coord.), Responsabilidade civil em saúde: Diálogo como Prof. Doutor Jorge Sinde Monteiro, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2021, pp. 33-58.
[6] Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, em vigor em Portugal desde dezembro de 2001, publicada no Diário da República I-A, n.º 2, de 03/01/2001: art. 24.º (Reparação do dano injustificado).
[7] Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro.
[8] Cf. o art. 4.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de março.
[9] Regulamento n.º 707/2016, de 21 de julho (Regulamento de Deontologia Médica).
[10] Regulamento n.º 724/2019, de 17 de setembro.
[11] Cf. a exposição de H. DIAS DA SILVA, “A relação de hierarquia na Administração civil e na Administração militar o regime jurídico do dever de obediência”, JURISMAT, Portimão, n.º 3, 2013, pp. 227-259, com a doutrina relevante.
[12] Cf. André DIAS PEREIRA, Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra, 2012, p. 596 – https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes%20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf
[13] Em todos estes casos, colocamos a hipótese de o médico ter agido diligentemente no exercício dos seus deveres profissionais; se alguma falha lhe puder ser assacada, esta deve-se à carência de recursos humanos ou materiais.