Leituras
A “questão portuguesa” das cunhas – e um desafio à Ordem dos Advogados para combater a sua prevalência
A propósito da publicação do seu livro “Anatomia da Cunha Portuguesa” convidamos o João Ribeiro-Bidaoui a escrever sobre corrupção
Mandeville questiona-nos na Fábula das Abelhas sobre quanta virtude pública seria desejável para que uma sociedade mantenha o seu apetite pelo progresso, visto que só avança graças aos seus vícios privados. E desafia-nos: se em público acreditamos que a argamassa da sociedade é o nosso engajamento com, e partilha de, uma ordem de valores cívica e moralmente ancorada, em privado sabemos bem quanto tudo não passa de inveja, competição e exploração do outro e de toda e qualquer pequenina oportunidade.
Ora, não raras vezes o nosso espaço público é ocupado por manifestações colectivas de denúncia face a notícias sobre cunhas. Da manchete do Correio da Manhã aos comentadores clickbait do regime, da conversa de café à viagem de táxi, até às famigeradas redes sociais e suas catacumbas (as caixas de comentários), a indignação, em público, é generalizada. Essa mesma indignação convive lado-a-lado com a convicção resignada de que a cunha é um expediente de uso frequente, normalizado, sendo quase uma idiossincrasia do nosso país, do nosso povo. Em privado, tolera-se a cunha, no dia-a-dia, no que nos é próximo. Mas rasgam-se as vestes em relação a outros, mais distantes, e só quando expostos em público – aumentando a raiva quando se trata de políticos. E é raríssima uma indignação mais cívica, isto é, manifestada também em privado e em relação a quem nos é próximo –quando ninguém está a ver.
Dois mitos contribuem para esta esquizofrenia: a cunha é algo específico de Portugal e dos portugueses; e a sua prevalência é um fado, uma fatalidade, uma inevitabilidade.
Importa, com brevidade, e desde já, matar o primeiro mito.
A cunha não é, nem de perto nem de longe, algo específico de Portugal ou dos portugueses.
É possível identificar condutas semelhantes, com maior ou menor estruturação, em países com contextos sociais, culturais e económicos bem distintos: o piston ou passe-droits em França; o jeitinho no Brasil; o bakchich, nas suas diversas formas, tão magrebino como turco, persa ou paquistanês, e até sobrevivente do comunismo no leste europeu; o guanxi que sobreviveu à violenta revolução cultural chinesa; o string-pulling nos Estados Unidos da América; o brokerage/patronage no Reino Unido – e a lista poderia continuar. Por muito maravilhosos que nos achemos, seria de uma arrogância inqualificável atribuirmo-nos como sede do império de tais problemas civilizacionais (seja o quinto, o sexto ou o sétimo império de uma qualquer poesia que nos encante e adormeça).
O segundo mito, o da fatalidade, requer uma desconstrução mais complexa. Exige que se estabilize uma forma conceptual para a cunha, o que procurei fazer no meu livro “Anatomia da Cunha Portuguesa” que leva à estampa o essencial da minha tese de doutoramento sobre o tema. Sendo o primeiro (!) estudo científico em Portugal sobre a cunha como conduta social, procura cotejar os seus elementos essenciais: a oficiosidade, a funcionalidade, a relacionalidade, a reciprocidade. E faz um primeiro ensaio de catalogação de justificações perante a cunha. Perante diferentes cenários que retratam episódios de acesso a bens públicos e privados na saúde, na educação, no emprego ou na subsidiação, procura-se mapear as justificações que os indivíduos produzem face a tais controvérsias. Esse mapeamento resulta num quadro plural de justificações e denúncias. A cunha é justificada porque “se ajuda, por consideração”, ou para conscientemente “corroer uma regra considerada injusta”, para “cuidar” de alguém necessitado ou por ser uma “decisão livre, fundada em mérito”, ou por “cumprir critérios formais” estabelecidos por regras, ou por simplesmente se poder “fazer aquilo que se quiser”. Ela é denunciada quando desserve inapropriadamente a eficiência da prestação de bens e serviços públicos; ou quando prejudica oportunisticamente a concorrência baseada em mérito e regras; ou quando alguém falha nos seus deveres decorrentes do exercício de determinadas funções; ou quando se abusa de um poder de que se dispõe, em benefício próprio, em vez de servir o bem comum; ou quando se ajuda a fratria para além dos limites do razoável. Este mapeamento não é, nem nunca o poderá ser, exaustivo. Porque os indivíduos apreciam diferentemente cada situação, com sentido crítico e mobilizando diferentes ordens de valores para justificarem o seu comportamento.
A anatomia da cunha e a catalogação das suas justificações e denúncias demonstra que na sua origem estão sempre, entre outros indicadores, a falta de transparência e/ou excesso de relacionalidade de todos os tipos – não só relações políticas/partidárias, mas também filiais, de colegas de escola ou de Faculdade, entre outras relações. Sendo que uma potencia a outra. Quanto menos transparência mais operativa se torna a relacionalidade. É a relacionalidade, mais do que o Estado de Direito, que determina grande parte da nossa vida em colectivo, do nosso projecto de comunidade. E, como tal, gera aristocracias, dinastias, “monarquias” e oligarquias, interdependentes, e que reduzem a necessidade de “se ter que provar”, de “dar provas” – criando uma cultura de acomodação, rentista e, portanto, dividida entre os que estão e têm e todos os outros. A relacionalidade gera desigualdade. Confiamos mais em quem conhecemos do que em processos supostamente públicos e legítimos. Exactamente o contrário daquilo que deve definir uma República.
As cunhas, nas suas diversas formas e nos seus diferentes ambientes culturais, sociais e económicos, são por isso um reflexo de imperfeições na legitimidade dos processos políticos, públicos e administrativos; são reflexo de falta de confiança nas engrenagens, públicas ou privadas, que funcionam com regras; são reflexo da falta de qualificações que permitam o acesso a outro nível de conhecimento tecnológico, que confere legitimidade à regra, para que seja respeitada; são reflexo de desigualdade de acesso, de distribuição e de redistribuição do saber e da informação.
O efeito corrosivo da prevalência das cunhas no sentido comum do que é justo, na confiança no sistema de justiça e na sua utilidade, devem convocar a Ordem dos Advogados para uma profunda reflexão sobre esta epidemia nacional – e sobre como agir em relação aos seus elementos essenciais (a oficiosidade, a funcionalidade, a relacionalidade, a reciprocidade). A prevalência das cunhas é o reconhecimento social de um Estado de Direito a falhar. E é também uma manifestação de desconfiança no Advogado, tão bem definido por António Arnaut, como “a voz da lei que apenas se cala quando a justiça fala”, uma “magistratura cívica” expressão de uma “função ético-social em defesa da justiça e do Estado de Direito”.
Esta “Questão portuguesa” não é nova. Continua a ser uma das nossas grandes questões sociais, talvez até aquela que explique todas as outras, e que ainda não encontrou respostas claras e definitivas, apesar das mais recentes tentativas em 1910, em 1926 e em 1974. Mas parece razoável concluir que ou começamos a combater activamente a prevalência das cunhas, ou continuaremos a viver segundo a lei do mais forte e manchados de uma hipocrisia que faria corar Mandeville.