DOS TRIBUNAIS VIRTUAIS DA PANDEMIA
AOS POSSÍVEIS FUTUROS DA JUSTIÇA
Há muito tempo que se antevia a possibilidade de uma revolução tecnológica na Justiça, que viria vulgarizar as audiências e os tribunais online. Mas esse momento parecia nunca mais chegar.
Agora, com o advento da pandemia, de repente os maiores obstáculos para a implementação desses sistemas foram abruptamente ultrapassados e muito rapidamente foi possível impor e reunir os consensos necessários: a vontade política de realizar esta transformação, a concordância de juízes e advogados, o financiamento e a definição de requisitos e métodos de acesso.
Foi através da Lei 4-A/2020, de 6 de Abril, que primeiro se instituiu um regime processual transitório e excepcional para permitir a realização de diligências através de meios de comunicação à distância, como a teleconferência, videochamada ou outro equivalente. O regime foi aplicado a partir de Abril de 2020 às diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos a correr termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, tribunais arbitrais, julgados de paz, Ministério Público, entidades de resolução alternativa de litígios, órgãos de execução fiscal, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais.
Em 2021 e até Dezembro deste ano, mantêm-se o regime transitório e excecional[1], e as audiências de discussão e julgamento em época de emergência de saúde pública, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, podem realizar-se:
- Presencialmente e com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela Direção-Geral da Saúde (DGS); ou
- Através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas presencialmente e desde que seja possível e adequado, designadamente se não causarem prejuízo aos fins da realização da justiça. O depoimento das testemunhas ou de parte deve sempre ser feito no tribunal, salvo acordo das partes em sentido contrário ou verificando-se direito de não deslocação do interveniente. Este direito de não deslocação aplica-se a quaisquer intervenientes processuais que, comprovadamente, sejam maiores de 70 anos, imunodeprimidos ou portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, que passam a não ter obrigatoriedade de se deslocar a um tribunal, devendo, em caso de efetivação do direito de não deslocação, a respetiva inquirição ou acompanhamento da diligência realizar-se através de meios de comunicação à distância adequados, a partir do seu domicílio legal ou profissional.
Entretanto, de acordo com Richard Susskind, um dos principais autores e estudiosos na área da investigação de soluções futuras para os principais problemas da justiça (acesso à justiça, pendências, etc),
Todos estes tribunais remotos criados como resposta ao coronavírus são meras variações dos tribunais tradicionais. O que se fez, na prática, foi informatizar as velhas práticas de sempre.
Na visão deste autor, colocar o nosso atual sistema judicial no Zoom não é uma mudança de paradigma, é um mero paliativo.
Susskind no seu novo livro “Online Courts and the Future of Justice” (2019) defende que o futuro da justiça passa pelo julgamento da maioria dos pleitos através de tribunais online, que passarão a congregar duas valências diferentes e complementares: por um lado permitirão o “julgamento online” realizado por juízes humanos não num tribunal físico ou por meio de audiências presenciais, mas após a recepção online das provas e argumentos das partes. É um sistema de audição assíncrono, as partes enviam as petições e todas as outras comunicações remotamente, e recebem as respostas e a decisão da mesma forma. Para Susskind o sistema poderá não ser adequado para todos os tipos de acções judiciais, mas permitirá ultrapassar algumas das maiores disfunções sentidas na justiça, principalmente nas acções de valor reduzido, que se sabe implicam um investimento desproporcional de tempo para um advogado e mesmo do próprio tribunal, que não pode ocupar-se muito tempo com conflitos e desavenças relativamente modestas.
Por outro lado, Susskind considera que os tribunais online precisam de passar a ter uma competência mais ampliada. Isto é um aspecto, de certa forma, mais controverso. Susskind chama-lhes “tribunais ampliados”, sugerindo que deverá passar a fazer parte da função do tribunal fornecer um conjunto de ferramentas para ajudar as partes a compreender os seus direitos e obrigações, a formular argumentos, e reunir e organizar provas. Devem ainda fornecer meios para as partes resolverem disputas entre si, de forma semelhante à resolução alternativa de litígios online. O autor acredita que a combinação de decisões judiciais online e de competências ampliadas, permitira aumentar muito o acesso à justiça.
Mas indo ainda mais longe, Susskind sugere que o futuro da Justiça passa necessariamente, numa primeira geração, como acima descrito, pela criação destes tribunais online, onde todo o processo, desde a petição inicial até à decisão é feito virtualmente, através de meios de comunicação à distância; e em que são disponibilizados ao público mais serviços, numa extensão da competência material que existe actualmente nos tribunais judiciais. Os cidadãos passariam a poder recorrer aos tribunais online também para receber diagnósticos sobre as suas opções legais, ajuda com as provas e argumentação e ainda utilizar meios alternativos de resolução de litígios.
Na segunda geração destes tribunais tecnológicos, passa a utilizar-se a tecnologia existente, em particular a inteligência artificial, para ajudar a resolver disputas, sem exigir a presença de advogados, de juízes ou dos outros actores do sistema judicial tradicional. Para o autor é totalmente concebível que dentro de um número relativamente pequeno de anos, existam programas ou ferramentas que conseguem prever os resultados das decisões judiciais, com base em decisões anteriores, usando análise preditiva. Assim será possível desenhar um sistema em que as pessoas possam optar, em vez de aguardar como hoje em dia pela conclusão de um demorado e dispendioso processo judicial, por utilizar um sistema de previsão sobre o resultado provável de um caso, e aceitarem esse resultado como uma solução vinculativa para o seu conflito.
Com estas soluções Susskind considera possível contornar o grave problema do acesso à justiça. A tecnologia pode oferecer uma melhoria dramática nesses resultados e dar às pessoas uma maneira de resolver disputas de formas que antes não eram possíveis.
E O FUTURO DOS ADVOGADOS
Até agora a introdução da tecnologia no sistema jurídico tem sido feita para auxiliar os advogados principalmente na realização de trabalhos de “back office”, como o uso de e-mail, sistemas de contabilidade, processamento de texto e muitos outros. Mas agora, começam a ser ponderados os méritos de usar a tecnologia para automatizar tarefas tradicionais de “front-office”, como a análise de documentos ou mesmo a sua redação. Para alguns, os advogados do futuro serão as pessoas que desenvolvem os sistemas que permitem resolver os problemas dos clientes, passando a funcionar como “engenheiros de conhecimento jurídico”, gerentes de riscos jurídicos, promotores de sistemas, especialistas em “design thinking” e muito mais. No fundo serão as pessoas que desenvolverão novas formas de resolver problemas jurídicos, com o apoio da tecnologia.
Susskind acredita que esta revolução terá lugar já na próxima década, as máquinas e os advogados trabalharão lado a lado, e alguns empregos serão assumidos pela Inteligência Artificial. Defende que o sistema jurídico e, portanto, o trabalho de um advogado mudarão porque a tecnologia passou a permitir a resolução de problemas de uma forma inovadora. Assim, por exemplo, o facto de se prever que no futuro haverá muito menos casos julgados em tribunais tradicionais levará a uma menor necessidade de advocacia de barra. Para o Autor os advogados podem optar por se opor à emergência, ou competir com estes novos sistemas, ou ajudar a criá-los, sendo que a dinâmica da evolução prevista aconselha a última opção.