Uma nova questão de constitucionalidade em torno do Regime Geral das “contraordenações”: o RJCE
I. No n.º 4018 (correspondente ao período de setembro-outubro de 2019) da Revista de Legislação e de Jurisprudência, pôde relembrar-se, sintetizando-o, o regime vigente acerca da reserva relativa de competência legislativa em tema de «contraordenações».
Relembrou-se, então[1], que
■ a alínea d) do n.º 1 do art. 165.º da Constituição se situa na dimensão de exigência intermédia do princípio da reserva relativa de competência legislativa;
■ esta dimensão diz respeito às hipóteses em que a reserva legislativa parlamentar tem a ver com os limites de um regime geral;
■ é da relação entre a citada alínea e o art. 112.º igualmente da Lei Fundamental que resulta a definição do «regime geral das contraordenações» como lei de valor reforçado;
■ e, enfim, concretizando, é preciso estar-se perante uma lei que autorize a previsão de uma norma quando se pretenda que esta ultrapasse os limites do RGCO para evitar um juízo de inconstitucionalidade orgânica.
II. Ora, o recente (surgido em plena pandemia e, talvez por isso, ainda não objeto da necessária crítica legislativa) RJCE – «Regime Jurídico das Contraordenações Económicas», aprovado como anexo do Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, e abreviadamente designado por «RJCE» a partir quer das alterações introduzidas pelos artigos 3.º a 180.º, quer do n.º 2 do art. 182.º, todos do próprio decreto-lei – , visto, promulgado e referendado por vários juristas, pretende ultrapassar, ou seja, ir para além de vários dos limites resultantes do RGCO.
Para esse efeito, o citado Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, afirma expressamente basear-se na «autorização legislativa concedida pelo n.º 1 do artigo 325.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março» (cf. a primeira parte do último § do preâmbulo do decreto-lei). Esta lei é a que aprovou o Orçamento de Estado para 2020 e a autorização legislativa contida no respetivo art. 325.º veio a ser alterada pelo art. 2.º da Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho.
Executando o regime das autorizações legislativas (id est, o regime constante dos números 2 e seguintes do referido art. 165.º da Constituição), deste art. 325.º desta lei de 2020 resultava uma indicação de caducidade; e foi precisamente esta última o objeto da alteração do cit. art. 325.º em julho, prorrogando tal termo final do prazo de caducidade até 31 de dezembro de 2020.
III. Com esse (assim alargado) limite temporal, foi concedida pelo Parlamento ao Governo autorização para:
■ «aprovar o regime jurídico das contraordenações em matéria económica, e, nesse âmbito, definir o conceito de contraordenação económica como todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao acesso ou ao exercício, por qualquer pessoa singular ou coletiva, de atividades económicas nos setores alimentar e não alimentar e para o qual se comine uma coima, e tipificar comportamentos que se enquadrem naquele conceito» (é a parte descritiva do n.º 1 do cit. art. 325.º)
■ e (na parte descritiva ou enunciativa do seu n.º 2) para:
«a) Criar um regime processual adequado que assegure os direitos de audiência e defesa dos arguidos;
«b) Qualificar as contraordenações referidas no número anterior em ‘muito graves’, ‘graves’ e ‘leves’ e, em função desta qualificação, criar um regime sancionatório eficaz, proporcional e dissuasor;
«c) Atualizar os limites máximos das coimas aplicáveis, em montante superior ao fixado:
«[i) No regime geral estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, na sua redação atual; e
«[ii) Aos ilícitos de mera ordenação social constantes da atual legislação relativa ao acesso ou ao exercício, por qualquer pessoa singular ou coletiva, de atividades económicas nos setores alimentar e não alimentar;
«d) Atribuir, no âmbito deste regime e na falta de previsão legal em contrário, à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica a qualidade de principal entidade com competência para a fiscalização, instrução e decisão;
«e) Estabelecer o regime das medidas cautelares, nomeadamente da apreensão dos bens utilizados na e para a prática da infração;
«f) Definir o regime das sanções acessórias;
«g) Criar o instituto da advertência;
«h) Fixar as circunstâncias atenuantes e agravantes na aplicação das coimas;
«i) Prever a publicitação das decisões administrativas ou das sentenças judiciais condenatórias; e
«j) Instituir o regime de perda de objetos independentemente da aplicação de coima.».
IV. Com base nesta autorização, o decreto-lei que aprovou o RJCE estava, portanto, habilitado a fazer constar deste novel regime várias estatuições normativas que iriam, como vão, para além dos limites do RGCO.
Mas não, evidentemente, para ultrapassar este último em temas não contidos na autorização concedida.
Temas entre os quais se contam, nomeadamente, a «reincidência» (art. 24.º do RJCE) e uma diversa regulação do pagamento voluntário da coima (art. 47.º do RJCE por confronto com o art. 50.º-A do RGCO).
Ou seja: relativamente a casos como estes, está-se claramente perante situações de inconstitucionalidade que a doutrina qualifica como orgânica[2], ainda que a mesma possa atingir o diploma em causa apenas de modo parcial[3].
Mais um passo em falso, portanto, no já tão atormentado percurso legiferativo «contraordenacional»
[1] E num contexto prático ou diretamente aplicativo, por isso que se tratou de uma anotação jurisprudencial: JOSÉ DE FARIA COSTA e MIGUEL PEDROSA MACHADO, “TC – Acórdão 728/2017 (Contra-ordenações e reserva de lei)”, RLJ, ano 149º, esp. a pp. 73-78.
[2] Por todos e por último, JORGE MIRANDA, Atos legislativos, reimp. Coimbra: Almedina, 2022, p. 186. Bem se sabe que a obra principal deste Autor no ensino do Direito Constitucional entre nós é o Manual de Direito Constitucional, publicado entre 1981 e 2015 e apresentado, a final, em 7 tomos (o 1.º em 2 subtomos em 10.ª ed., de 2014; o 2.º em 7.ª ed., de 2013; o 3.º em 6.ª ed., de 2010; o 4.º também em 6.ª ed., mas de 2015; o 5.º em 4.ª ed., de 2010; o 6.º em 4.ª ed., de 2013; e o 7.º em 1.ª ed., de 2007); Manual sobre o qual escrevi no n.º 46 da Revista Brasileira de Direito Comparado (durante muitos anos a publicação semestral do Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro), a pp. 189-193, em texto completado num outro que aguarda publicação; à atualização desse enorme manancial formativo e informativo do Manual tem o Autor procedido, nos últimos anos, por meio da edição de volumes temáticos autónomos dos quais o título indicado no início desta nota é exemplo.
[3] Também por todos, JORGE MIRANDA, agora noutro dos seus recentes volumes temáticos: Fiscalização da constitucionalidade, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 36.