Antever o futuro
O “ECOCÍDIO”: UM CRIME QUE FAZ FALTA NO ESTATUTO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL?
Em 2010, Polly Higgins, advogada ambientalista e fundadora do movimento Earth Law Alliance defendeu, no seu livro Eradicating ecocide, uma alteração ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional (doravante, Estatuto) com vista à introdução no seu seio do crime de “ecocídio”, que definiu nos seguintes termos:
“Ecocide is the extensive damage to, destruction of or loss of ecosystem(s) of a given territory, whether by human agency or by other causes, to such an extent that peaceful enjoyment by the inhabitants of that territory has been or will be severely diminished”.
Polly Higgins, entretanto falecida, foi porventura a mais persistente activista da alteração do Estatuto no sentido do acolhimento de um tipo penal que permita punir da forma mais severa admitida pelo Direito condutas que originem danos massivos ao ambiente fora de um cenário de guerra.
O facto de a definição se referir a acções humanas ou outras causas seria o bastante para a condenar ao fracasso (um crime tem de ter um autor a quem se possa imputar o comportamento ilícito e culposo). Mas a inscrição de tal crime no Estatuto enfrenta outros obstáculos, de natureza política, axiológica e jurídica. Vejamos.
Da perspectiva política, deve apontar-se a atribulada história do “crime contra o ambiente” no Estatuto. A versão que vingou está plasmada no artigo 8º, nº 2, al. b), subalínea iv), desenhando um “crime de guerra”, no cenário de um conflito internacional, traduzido em “Lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos em bens de carácter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e directa que se previa” (realçado meu). Esta hipótese é de árdua configuração, pela dificuldade de reunir (e provar) todas as condições, e acantona a punibilidade de danos ao ambiente num palco bélico internacional. Foi, no entanto, a fórmula que permitiu reunir consenso na Comissão de Direito Internacional (doravante, Comissão), que desde os anos 1950 apresentou várias propostas[1].
A dificuldade de definir um tipo que granjeasse unanimidade liga-se, naturalmente, à resistência dos Estados em se comprometer com uma solução com alto potencial aplicativo. Sendo certo que são indivíduos e não Estados a sentar-se no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional (uma vez que a incriminação do Estado traduz a incriminação de povos, de pessoas inocentes, afrontando o princípio de que “societas delinquere non potest”), a permeabilidade da fórmula a condutas desenvolvidas num contexto de normalidade alargaria o seu âmbito a um vasto espectro de actores económicos, traduzindo um desafio político que não se pretendeu assumir. Reverter este quadro implicaria reunir a unanimidade dos Estados parte — uma vez que o artigo 22º do Estatuto prevê a possibilidade de alteração dos elementos dos crimes nele constantes por maioria de 2/3 dos Estados partes, hipótese que não se aplica, todavia, em caso de criação de um novo crime.
No que toca à questão axiológica, o problema que se coloca é o de saber se, avançando para uma criminalização do dano sério ao ambiente, se deve adoptar uma postura antropocêntrica ou ecocêntrica. Por outras palavras, é necessário saber se o ambiente é encarado como valor intrínseco ou enquanto contexto vivencial, sendo que nesta segunda hipótese, o preenchimento do tipo pressupõe a afectação de direitos humanos como a vida, a integridade física, a habitação, a propriedade. De certa forma, é isso que se passa em certos casos de genocídio e de crimes contra a Humanidade (cfr. os artigos 6º e 7º do Estatuto) no âmbito dos quais, no intuito de destruir um grupo étnico, rácico ou religioso, ou de lhe mover perseguição com vista ao deslocamento, se promove a degradação do meio natural em que se insere. Nestes casos, o bem jurídico protegido não é o ambiente enquanto tal, mas as pessoas e comunidades que integram tais grupos.
O mais próximo que se esteve de consagrar o crime de “homicídio ecológico” foi na versão do anteprojecto do Estatuto de 1991, do qual constava a seguinte proposta:
“Article 26. Willful and severe damage to the environment
An individual who willfully causes or orders the causing of widespread, long-term and severe damage to the natural environment shall, on conviction thereof, be sentenced [to …]”.
Repare-se que aqui o bem jurídico é o “natural environment” (não o “human environment” de versões anteriores e dos artigos 6º e 7º referidos), que a conduta deve ser intencional e que o dano há-de ser severo, em razão da intensidade, da extensão e da duração. Os qualificativos do dano permaneceram no actual artigo 8º, nº 2, b), iv), e o bem jurídico também; porém, o contexto reduziu-se de tal forma que o crime é de quase impossível verificação e/ou prova.
A estes escolhos, políticos e axiológicos, juntam-se as complexidades jurídicas de conseguir desenhar um tipo que contenha os elementos necessários ao patamar de exigência de uma norma de natureza penal [2](a precisão da hipótese de ilicitude; a exigência de culpa); que cubra situações de facto tão diversas como danos ao ar, à biodiversidade, ao mar, aos recursos hídricos, ao solo e subsolo; através de meios muito diferenciados (poluição por hidrocarbonetos, por plásticos, por substâncias químicas; degradação de solos; sobrecaça e sobrepesca); em momentos que podem distanciar-se dias ou anos; em processos cumulativos e dinâmicos; e quantas vezes misturando acção humana e (agravada por) causas naturais.
Note-se que quando a Comissão discutiu o projecto de artigo 26º, o principal problema apontado ao preceito residiu na imposição de que a conduta fosse determinada por uma intenção de causar dano ao ambiente, quando muitas actividades económicas têm esse resultado mas não esse intuito. O preceito seria curto para penalizar a “willfull blindness”, a indiferença consciente com que muitas empresas actuam, mormente no domínio extractivista. Acresce que a redacção do preceito indicia uma comissão por acção e não por omissão (causes or orders the causing), sendo certo que muitos atentados ao ambiente acontecem em virtude de inacções.
Esta síntese demonstra que o ecocídio não foi um crime esquecido pelo Estatuto — antes um crime descartado (salvo em teatro de conflito armado internacional, o que equivale na prática a uma hipótese rara). Mas será um crime necessário?
Por um lado, poderá defender-se a criação do novo crime dada a relevância que a questão da protecção do ambiente assumiu na era do Antropoceno; tendo em mente a vertente dissuasora que uma norma de natureza penal envolve, mais a mais com a característica de imprescritibilidade que lhe empresta o Estatuto (cfr. o artigo 29º); considerando as diferenças entre ordenamentos jurídicos nacionais, com graus de exigência de cumprimento de deveres de prevenção de danos ambientais muito diversos — não assegurando, portanto, a primeira linha de defesa, o que enfatiza a importância da subsidiariedade do Estatuto.[3]
Por outro lado, poderá contrapor-se que a defesa do ambiente, no plano internacional, passa sobretudo pela adopção de uma atitude de cooperação preventiva, que se materializa, do ponto de vista jurídico, através da construção de quadros regulatórios eficazes na disciplina de actuação dos agentes económicos; que a existência de sanções penais nos ordenamentos de origem das empresas que causam danos ao ambiente em Estados com quadros regulatórios frágeis ou inexistentes ou com sistemas judiciários débeis seria suficiente, se aplicáveis pelo sistema do Estado a cujo ordenamento estão vinculadas; que os processos junto do Tribunal Penal Internacional são escassos, longos e nem sempre bem sucedidos.
Julgo que, mesmo ponderadas as dificuldades de inscrição de um novo crime no Estatuto, os escolhos de funcionamento do Tribunal Penal Internacional e de prova dos comportamentos ilícitos, o estado de percepção da emergência ambiental a que se chegou justificaria o passo. Por uma questão de equilíbrio com outras realidades, poderia porventura utilizar-se o conceito de “common concern of Mankind” associado a realidades como o clima e a biodiversidade para forjar uma quinta categoria de crimes — os crimes contra bens de interesse comum da Humanidade — que abrangesse casos de degradação intensa e duradoura, ou destruição, de elementos do ambiente natural, mas também de elementos do património cultural (recorde-se que o crime contra monumentos históricos também integra o grupo dos crimes de guerra, mas fora de cenários de conflito internacional — ou seja, com âmbito bem mais abrangente: cfr. o artigo 8º, nº 2/e) iv do Estatuto[4]. Seria, se não mais, um símbolo dos novos tempos.
[1] Cfr. Carla Amado Gomes, Crimes contra o ambiente como crimes contra a paz e a segurança da Humanidade, in O Direito Internacional e o uso da força no século XXI, coord. de Maria Luísa Duarte e Rui Tavares Lanceiro, Lisboa: AAFDL, 2018, pp. 299-319.
[2] Cfr. o artigo 19º do Estatuto.
[3] De acordo com o artigo 17º do Estatuto, este só se aplica em caso de inexistência de quadro legal que preveja o sancionamento no ordenamento aplicável, ou se o aparelho judicial do Estado em cuja jurisdição ocorreu o dano se revelar ineficaz. Em muitos ordenamentos nacionais, os crimes de dano ao ambiente estão previstos e em pontuais situações inscreveu-se mesmo o ’ecocídio’ nas leis penais nacionais — cfr. o pioneiro artigo 278º do Código Penal do Vietname, de 1980, o artigo 394º do Código Penal da Arménia, de 2003 ou ainda, mais recentemente, a iniciativa legislativa francesa em curso de criminalizar a poluição intencional, séria e duradoura, de água, ar e solo com uma pena até 10 anos de prisão e multa até 4.5 milhões de euros.
[4] Recorde-se que, ao abrigo desta disposição, já se regista uma condenação do criminoso de guerra Ahmad al-Faqi al-Mahdi pela (confessada) destruição de nove templos e uma mesquita de Tombuctu, em 2010, a nove anos de prisão e ao pagamento de uma indemnização de 2.7 milhões de euros.