Leituras
Mundo global ou países fechados?
A propósito da publicação do livro “A grande escolha” convidamos Adolfo Mesquita Nunes a escrever sobre os efeitos da globalização.
A globalização é o maior instrumento de progresso que a Humanidade alguma vez conheceu. Nunca nada contribuiu de forma tão decisiva para dar a milhões e milhões de pessoas novas oportunidades e melhores condições de vida.
Desde 1980 que a taxa de pobreza mundial desce. Em 1981, 42% da população mundial vivia em pobreza extrema. Em 2010, essa percentagem era de 16%, e estava abaixo dos 10% quando a pandemia chegou. Foi nas últimas duas décadas que a pobreza mais desceu.
Não foi a exploração dos pobres que causou este enriquecimento: de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 65 dos 75 países estudados reduziram a pobreza “de forma notável” neste século.
Hoje a pessoa média do Mundo é 4,4 vezes mais rica do que era em 1950.
Não se trata só de ganhar mais dinheiro. Esse dinheiro hoje ser gasto em coisas que estavam inacessíveis há 50 anos: medicamentos, vacinas, cuidados de saúde, telemóveis, computadores, viagens, comida sem glúten, tratamentos veterinários, transportes, etc…
De facto, quando desvalorizamos o quão mais ricos estamos, esquecemos das enormes dificuldades dos nossos avós.
Esquecemos a medicina da altura: os antibióticos escasseavam, a vacinação não existia, muitas doenças não tinham cura, as possibilidades de uma mulher morrer no parto eram enormes, assim como eram maiores as possibilidades de o bebé morrer.
E esquecemos que as mulheres tinham poucos direitos, que os métodos anticoncepcionais eram primitivos, que as minorias eram mais discriminadas, que o trabalho infantil era uma chaga ou que electrodomésticos eram bens de luxo.
E note-se que estes resultados desafiam uma lógica que muitos consideram imbatível: para alguém ganhar, outro tem de perder.
Se acreditássemos nisso, o aumento da população seria suficiente para nos levar à pobreza. De 1950 até 2016 o rendimento médio global cresceu 4,4 vezes, enquanto a população aumentou 3: se a economia não tivesse crescido, esse aumento da população significaria que, em média, seriamos 3 vezes mais pobres hoje.
E se há indicador que permite tirar as teimas, é o da esperança média de vida. Desde 1900, mais do que duplicou. Quem nascesse em 1960, poderia esperar viver até os 52,5 anos. Hoje, pode esperar viver até aos 72, vinte anos mais.
Se o Mundo estivesse pior, estas melhorias – sustentadas em sistemas que protegem a iniciativa económica, a propriedade privada, a liberdade contratual, o livre comércio e o acesso ao crédito e a uma moeda segura – não teriam acontecido.
A este propósito há quem refira que a pandemia veio provar o contrário.
Vale a pena recordar. A 7 de Janeiro de 2020 os chineses identificaram a Covid-19. A 11 de Janeiro, divulgaram o genoma. Dias depois, já o Mundo tinha inventado testes que foram disponibilizados globalmente.
Semanas depois, milhares de investigadores desenvolviam terapias e vacinas. Em vez de começarem do zero, recorreram à experiência uns dos outros com máquinas e técnicas vindas de todo o Mundo.
Entretanto, as cadeias de valor globais não colapsaram: não houve fome nem falta de bens ou serviços essenciais, que nos chegaram de todas as partes. Claro que foi preciso actuar, mas esta pandemia não quebrou as cadeias que nos alimentam e nos tratam e nos permitem seguir o nosso modo de vida.
Se não existissem cadeias de valor globais, se não existisse liberdade de circulação, não teríamos tantas máquinas e técnicas e centros de investigação capazes de em poucas semanas avançar tanto, nem teríamos tanta informação, nem tantas formas de continuar a trabalhar. Tudo isto porque há liberdades de circulação e comércio internacional: porque há globalização.
E é por isso que, por mais dramática que esta pandemia esteja a ser, e está, a verdade é que ela não tem semeado destruição equiparável às pandemias do Século XVIII.
Nessa altura, o Mundo estava protegido das viagens, mas estava mais vulnerável e isolado. Se os vírus podem circular mais depressa, também é verdade que graças à globalização o Mundo está mais preparado para responder a este desafio.
Isto não significa que está tudo bem. Claro que há problemas urgentes. Precisamos de muito mais. Mas nada do que precisamos de melhorar pode ser atingido se prescindirmos do maior instrumento de progresso que o Mundo conheceu. Nenhuma destas conquistas de progresso aconteceu por acaso: aconteceu por causa das liberdades de circulação.
O pior que podíamos fazer era entrar numa espiral proteccionista, fechando fronteiras, proibindo a concorrência.
Um Mundo fechado, que prescinde das liberdades de circulação e do livre comércio internacional é um Mundo mais pobre, com menos instrumentos de progresso, mas também mais propenso ao populismo: um Mundo mais favorável ao conflito e à guerra, como a década de 30 do Século passado comprova.
Isso não significa, dizia eu, que não existam sérios desafios, que temos de enfrentar; e esses são normalmente apontados como exemplos do fracasso da globalização.
Que acusações são essas? O aumento das desigualdades e o reforço dos mais ricos, destruição de emprego por conta da automação e deslocalização, salários em baixa por causa da exploração capitalista, habitação a preços descontrolados por conta do investimento estrangeiro, dependência das cadeias de valor globais que nos deixam desprotegidos, monopólios digitais que controlam o mercado e amarram os consumidores e falta de justiça fiscal no tratamento das grandes empresas.
Esses desafios são espelho ou consequência de termos um Mundo aberto ao outro, ao estrangeiro, à concorrência, à competitividade, onde pessoas, empresas, bens, serviços, capitais, circulam com facilidade e velocidade, onde somos desafiados e confrontados permanentemente com a mudança; e, definidos como consequência inevitável da globalização, estão na base de um profundo sentimento de desigualdade e inadaptação, este sabor a derrota, que é cada vez mais generalizado, sobretudo nas novas gerações e nas classes médias.
Foi por isso que senti que tinha de escrever A Grande Escolha (Dom Quixote, 2020).
Ao longo desse livro analiso esses desafios, olhando para os dados disponíveis, desmontando os mitos que sobre eles se estão a construir. Por exemplo, é falso que as desigualdades estejam a aumentar, que a automação esteja a destruir mais emprego do que cria, que as cadeias de valor global nos vulnerabilizam, que mais impostos contribuam para melhor Estado Social, etc…
Mas não basta desmentir esses mitos, seja porque esses desafios existem, embora conformados de forma distinta da que ouvimos por parte dos detractores da globalização, seja porque as sociedades precisam de respostas inspiradoras.
Em cada um desses desafios procurei apresentar políticas que levam à partilha social dos ganhos e perdas da globalização, que maximizem as suas oportunidades e mitiguem os seus riscos, que garantam que as nossas sociedades fazem parte de um movimento de prosperidade, de oportunidades, de um projecto que as coloca no centro, que as integra, que não as deixa à margem.
Não quero cair num exercício de optimismo incapaz de reconhecer os enormes desafios causados pela globalização. Pelo contrário, há desafios sérios e precisamos de um novo guião de políticas públicas se queremos dar resposta às apreensões e justas reivindicações das nossas sociedades.
Foi essa a proposta d’A Grande Escolha: contribuir para restaurar o nosso contrato social, afirmar que é possível conciliar o comércio internacional com políticas destinadas a dar a segurança e a estabilidade de que sentimos falta, mostrar que a economia de mercado é o modelo a seguir para a prosperidade.
Nós não precisamos de desglobalizar: precisamos de melhorar a globalização que temos.