O mecanismo utilizado pelo União Europeia é particularmente apto para lidar com um fenómeno com estas dimensões, mas conviria acompanhar a sua execução e corrigir as suas insuficiências.
A invasão da Ucrânia por parte da Federação Russa provocou a pior crise humanitária e de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial.
Segundo dados das Nações Unidas, são já cerca de 5 milhões os refugiados que saíram da Ucrânia, um país com 44 milhões de habitantes, num conflito ainda sem fim à vista.
A crise de refugiados no Mediterrâneo, em 2014/2015, havia já demonstrado a incapacidade dos instrumentos jurídicos vigentes para lidar com fenómenos de deslocação de grandes massas de população.
Em 2015, registou-se a entrada de mais de um milhão de pessoas vindas do Mediterrâneo nas fronteiras da União Europeia, provocando o colapso do sistema de asilo da UE e a suspensão do chamado “sistema de Dublin”.
Ora, a referida invasão da Ucrânia criou já um número de refugiados cinco vezes superior ao registado em 2015, em muito menos tempo, o que revela a dimensão do conflito e do problema.
A União Europeia decidiu, em 3 de março, ativar o mecanismo constante da Diretiva de Proteção Temporária, aprovada em 2001, o qual nunca tinha sido usado, e foi pensado para lidar com situações de fuga em massa de população de situações de conflito, precisamente o que ocorre com os refugiados ucranianos.
Ao contrário do que sucede com o sistema de asilo, o mecanismo de proteção temporária dispensa a realização de uma entrevista individual e uma decisão caso a caso de cada requerente de asilo.
De acordo com o disposto na Diretiva 2001/55/CE do Conselho, de 20 de julho de 2001, a proteção temporária consiste num procedimento de carácter excecional que assegure, no caso ou perante a iminência de um afluxo maciço de pessoas deslocadas de países terceiros, impossibilitadas de regressar ao seu país de origem, uma proteção temporária imediata a estas pessoas, sobretudo se o sistema de asilo também não puder responder a este afluxo sem provocar efeitos contrários ao seu correto funcionamento, no interesse das pessoas em causa e no de outras pessoas que solicitem proteção.
Aos beneficiários de proteção temporária são reconhecidos direitos como habitação, subsistência ou educação. É ainda garantido o direito ao reagrupamento familiar dos deslocados.
Este mecanismo, embora mais célere, protege menos que o asilo uma vez que, por ser temporário, pode vir a cessar antes de terminado o conflito. Por essa razão a diretiva determina que os beneficiários de proteção temporária não perdem, por esse facto, o direito a requerer asilo, nos termos gerais. Isto não significa, naturalmente, que os estatutos sejam cumuláveis. O beneficiário de proteção temporária pode, enquanto tal, requerer asilo, mas, uma vez atribuído o estatuto de refugiado, deixa de beneficiar da proteção temporária, até porque este estatuto é mais permanente e confere uma proteção mais robusta.
Portugal transpôs a referida Diretiva para o ordenamento jurídico nacional através da Lei n.º 67/2003, de 23 de agosto. Esta lei não se limitou a transpor a diretiva europeia mas criou um regime próprio nacional permitindo, entre outros aspetos, que a proteção temporária possa ser atribuída pelo Estado Português, através de Resolução do Conselho de Ministros, independentemente da decisão do Conselho da União Europeia, considerando, em cada situação, os riscos que recaem sobre as pessoas deslocadas, a urgência e necessidade de proteção temporária e as consequências para a ordem pública e segurança nacionais.
Isto mesmo sucedeu agora. Considerando a natureza urgente da situação de conflito armado na Ucrânia, Portugal tomou a iniciativa de conceder proteção temporária a pessoas deslocadas, num momento anterior à aprovação, pelo Conselho da União Europeia, da Decisão de Execução (UE) 2022/382, de 4 de março de 2022, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 29-A/2022, de 1 de março.
De acordo com esta Resolução, Portugal decidiu conceder proteção temporária, com a atribuição automática de autorização de residência, pelo período de um ano, com possibilidade de prorrogação do respetivo título de residência, aos cidadãos nacionais da Ucrânia e seus familiares, provenientes do seu país de origem, não podendo ali voltar, em consequência da situação de guerra que aí ocorre. Esta proteção abrange ainda os cidadãos estrangeiros de outras nacionalidades que comprovem ser parentes, afins, cônjuges ou unidos de facto de cidadãos de nacionalidade ucraniana que se encontrem nas circunstâncias previstas no número anterior. Para a determinação dos factos referidos é admitido qualquer meio de prova.
O mecanismo utilizado pela União Europeia é particularmente apto para lidar com um fenómeno com estas dimensões, mas conviria acompanhar a sua execução e corrigir as suas insuficiências.
Desde logo, importa informar as pessoas, a começar pelos ucranianos deslocados, do modo de funcionamento do mecanismo. Apesar de muito simples, tanto o registo como a prova dos factos que permitem a sua utilização devem ser feitos pelo que é importante garantir que todas as pessoas acolhidas se encontram devidamente registadas e os seus dados recolhidos.
Por outro lado, é importante desencorajar os chamados “movimentos secundários”, que se traduzem em mudanças de país de acolhimento após a atribuição da proteção temporária, o que ocorreu com frequência na crise de 2015 e muito contribuiu para a desorganização dos sistemas.
Também essencial é garantir equidade na distribuição do número de beneficiários de proteção temporária. Como se viu em 2015, e após uma reação genericamente favorável dos Estados de acolhimento, as opiniões públicas acabaram por se mostrar saturadas ao fim de algum tempo, o que gerou posições extremadas, movimentos anti-imigração e discursos político-partidários contrários à integração de imigrantes nas sociedades europeias. Importava garantir que este fenómeno não se repete, sobretudo agora perante números de beneficiários, como se viu, muito superiores.
Uma das maiores dificuldades em 2015 foi assegurar equidade na receção de refugiados entre os Estados membros da União Europeia. Nessa altura os Estados do chamado “grupo de Visegrado” opuseram-se a um qualquer sistema de quotas e inviabilizaram a reforma do sistema europeu de asilo, mesmo que essa reforma tenha sido identificada como uma prioridade na agenda europeia para as migrações.
Ora, são alguns desses países os principais destinos de refugiados ucranianos neste momento. Apesar da notável reação destes Estados- membros mais visados, bem como de muitos outros, como Portugal, que se têm disponibilizado, sem hesitação ou reserva, para receber refugiados, não é de excluir que um fenómeno de ainda maiores dimensões e prolongado no tempo venha a provocar uma certa saturação nas opiniões públicas.
Não obstante o voluntarismo demonstrado até aqui, não se tem visto, na fronteira, grande coordenação europeia ou a utilização de meios comuns de triagem e informação. O mecanismo de proteção temporária foi aprovado, recorde-se, em 2001, muito antes da crise de 2015, e não incorpora as lições que desta decorreram.
Sem prejuízo do esforço notável de integração que a Europa se encontra a fazer, da união até aqui registada, e da utilização, sem precedentes, de um mecanismo pensado e aprovado há muito, justamente para situações como esta, é essencial assegurar que esse esforço se mantém, de forma consistente, equitativa e proporcional, garantindo que as opiniões públicas europeias preservam a solidariedade e capacidade de integração que vêm demonstrando para com o Povo ucraniano.