O tempo das últimas cinco ou seis semanas – admitindo a dimensão de vertiginosa transitoriedade para a qual o «tempo breve» invariavelmente nos arrasta, em particular se considerarmos os longos meses ou mesmo anos imediatamente anteriores, marcados pela eclosão de uma pandemia que, no entanto, parece já ter ficado nas páginas da história, assim se espera – tem sido um tempo de guerra. De um conflito militar travado em solo europeu e digitalmente transmitido quase que em directo.
Se quiséssemos, em termos eticamente neutrais, para efeitos daquilo que vamos afirmar, e só nesse sentido, poder-nos-íamos limitar à observação comezinha de que a beligerância entre Rússia e Ucrânia vem atestar que, afinal e de certo modo, a ideia (historicamente realizada) de Estado-Nação, ora reanimada por um “velho novo” imperialismo, ainda “vai muito bem, obrigado”. Sem discutir, nesta oportunidade, a autonomia das comunidades estadualmente organizadas para cunhar a sua moeda e para editar a sua própria legislação, o facto, que não é “bruto” mas imorredoiramente construído, imediatamente acessível é que há uma comunidade estadualmente organizada, sublinhe-se a traço grosso, que está a exercer precisamente a sua prerrogativa de “fazer a guerra”, com todas as consequências nocivas, seja para os direitos das pessoas, seja para os sistemas económico, social, político, cultural, etc., que tal assunção de prerrogativa acarreta. Se isso se deve, hoje, considerar admissível é um problema candente da teoria do Estado mas que, infelizmente, se mostra como um indesmentível “facto”, repetimos, como um “dado”, para que não haja terceiras leituras desvirtuadoras, ninguém o pode negar.
Quanto a uma tal factualidade, como é claro, nunca poderíamos ficar eticamente indiferentes. Por conseguinte, o tempo de hoje tem sido um tempo de todos os males, menos ou mais difusos, que aquela, a guerra, por definição, implica: morte, destruição, insegurança, opressão, medo, opróbrio, miséria, abandono, etc. Em suma: um tempo de negação dos valores cardinais que a cultura ético-jurídica ocidental, de base demo-liberal, vem assumindo, pelo menos nas últimas seis ou sete décadas, como impostações materiais de sentido que valem a pena ser vividas no horizonte de empenhamento ético que só a razão prática é capaz de oferecer, potenciar e garantir.
O que é penosamente ilustrado, em concreto, não só pelas notícias que vão dando conta do esmagamento — em parte consumada, em parte ainda meramente tentada — de uma soberania institucionalizada, mas também pelo homicídio praticado contra civis e pela deslocação forçada de uma ampla parcela da população local que não pretende partilhar com aqueles o mesmo triste fim, não raro acompanhadas por actos de tortura e outros tratamentos desumanos.
Naturalmente, todas estas situações envolvem questões éticas de trágico relevo. E factos que merecem não só uma veemente condenação política, mas também a adequada resposta jurídica, quer no campo do direito humanitário (incluindo aqui o direito dos refugiados), quer no campo do direito penal, em qualquer hipótese, atentas as regras do direito internacional. Todavia, sem diminuir, nem de longe, nem de perto, a evidente importância — e o carácter jurídica e moralmente execrável, nunca será demais repetir — destes factos, pretende-se aqui destacar alguns aspectos que entendo capitais para a tematização do pano de fundo que enquadra e sustenta o juízo de censura jurídica e moral acima sinalizado, ainda que em termos gerais.
Durante algumas décadas pensou‑se que a chamada “globalização” poderia desempenhar, a título não oficial, o papel de garantidor da paz entre os países, Estados e povos.
Durante algumas décadas pensou-se que a chamada “globalização” poderia desempenhar, a título não oficial, o papel de garantidor da paz entre os países, Estados e povos. Difundiu-se a ideia de que a integração estimulada e conseguida nas mais diversas esferas do quotidiano viver — não circunscritas à economia — seria um factor de coesão apto a contribuir para a esconjuração dos fantasmas que continuaram a assombrar o mundo então recém-saído da segunda grande guerra.
O isolamento espácio-territorial das sociedades do início do século passado tinha como reflexo imediato e necessário um isolamento na coordenada axiológico-normativa. Tudo começou a mudar, em termos comunicacionais, com os diversos processos de aproximação, harmonização e assimilação nos planos económico, social, político, etc. Processos que trouxeram ou arrastaram consigo – importa admitir muito claramente uma certa disseminação ou homogeneização valorativa.
A relativização da presença e da soberania dos Estados na conformação da vida dos cidadãos e na determinação da ordem de valores significou, em larga medida, a erosão de sistemas axiológicos tradicionais e locais em favor de uma percepção mais geral e tendencialmente universalizante dos valores, ou seja, de uma compreensão partilhada através de consensos de largo espectro. Uma tal tendência passou igualmente, pelo menos no mundo ocidental, pela generalização da cultura dos “direitos fundamentais”, multiplicados nas suas diferentes “gerações”.
Este fenómeno potenciou, por outro lado, alguma convergência essencial também no que diz respeito à coordenada fundante de uma “comunidade”, isto é, na maneira como nos vemos a nós mesmos e na maneira como nos revemos nos outros, bem como na própria concepção de uma normatividade jurídica intencionalmente aberta e capaz de acomodar exigências sociais cada vez mais crescentes.
Porém, ao contrário do que muitos supunham, mesmo essa tendência de generalização ou uniformização não pôde e nem pode ser vista em termos absolutos ou exagerados. É claro que nunca deixamos de reconhecer a existência de outras mundividências que não se encontram alinhadas naqueles pólos consensuais.
O que acabou de se dizer fica especialmente nítido e condensado se pensarmos na matriz de vida espiritual e de empenhamento crítico que atravessa, de Norte a Sul, de Este a Oeste, a unidade de sentido que define o modo-de-ser europeu. Ou melhor: o apelo de identidade que irriga e inerva esse rico tecido conjuntivo que, por herança histórico-cultural milenar, com origem tripartida em Atenas, Roma e Jerusalém, molda um idem sentire europeu que tem perpassado gerações e que, na sua (só aparentemente paradoxal) diversidade, tem se mantido constante.
Porém, esta movimentação viria a conduzir – a partir de um ponto incerto – a uma expansão incompatível com a ideia de fragmentariedade que constitui o cerne do nosso modo-de-ser-com-os-outros e da própria normatividade jurídica enquanto lídima expressão de uma ética aplicada da razão prática. E com isso se foi perdendo, nos seus próprios meandros, a procura pelo essencialmente comunitário. Pois quando tudo é fundamental, nada mais o é. E quando tudo é comum, nada mais o é. Daí que o acrítico absolutismo do global – não obstante com alguma demora – viu-se questionado por claros sinais de metastática desagregação, pelo menos no tocante ao seu referencial ético-valorativo.
É em um tempo como este que se recoloca a pergunta pelo essencial. Naturalmente, a Europa é muito mais do que as trocas de bens e contactos entre pessoas, bens e serviços que levaram ao processo institucional de regionalização. A Europa é um soma que é mais do que a simples adição das suas partes, ou seja, dos seus países, dos seus Estados e dos seus povos. É, por certo, muito mais do que falarmos um dos vários idiomas que se escutam desde Lisboa a Moscovo, passando por Kiev e tantas outras cidades ucranianas que passamos a conhecer apenas por serem palco da guerra ali recentemente iniciada. Um “soma” que tem identidade em si e por si. Mas uma identidade complexa e crescente, por certo que sim. Mas uma identidade independente. Uma identidade que é em nada esboroada pela variedade de línguas, usos e costumes dos seus países, dos seu Estados e dos seus povos.
A Europa antolha-se-nos, deste modo, como um mosaico de culturas que, ao invés de fragilizarem o idem sentire europeu, tornam-no mais forte, porque mais denso. É a unidade dialecticamente obtida não somente através das parecenças, mas também através das diferenças. É precisamente nestas últimas que fervilha o caldo cultural europeu que, com ímpar maestria, as diversas partes do soma mantêm a sua autonomia sem ter abandonado as pedras angulares em que se fundaram. Um “soma” onde aparece, simultaneamente aglutinadora e expansiva, a ideia de liberdade.
Mas esta liberdade não se revela apenas no seu sentido positivo, isto é, em tudo aquilo que o ser humano tenha criado como algo que contenha em si tamanha força aglutinadora que perdure durante séculos, que resista a momentos de fractura e que seja sentido como seu por tantas e tão diversas pessoas: a arte, a música, a matemática, a filosofia, etc. Da Capela Sistina às ruínas da Ágora de Atenas, das melodias que se tocavam nas festas de honra de Baco à Lacrimosa de Mozart, do Teorema de Pitágoras à equação genial de Einstein (e=mxc2), tudo isso (e muito mais) é parte do património espiritual europeu. Em tempos de guerra, travada na Europa, a liberdade que desponta e clama por socorro é aquela no seu sentido negativo. Isto é: a libertas que se define pela ausência (externa) do jugo e da tirania. Que recusa peremptoriamente a morte, a destruição, a insegurança, a opressão, o medo, o opróbrio, a miséria, o abandono, etc.
Por certo, já vão longe os tempos ingénuos de aceitação da liberdade como um mais ou menos imerecida dádiva dos céus. A liberdade, por ser a matriz de tudo aquilo que envolve o fenómeno humano, é daquelas coisas que foram conquistadas por homens e mulheres historicamente situados e que, precisamente por isso, nunca podem ser dadas como perenemente garantidas em quaisquer circunstâncias. Afinal, aquilo que é normativo não pode ser assegurado empiricamente. A liberdade só tem, para nós, europeus, o valor cimeiro que nela reconhecemos porque ela pertence, por direito próprio, ao rol das “coisas” pelo qual vale a pena defender as “muralhas da cidade”. Porque está inscrita, de maneira indelével, no acervo das conquistas civilizacionais que só foram alcançadas à custa de sangue, suor e lágrimas de homens e mulheres historicamente situados. E, pelos deuses, não se diga que isto não passa de meras palavras. Quem assim ajuíza nunca virá a perceber que a história é um rasto de factos, por certo, mas é, outrossim, um rasto das ideias que sustentaram e deram força e vigor a tais factos. Quando estamos nestes domínios não há “factos brutos” mas sim e sempre “factos construídos”.
Convém reconhecer que poucas “coisas” possuem a densidade e a espessura do “real da guerra”: ali são vividas, na pele e no espírito, as formas mais duras e cruéis de “resistência do real”. Afinal, é no “real da guerra” que se revelam, na sua violência incontida, as experiências que convocam mais profundamente o nosso olhar doloroso. Somos, matricialmente, no nosso ser-aí-com-os-outros, homo dolens. Por certo. E o temos afirmado há largos anos. Mas esta nossa condição genésica é hipostasiada pelo “real da guerra”. Porque dolorosa, na sua máxima potência, no corpo e na alma, é a condição do ser-aí-em-guerra-com-os-outros.
No entanto há boas razões para acreditar que naquele selecto conjunto das “coisas” com a mesma densidade e espessura do “real da guerra” está o “real da liberdade”. E na concreta determinação do real que prevalece vale, como sempre, o símile do pêndulo da história. Sendo certo, também como sempre, que o triunfo do real da liberdade dependerá da própria resistência de cada uma das pessoas de carne-e-osso que vêem na liberdade algo que vale a pena ser vivido. Para tanto, não é preciso recorrer à “empatia” ou à “resiliência” ou a outras palavras da moda. Basta ter presente a dimensão de realidade (ainda que construída) imposta pela razão prática.
Não se desconhece que os burocratas, técnicos ou não, encontrarão na guerra um sinal da necessidade de redimensionamento político (geo-estratégico) do projecto europeu, não apenas no que diz respeito à ampliação da sua identidade, mas designadamente no que toca à elaboração de uma política de segurança comum (externa), no quadro institucional da União Europeia. De certo modo, terá ruído ou estilhaçado o romantismo ingénuo que tem acompanhado o projecto europeu pensado para um mundo sem conflitos armados. Mas aquela orientação estritamente política será pouco ou quase nada se no lugar do romantismo ingénuo não se colocar uma espécie de realismo onto-antropologicamente fundado. A Europa é unidade na multiplicidade de línguas, crenças, culturas e pensamentos, alimentada pelo real da liberdade. E assim continuará a ser, sob pena de, se não o for, a Europa declinar, definhar. Mais: de a Europa morrer ou vir a ser tão-só uma mera península da Ásia.