Impacto da guerra na Ucrânia nos preços de energia. As respostas oferecidas e o contexto internacional
1. Impacto da guerra na Ucrânia nos preços de energia
O setor energético tem conhecido grandes mudanças nos últimos anos. Depois da desverticalização dos setores elétrico e do gás natural e do apoio à produção descentralizada a partir de fontes renováveis, mais recentemente a transição energética é potenciada pelo autoconsumo (individual ou coletivo), pela partilha de energia, pelas comunidades de energia e pela descarbonização do setor do gás e pela integração dos diferentes vetores energéticos. Paralelamente, os combustíveis líquidos, tradicionalmente não sujeitos à regulação, continuarão a desempenhar um papel importante na economia nos próximos anos, tendo a introdução de biocombustíveis contribuído para alguma descarbonização neste vetor energético.
Neste quadro de fundo, ainda antes da guerra na Ucrânia, a pandemia trouxe assinaláveis alterações no padrão de consumo originando reduções acentuadas da procura com impactos significativos ao longo das cadeias de valor dos vários vetores energéticos. Uma oferta longa casada com uma procura deprimida originaram uma descida acentuada dos preços da energia e consequentemente forçaram a um ajustamento em queda do investimento, reparações e manutenções do lado da oferta. Mais recentemente a recuperação da economia provocada pelo fim dos confinamentos conduziu a um aumento enorme do consumo de energia gerando uma nova desadaptação entre a oferta e a procura e pressionando a subida dos preços de energia, revelando as dificuldades observadas do lado da oferta para a satisfação do incremento acentuado da procura. Estimava-se, no final do ano de 2021, que esta desadaptação estaria resolvida na primavera de 2022 e, consequentemente, que os preços praticados nos mercados estariam em níveis considerados normais. A tendência foi assim de aumentos generalizados dos preços da energia e em particular da eletricidade, como se pode verificar pelo acompanhamento dos preços do último ano no mercado diário da OMIE
Entre as principais razões para o aumento progressivo dos preços da eletricidade na segunda metade do ano passado, conta-se a escalada do preço do gás natural, depois de um inverno longo e seco que provocou um decréscimo da produção hídrica e consequentemente um incremento da produção das centrais de ciclo combinado a gás natural. Adicionalmente, verificou-se o aumento da cotação das licenças de dióxido de carbono (CO2) e bem como dos preços do carvão, o que antecipou por razões económicas o fecho das centrais a carvão, tecnologias muito poluentes e não enquadráveis nas opções de política energética e de clima. O diagrama de carga doMIBEL que se apresenta na figura seguinte mostra o peso significativo da geração renovável eólica, solar e hídrica, da produção nuclear em Espanha, sendo o fecho de mercado efetuado fundamentalmente pelos ciclos combinados queimando gás natural que conferem firmeza e flexibilidade ao sistema elétrico.
A guerra na Ucrânia teve um impacto imenso ao nível dos preços da energia elétrica e do gás natural, como atestam os preços dos mercados grossistas. Embora a tendência seguinte tenha sido de relativa correção, os preços mantêm-se preocupantemente elevados. De resto, em função das regras de mercado vigentes, no mercado grossista de eletricidade, o aumento do preço do gás natural (commodity utilizada pelos ciclos combinados que produzem eletricidade) faz-se refletir no preço grossista da eletricidade.
Com efeito, de acordo com as regras do mercado, todos os produtores que satisfaçam a procura recebem o mesmo preço pela venda da eletricidade, que corresponderá ao cobrado pela última central necessária para satisfazer a procura agregada de eletricidade a cada hora. Pelo que sempre que seja necessário recorrer às centrais a ciclo combinado para satisfazer a procura, como é frequente, o preço exigido repercute o preço do gás natural.
Na figura ao lado apresenta-se a evolução dos preços do gás natural no mercado Ibérico de gás natural (MIBGAS) e bem como no mercado de referência europeu Title Transfer Facility (TTF).
Os preços dos combustíveis líquidos conheceram, também, um incremento considerável refletindo o aumento dos preços do brent, conforme se evidencia na figura seguinte.
2. As respostas oferecidas e o contexto internacional
O aumento dos preços grossistas foi encarado, naturalmente, com enorme preocupação uma vez que este, inevitavelmente e gradualmente, terá repercussões no mercado retalhista, à medida que os contratos com os clientes vão sendo renovados. Ou seja, os preços cobrados aos consumidores finais por serviços públicos essenciais (eletricidade e gás) e pelos combustíveis líquidos tendem a aumentar, refletindo as condições de preços observados nos mercados grossistas, induzindo ainda o aumento da inflação.
As preocupações sociais e de competitividade, no quadro da transição energética e da recuperação económica, são levantadas por toda a Europa. Além de se procurar acelerar a produção de mais eletricidade renovável, imunizando os preços pagos pelos consumidores do custo dos combustíveis fósseis, no curto prazo uma das medidas que tem vindo a ser utilizada tem sido a redução de impostos. Em Portugal, a redução do IVA sobre a eletricidade já tinha sido concretizada, com carácter permanente, de 23% para 6% (no continente) na componente fixa das tarifas de acesso às redes, nos fornecimentos de eletricidade cuja potência contratada não ultrapasse 3,45 kVA, e para 13% sobre os consumos mensais na parte que não exceda 100 kWh e 150 kWh, quando adquirida para consumo de famílias numerosas. Também no setor dos combustíveis líquidos foram introduzidas, mais recentemente, medidas de âmbito fiscal que visam aliviar os preços finais.
O crescimento acentuado observado na geração renovável, em particular no solar fotovoltaico centralizado e bem como descentralizado nas modalidades de autoconsumo e partilha de energia, acaba por influenciar os preços observados noMIBEL. Pela primeira vez no MIBEL observa-se a famosa curva de pato resultante de uma geração de origem renovável acentuada durante as horas de dia, que afasta as tecnologias de geração a partir de combustíveis fósseis e afunda os preços da eletricidade, alterando a habitual modulação de preços mais elevados nas horas de dia face às horas da noite.
Estruturalmente, a decisão tarifária da ERSE que fixa tarifas e preços regulados de eletricidade para 2022, tomada a 15 de dezembro de 2021, permitiu que as tarifas de acesso às redes – cobradas a todos os consumidores, independentemente do seu comercializador – sofressem uma enorme redução e, com isso, atenuar fortemente as subidas provocadas pelo custo da commodity. Tal foi possível, respeitando os direitos dos agentes, por via da consignação ao sistema elétrico do aumento das receitas com o CO2 e de outras receitas do Fundo Ambiental, do fim da vigência do contrato de aquisição de energia (CAE) da central a carvão do Pego gerador de sobrecustos, da reversão às tarifas dos saldos de gerência da ERSE relativos ao setor elétrico e por fim, da reversão para as tarifas de acesso às redes dos enormes ganhos gerados pela produção em regime especial com preços garantidos (renováveis e cogeração com feed in tariffs).
Importa também identificar as medidas de proteção dos consumidores mais vulneráveis através da fixação de tarifas sociais de acesso às redes que integram uma redução de preços substancial, de modo a assegurar preços finais pagos por estes consumidores com descontos de 33,8% para a eletricidade e 31,2% para o gás natural.
Paralelamente, foram ainda regulamentadas medidas extraordinárias que vêm permitindo, designadamente, aos comercializadores mais vulneráveis a preço e sem outras formas de cobertura de riscos adquirirem energia através de leilões extraordinários de produção de origem renovável, permitindo a aquisição de energia em condições de maior estabilidade de preço e, consequentemente, com menor imprevisibilidade para os consumidores finais. De igual modo são contempladas medidas de proteção dos consumidores designadamente a previsão de planos de pagamentos e pagamentos fracionados pelos clientes aos comercializadores e pelos comercializadores aos operadores de redes.
No setor do gás natural, e por maioria de razão no sistema petrolífero nacional, as infraestruturas têm um peso menor na composição do preço final e não existiam instrumentos que permitissem alcançar um resultado comparável. Em todo o caso, no setor do gás natural, conforme proposta de tarifas para o ano gás 2022-23, é apresentada uma redução acentuada de -71,1% nas tarifas de acesso às redes em alta pressão que permitirá aliviar os preços finais pagos pelos consumidores. Esta redução é justificada por um crescimento acentuado na utilização das infraestruturas de alta pressão (terminal de gás natural liquefeito (GNL), armazenamento subterrâneo e rede de transporte), justificado, por um lado, pela crescente utilização das centrais de ciclo combinado e, por outro lado, pela posição estratégica do terminal de Sines no mercado de GNL da bacia do Atlântico. Para o mercado regulado, e uma vez que o aprovisionamento é assegurado através dos contratos históricos de longo prazo em regime de take or pay com a Nigéria, tal permitiu a Portugal ter preços de energia mais baixos do que os preços praticados nos mercados grossistas europeus, registando-se ainda assim um acréscimo de 6,5% na tarifa transitória de venda a clientes finais, para os fornecimentos em baixa pressão com consumo anual inferior a 10000 m3 (consumidores residenciais e pequenos negócios), para o ano gás 2021-22, face aos preços em vigor.
Mais recentemente, um pouco por toda a Europa têm sido procuradas respostas para garantir a segurança do abastecimento (sobretudo nos países que são grandes importadores de gás russo, o que não é o caso português) e contrariar a tendência normal de crescimento do preço. Nalguns casos optou-se pelo não desmantelamento de centrais nucleares (caso da Bélgica) ou por projetar o renascimento desta indústria (caso da França). No que ao gás natural diz respeito, a Alemanha, decidiu muito recentemente, entre outros aspetos, transferir temporariamente para o Regulador da energia (Bundesnetzagentur) os direitos de voto das ações da Gazprom Germania GmbH.
Portugal e Espanha, que partilham as plataformas dos mercados grossistas de eletricidade e gás natural, propõem-se negociar mudanças temporárias às regras aplicadas, atendendo ao facto de o gás natural ter também influência na formação de preços da energia elétrica (através da produção das centrais de ciclo combinado, como se viu). Este tipo de intervenções no mercado não são isentas de impactes e custos, designadamente no longo prazo, impactes estes que devem ser pesados com os eventuais benefícios expectáveis no curto prazo. Esta ponderação é fundamental no desenho e parametrização deste tipo de intervenções de modo a, por um lado, maximizar-se o bem-estar social global, e, por outro lado, minimizarem-se os impactes da intervenção minimizando-se os seus efeitos distributivos e mitigando-se a litigância.
Ao mesmo tempo – e especificamente em relação ao setor do gás e à diminuição da dependência do gás russo – tem-se aventado a concretização de um projeto há muito desenhado: a interligação entre a Península Ibérica e França. Esta interligação, juntamente com o terminal de GNL de Sines e os demais terminais e instalações de armazenamento na Península Ibérica podem ajudar na diversificação do gás consumido na Europa, ao mesmo tempo que consagrariam a capacidade exportadora da Península Ibérica, ao invés de importadora como sucede tradicionalmente. Convém, no entanto, estar consciente que, a concretizarem-se, estes projetos levarão o seu tempo, o que significa que não estão aptos a responder no imediato à situação de emergência, mas apenas a acautelar futuros riscos de dependência de um fornecedor maioritário desta fonte de energia. Em qualquer caso, deve ter-se presente que a capacidade de armazenamento subterrâneo de gás natural em Portugal é de 3,6 TWh, o que corresponde a pouco mais de 0,3% do total de armazenamento atualmente disponível na Europa. Considerando o armazenamento no terminal de Sines sobre a forma de GNL, a capacidade de armazenamento em Portugal ascende a 6,2 TWh, o que representa cerca de 10% do consumo anual de gás natural. Assim, a contribuição portuguesa para a segurança de abastecimento da Europa em gás terá de ter sempre em mente esta sua atual dimensão relativa.
De todo o modo, ao nível da segurança do abastecimento, acrescente-se que atualmente o armazenamento de gás em Portugal ronda 80% da sua capacidade máxima e não se antecipam dificuldades em conseguir cumprir os objetivos que são avançados pela Comissão para os diferentes momentos de controlo previstos durante 2022 e nos anos seguintes. Considerando os diferenciais de preços negativos entre o preço de gás para o próximo verão e inverno, a Comissão vem impor obrigações de constituição de reservas nos armazenamentos de 80% da sua capacidade até novembro de 2022 e de 90% a partir de novembro de 2023. Sem estas obrigações, os preços observados no mercado não incentivam os comercializadores a constituir reservas para suprir as maiores necessidades de procura do inverno. De igual modo, e tendo em conta o comportamento da Gazprom, que sendo proprietária de diversas instalações de armazenamento na Alemanha e Áustria, não constituiu reservas para o inverno de 2021, a Comissão vem com a proposta ora apresentada, impor a obrigatoriedade de certificação dos operadores de armazenamento subterrâneo pelas entidades reguladoras. Cabe destacar o modelo legal adotado em Portugal, como um excelente exemplo a nível europeu, onde todas as infraestruturas de alta pressão (terminal de GNL, armazenamentos subterrâneos e rede de transporte) são separadas em termos de propriedade e controlo de entidades que desempenham atividades de mercado, quer na eletricidade, quer no gás natural.
Paralelamente, a ERSE colocou em consulta pública propostas para o setor do gás natural que visam melhorar o desenho e a operação do mercado nacional, dotar de maior flexibilidade e previsibilidade a estrutura de aprovisionamentos no mercado e dissipar parte da pressão a que o mercado de energia se encontra atualmente sujeito.
Cabe também destacar a consulta pública da ERSE sobre projeto de regulamento de Supervisão do Sistema Petrolífero Nacional que, ao abrigo da Lei n.º 69-A/2021, de 21 de outubro, baliza a possibilidade de fixação de margens de comercialização máximas para os combustíveis simples e para o gás de petróleo liquefeito (GPL) engarrafado. Com este regulamento e as metodologias propostas, será possível dotar o setor de maior transparência ao longo de toda a cadeia de valor, garantindo-se a observabilidade dos preços grossistas e retalhistas e a sua análise qualitativa, de modo a identificar eventuais situações de ineficiência, que justifiquem atuações fixadas por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da economia e da energia, sob proposta da ERSE e ouvida a Autoridade da Concorrência.
Estas medidas, sobretudo as de curto prazo, devem naturalmente ser encaradas sem prejudicar o quadro das políticas públicas de descarbonização e de transição energética, incluindo no setor da mobilidade elétrica, da promoção da eficiência energética, da descentralização dos recursos energéticos de geração renovável e de flexibilidade no setor elétrico, da descarbonização do setor do gás natural com a injeção na rede de gás natural de gases descarbonizados, da produção de hidrogénio verde e preparação de um novo vetor energético fundamental para garantir a descarbonização dos setores intensivos em energia, e da integração de sistemas energéticos que promovam a economia circular fundamental numa sociedade neutra em carbono que, tanto quanto possível, devem naturalmente ser aceleradas. No que o recente concurso fotovoltaico flutuante a instalar em albufeiras é um exemplo.
Em suma, a guerra na Ucrânia, no que ao setor energético diz respeito, veio agudizar tendências de preços que se começavam a manifestar antes, ao provocar elementos adicionais de incerteza. Às medidas já tomadas anteriormente no sentido de proteger os consumidores, tem-se assistido na Europa a ações mais robustas, seja no sentido de assegurar a segurança no abastecimento, seja no sentido de permitir uma maior acessibilidade a nível dos preços. Tudo a par da evolução futura que não se deve perder de vista.
[1] Em Portugal como nos demais Estados-membros da União Europeia (UE), o preço do mercado grossista de eletricidade, com reflexos nos valores a faturar aos consumidores finais, é definido em mercado. No caso português, tal preço é formado no Mercado Ibérico de Eletricidade (OMIE – Polo Espanhol) que, juntamente com o mercado de derivados (OMIP – Polo Português), forma o denominado Mercado Ibérico de Eletricidade (MIBEL). Os operadores de mercado correspondem a entidades responsáveis pela gestão do mercado organizado e pela concretização de atividades conexas às quais cabe designadamente gerir mercados organizados de contratação de eletricidade (artigo 163.º do Decreto-Lei n.º 15/2022, de 14 de janeiro.
[2] A Diretiva 2003/87/CE veio criar um sistema de comércio de licenças de emissão de gases com efeito de estufa, denominado EU Emission Trading System (EU ETS), que constitui um mecanismo de mercado que estabelece um volume máximo de emissões e atribui um valor económico às licenças de emissão de CO2.
[3] Regulamento (UE) 2015/1222 da Comissão, de 24 de julho de 2015, alterado pelo Regulamento de Execução (UE) 2021/280 da Comissão (adiante, referimo-nos à versão consolidada como Regulamento CACM). Este Regulamento estabelece orientações para a atribuição de capacidade e a gestão de congestionamentos (capacity allocation and congestion management – CACM).
[4] Lei n.º 23/96, de 26 de julho, na redação vigente.
[5] Diretiva n.º 3/2022, publicada no Diário da República a 7 de janeiro de 2022.
[6] Regulamento n.º 951/2021, de 2 de novembro.
[7] O caso foi noticiado recentemente:
https://www.euronews.com/2022/03/19/nuclear-energy-belgium-postpones-phase-out-by-10-years-due-to-ukraine-war [Última consulta: abril de 2022].
[8] Decisão disponível online:
https://www.bmwi.de/Redaktion/DE/Downloads/A/amtliche-veroeffentlichung.pdf?__blob=publicationFile&v=4 [Última consulta: abril de 2022].
[9] Consulta pública n.º 107, disponível no site da ERSE
[10] Consulta pública n.º 106, disponível no site da ERSE.