O Conselho Geral da Ordem dos Advogados entregou, no dia 8 de março no salão nobre da OA, o prémio “Elina Guimarães” de 2023 à Dra. Maria do Céu da Cunha Rêgo e à Associação “Corações com Coroa”.
O Conselho Geral reconheceu através da atribuição deste prémio todo o fulcral trabalho de Maria do Céu da Cunha Rêgo na defesa da Igualdade de Género; e o trabalho impactante da Associação “Corações com Coroa” (CCC), na área da educação e no acesso a cuidados de saúde como garante da igualdade de género, na área da prevenção e combate de todos os tipos de violência doméstica e com base no género, e na defesa da igualdade de género como estratégia eficaz para combater a pobreza e a exclusão social.
O Boletim OA ouviu as duas premiadas sobre as suas expectativas, missões e os seus objetivos para o futuro.
ASSOCIAÇÃO CORAÇÕES COM COROA (CCC)
A igualdade de género e o empoderamento de mulheres e meninas são pré-requisitos para alcançar as metas da Agenda 2030 (ONU) para o Desenvolvimento Sustentável. Na vossa opinião, o que é absolutamente imperioso ter em consideração para que se consigam estes resultados?
Globalmente, o que é absolutamente imperioso é colocar as meninas e mulheres e meninas no centro das ações e integrar as perspetivas de género nas leis e nas políticas globais e nacionais. Contrariar os retrocessos a que vimos assistindo e acelerar a efetivação desses direitos — em muitos casos as leis são boas, mas falta vontade política para as tornar uma realidade.
Sabemos que as raparigas e mulheres foram mais prejudicadas pela pandemia, são as mais afetadas na violência, sobretudo doméstica (e também em Portugal!), na discriminação, no acesso à educação, ao digital, à saúde… e todos os dias vemos como os seus direitos continuam a ser violados, nomeadamente quando nos chegam notícias chocantes de como as meninas são impedidas de estudar no Afeganistão e estão a ser atacadas nas próprias escolas, no Irão.
É urgente garantir direitos como o de educação, o acesso à saúde sexual e reprodutiva, com qualidade, ao planeamento familiar, mas também trabalhar para uma participação e liderança plena e igualitária das mulheres na tomada de decisões, no acesso a empregos verdes e à economia azul e ainda no acesso a financiamento e recursos.
A equidade é necessária, os exemplos de como todos e todas podemos contribuir são claros. É necessário:
- Aumentar o número de mulheres que promovem a mudança, por meio da tecnologia e da sustentabilidade em comunidades, locais de trabalho e não só;
- Incentivar as raparigas e mulheres a atingir os seus objetivos sem preconceitos ou barreiras, e promover culturas de trabalho inclusivas, em que as carreiras das mulheres evoluem e não há discriminação de salários;
- Aumentar e fazer avançar a paridade de género;
- Empoderar as mulheres para que tomem decisões informadas sobre a sua saúde;
- Celebrar as mulheres atletas e aplaudir quando a igualdade é alcançada em remuneração, patrocínio e visibilidade
É preciso de facto olhar para os direitos das mulheres como direitos humanos que são e sobretudo investir nas meninas e mulheres para acelerar a mudança.
Os números revelados pelo último relatório da ONU não são animadores, relativamente a uma das principais causas da CCC: a saúde materna. A cada dois minutos, uma mulher morre durante a gravidez ou o parto.
É preciso recuperar o tempo perdido de forma a podermos cumprir o objectivo global de alcançar os três zeros até ٢٠٣٠: zero necessidades não atendidas de contracepção, zero mortes maternas evitáveis e zero violência e práticas nocivas contra mulheres e meninas.
Como veem a objetificação do corpo feminino? Será a objetificação das mulheres um dos factores que potencia a desigualdade de género e mantêm os estereótipos sobre as assumidas “funções sociais” de mulheres e homens?
A objectificação do corpo feminino está enraizada na nossa cultura. No desporto feminino, por exemplo, há ainda um longo caminho a percorrer. A seleção de andebol de praia da Noruega protestou contra a obrigatoriedade do biquíni e foi multada porque as jogadoras se apresentaram de top e calções… isto, em 2021.
A objectificação do corpo feminino é, de facto, um dos factores que acaba por potenciar a desigualdade de género, nomeadamente por acabar por contribuir para o assédio sexual. A autonomia corporal e o direito de uma mulher expor o seu corpo da forma que entender não pode ser confundido nunca com consentimento.
A Associação Corações com Coroa existe desde 2012, tendo como missão defender “a igualdade de género como estratégia eficaz para combater a pobreza e a exclusão social”. O que destacam como mais positivo a nível nacional e internacional desde a vossa criação?
“Apoiar uma mulher é apoiar uma família, uma comunidade, um país” é o lema da CCC e a nossa missão há 11 anos. Durante esse tempo, houve um longo caminho percorrido e algumas importantes conquistas de direitos para as mulheres, nos países desenvolvidos e também em Portugal. A interrupção voluntária da gravidez foi despenalizada, a violência doméstica é hoje um crime público, há quotas de género nas empresas e na política…
Mas não podemos esquecer-nos que as mulheres continuam a ser as principais vítimas de violência – 28 mulheres foram assassinadas neste contexto, em 2022 – que elas estas em minoria nos cargos de chefia e continuam a ganhar em média menos 14% do que os homens em Portugal. Ou que 90% dos apoios à família pedidos durante esta pandemia foram pedidos por mulheres…
Há muito ainda por fazer, nomeadamente nas áreas da violência doméstica — a violência no namoro é um dos aspectos que a CCC procura prevenir com o projecto artístico-pedagógico CCC vai à Escola —, e também da pobreza menstrual, que nos motivou a, com o movimento #TodasMerecemos, criar o projecto A Menarca vai À Escola.
A CCC tem neste momento pedidos de bolsas de estudo aos quais ainda não conseguiu dar resposta — raparigas em risco de abandonar os estudos, porque apesar de tudo ainda são elas as primeiras a desistir dos sonhos para cuidar, quando não existem condições para todos os filhos estudarem. É fundamental aumentar o investimento nestas áreas e apoiar as associações e instituições que, no terreno, trabalham com este objetivo, com provas dadas. Com critérios de exigência elevados e o devido escrutínio, obviamente.
“Apoiar uma mulher é apoiar uma família, uma comunidade, um país”
Uma outra nota positiva, comparativamente a 2012, é que hoje é mais fácil falar de racismo, de interseccionalidade e de um conjunto de questões, apesar de isso não significar que os problemas estão resolvidos. A realidade mostra-nos, no entanto, que não há direitos garantidos e, por isso, a missão de informar continua a ser muito relevante para a CCC. Continuaremos a fazer as nossas tertúlias CCC Café Convida… sobre Direitos Humanos, a organizar a nossa conferência anual e a atribuir o Prémio de Comunicação Corações Capazes de Construir.
“Tamo junto com a Guiné-Bissau, pela saúde de todas as mulheres, jovens e crianças” é um entre muitos projetos da Corações com Coroa. Falem-nos dele.
A CCC iniciou o projecto “Tamo junto com a Guiné-Bissau, pela saúde de todas as mulheres, jovens e crianças”, em 2017, com o objectivo de equipar uma nova ala de ginecologia-obstetrícia na maternidade do Hospital Simão Mendes, em Bissau. O projecto terminará com a entrega de dois últimos equipamentos médicos, em 2023, estando a CCC à procura de novos financiamentos para continuar com as acções de formação em saúde materna, no âmbito de um novo projecto.
O mobiliário hospitalar do antigo hospital de Vila Franca de Xira, desativado, foi doado à CCC pela Santa Casa da Misericórdia. Com a ajuda de voluntários e empresas, equipámos nove enfermarias, com mais de 100 camas, marquesas, berços, ventoinhas, ar-condicionado, etc, além de lençóis, atoalhados e roupa de bebé.
Desde então, as missões “Tamo Junto” entregaram um ecógrafo e um doppler fetal, bem como 100 sacos “Kit Dignidade” com material de higiene para mãe e bebé, e foi ainda dada formação na área de saúde materna a 90 profissionais guineenses.
A Corações Com Coroa integra desde 2021 o projeto MOCEPP de educação não formal de mulheres migrantes, através de ações de orientação cultural e ensino do português língua não-materna. Qual o objetivo deste projeto?
O projeto já terminou. Teve como objectivo facilitar a integração de mulheres migrantes e refugiadas, enfatizando a importância do domínio da língua e da cultura, sendo que uma das notas mais positivas desta iniciativa do ISCTE/APEDI/Junta de Freguesia da Penha de França, foi ter disponibilizado babysitting e apoio escolar para os filhos destas mulheres.
Com apoio da Casa Sol, em regime de voluntariado, a par com as aulas de português e no mesmo espaço escolar, na sala do lado, na escola Patrício Prazeres, era assegurado o acompanhamento das crianças. Se não fosse isso, a maioria não teria podido frequentar as aulas, já que tinha filhos pequenos a cargo, sendo a principal figura cuidadora. São “pormaiores” como este que fazem a diferença no impacto de um projecto.

De que forma a Sociedade Civil pode ajudar a CCC?
Associações como a CCC precisam cada vez mais de que as empresas exerçam a sua responsabilidade social, permitindo dessa forma o crescimento de projectos como as Bolsas de Estudo CCC – neste momento, com lista de espera. E também de aumentar a lista de parceiros que nos permite alargar o âmbito do serviço gratuito de atendimento e consultas a áreas fora da área social e apoio psicológico, nomeadamente de forma a garantir apoio jurídico, apoio à saúde oral e outras valências.
A Sociedade Civil pode ainda apoiar a CCC de várias formas:
– Financeiramente, poderá fazer um donativo (geral, ou direccionado para um projecto específico à sua escolha);
– Poderá comprar uma das nossas sementes da igualdade, uma peça de joalharia desenhada por Luísa Rosas, cuja venda reverte na totalidade para a associação;
– ou tornar-se associado/a da CCC (quota anual de 30€/individual e 50€/empresas).
Além disso, sempre que alguém visitar o nosso Corações Com Coroa Café, na Rua da Junqueira, 295-297, em Lisboa, estará também a contribuir, já que temos uma parceria com a Missão Continente e a Nespresso, o que faz com que o valor de tudo o que é consumido reverta igualmente para a criação de postos de trabalho no próprio café e para os restantes projectos da CCC.
Não temos voluntariado de continuidade, de momento, previamente estabelecido, criamos algumas pontes com quem nos contacta, mediante necessidades específicas — e para acções de grupo, apelamos à colaboração através das nossas redes sociais.
PERFIL
A Associação “Corações com Coroa”, fundada em 2012 por Catarina Furtado, tem tido um trabalho destacado “na educação e no acesso a cuidados de saúde como garante da igualdade de género, na prevenção e combate de todos os tipos de violência doméstica e com base no género, na defesa da igualdade de género como estratégia eficaz para combater a pobreza e a exclusão social”.

MARIA DO CÉU DA CUNHA RÊGO
A igualdade de género e o empoderamento de mulheres e meninas são pré-requisitos para alcançar as metas da Agenda 2030 (ONU) para o Desenvolvimento Sustentável. Na sua opinião, o que é absolutamente imperioso ter em consideração para que se consigam estes resultados?
Na linha das Convenções internacionais mais relevantes na matéria de que Portugal é parte – a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres [1] – artigo 5.º alínea a) – e a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica [2] – artigo 12.º n.º 1 – considero absolutamente imperioso para conseguir resultados efetivos e consistentes que a organização social, nas suas várias dimensões, se decida a rejeitar, coerentemente, preconceitos, costumes, tradicões ou práticas que ainda se fundam na ideia de inferioridade das mulheres ou de um papel social específico e diferenciado das pessoas só porque são homens ou porque são mulheres. Exemplificando:
- para combater as assimetrias salariais e a segregação profissional em função do sexo, importa que, individual e socialmente, deixe de se considerar que o trabalho pago é principalmente uma obrigação dos homens e que o trabalho não pago de cuidado da família e da casa é principalmente uma obrigação das mulheres; o que implica, por um lado, que a educação e a formação ao longo da vida, quer de raparigas quer de rapazes, quer de homens, quer de mulheres inclua as aprendizagens e competências necessárias tanto para o trabalho remunerado, como para o trabalho não remunerado de cuidado de crianças e de pessoas dependentes; e, por outro lado, que a proteção quer da maternidade quer da paternidade – valores sociais igualmente eminentes, nos termos do artigo 68.º nº 2 da Constituição – e sem prejuízo de eventuais situações problemáticas decorrentes de gravidez ou do parto, correspondam, em rápida progressão até 2030, a períodos unicamente obrigatórios de interrupção da actividade profissional, remunerados e de igual duração para mulheres e homens aquando do nascimento e nos primeiros meses de vida das suas crianças;
- ou para que acabe a violência estrutural dos homens sobre as mulheres que, designadamente, as estatísticas continuam a evidenciar, importa que, individual e socialmente, deixe de se entender que os homens têm direito a considerar as mulheres como propriedade sua, pelo que também terão direito a exigir-lhes obediência e, alegando a “defesa da honra”, a agredi-das ou a mata-las se for preciso; assim, e para clarificar na prática a dissuasão efetiva de quanto precede, afigura-se-me determinante que os Códigos Penais dos Estados membros das Convenções acima referidas incluam uma norma que resulte da conjugação das duas disposições que aí se mencionam, e, com os ajustamentos legais decorrentes, impeça que os velhos preconceitos e modelos de comportamento que contribuem para a infelicidade geral possam constituir atenuantes ou mesmo justificar a violência dos homens sobre as mulheres.
Como vê a objetificação do corpo feminino? Será a objetificação das mulheres um dos factores que potencia a desigualdade de género e mantêm os estereótipos sobre as assumidas “funções sociais” de mulheres e homens?
A objetificação do corpo feminino é um dos efeitos da desvalorização das mulheres enquanto pessoas e uma fonte de discriminação sistémica sobre todas elas elas. Não só potencia como exacerba a desigualdade real entre homens e mulheres, como ainda reforça os estereótipos sexistas, cuja prevenção e combate o Conselho da Europa recomenda, na generalidade e na especialidade, de forma sistemática desde 2019 (CM/Rec(2019) [3].
O contributo que tem dado através da sua atividade profissional e cívica, no domínio da igualdade de género, é inegável, tendo até já recebido o prémio “Maria Barroso”. Considera que o prémio “Elina Guimarães” a poderá ajudar no caminho que tem trilhado até aqui na defesa dos direitos das mulheres?
Receber o prémio “Elina Guimarães” é uma honra enorme e uma grande alegria. A credibilização que este prémio confere talvez contribua para o desenvolvimento e concretização de propostas que aqui deixo e que tenho vindo a defender.
É membro do grupo técnico-científico do Conselho Consultivo da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Que progressos Portugal tem tido na igualdade de género?
Atualmente, eu uso o conceito “igualdade de género” como sinónimo de “igualdade entre homens e mulheres”, na linha do Comité para a Eliminação da discriminação contra as Mulheres, na sua Recomendação Geral n.º 28, § 5, sobre Obrigações Fundamentais dos Estados Partes decorrentes do artigo 2.º da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres [4], e também para evitar a confusão, aliás frequente, com “identidade de género”. A igualdade é ainda um objetivo para os dois maiores grupos que compõem a humanidade e que, em princípio, asseguram a reprodução da espécie: as pessoas com sexo masculino e as pessoas com sexo feminino. A identidade, incluindo a de género, é, nos termos do artigo 26.º n.º 1 da Constituição sobre direitos pessoais, uma das dimensões da individualidade construída ao longo da vida, pelo que, salvo em casos de pessoas intersexo, não considero correta a utilização da expressão “género com que se nasce”.
A nível legislativo, em minha opinião, os maiores progressos em matéria de igualdade entre homens e mulheres decorreram da revisão constitucional de 1997 com a inclusão da promoção da igualdade entre homens e mulheres nas tarefas fundamentais do Estado – artigo 9.º alínea h) -, da não discriminação dos trabalhadores em função do sexo em matéria de conciliação entre a atividade profissional com a vida familiar – artigo 59.º n.º 1 alínea b) – e da explicitação de homens e mulheres na participação na vida política – artigo 109.º. Tais progressos podem ser apreciados com sistematização e detalhe no separador “Legislação” do site da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género – CIG [5].
A nível estatístico, verificam-se progressos na redução das assimetrias em várias dimensões da situação de homens e mulheres, conforme evidenciam os indicadores, também constantes no site da CIG [6].
No seu entender devemos falar de feminismo, ou faz mais sentido falar em feminismos, devido à diferença entre etnias, géneros (género, sexo e sexualidade, LGBTQ+ ) etc?
Eu prefiro falar de promoção da igualdade entre homens e mulheres, não só porque é a expressão constitucional, mas também porque a desconstrução dos estereótipos que ainda impedem essa igualdade presume alterações de direito e de facto no estatuto e na situação de homens e de mulheres.
A palavra “feminismo” evoca o tempo das grandes lutas pelos mais óbvios direitos das mulheres enquanto pessoas.
A utilização de “feminismos” visa abranger uma ou várias perspectivas interseccionais da discriminação contra as mulheres, em que avultam as dimensões culturais em sentido lato que, em minha opinião, sempre se cruzam com o modo de reprodução dos seres humanos, cuja diferenciação em razão do sexo lhes é comum.
Actualmente, a palavra “feminismo” regressa em muitos casos como forma de afirmação e concretização quer da igualdade entre homens e mulheres, quer dos direitos específicos das mulheres e das raparigas, enquanto fêmeas da espécie humana (por exemplo, na área da saúde reprodutiva, ou na área do combate à violência contra as mulheres porque são mulheres, ou na área da partilha obrigatória de espaços de intimidade, sob pena de alegada discriminação), e em situações em que a autodeterminada identidade feminina de pessoas cujo sexo é – de facto embora não de direito – masculino pode constituir um risco sério face aos direitos das mulheres e das raparigas e ao seu progresso social enquanto pessoas cujo sexo é, de facto e de direito, feminino e, por isso, ainda objeto de uma dominação discriminatória em função do sexo, da qual não só têm direito a ver-se livres, mas que também têm direito a não ver agravada.
O que pensa sobre a regulação das profissionais do sexo?
R. Considero que a prostituição não é uma profissão nem uma forma de trabalho, mas uma atividade que só deve poder ser exercida livremente pela própria pessoa que se prostitui, sem coação nem estado de necessidade e que pode ser livremente abandonada, também com o apoio de respostas sócio-económicas integradas que se apresentem como alternativa consistente e diversificada em função dos casos concretos e com a duração necessária a outro projeto de vida.
Em Portugal, independentemente do exercício de atividade profissional, o direito à proteção social é universal, nos termos do artigo 63.º n.º 1 da Constituição, pelo que as pessoas que se dedicam à prostituição têm direito a essa proteção, embora ainda apenas em abstrato. Em minha opinião, as mesmas pessoas deveriam poder beneficiar efectivamente do direito à proteção social, bastando para tal que fossem promovidos alguns ajustamentos legislativos que lhes permitissem acesso ao atual regime jurídico do Seguro Social Voluntário.
Fale-nos do “Dever universal de cuidar”
R. O dever universal de cuidar, cuja consagração na lei em conexão com o direito universal ao cuidado defendo pelo menos desde 2004 [7], não integra explicitamente, que eu saiba, qualquer instrumento jurídico universal ou europeu em matéria de Direitos Humanos. De qualquer modo, uma das características dos Direitos Humanos é a de se constituirem em listas abertas de direitos, sendo susceptíveis de acrescentamento em função do tempo e da necessidade.
Ora, do mesmo modo que, nos termos do artigo 64.º n.º 1 da Constituição, ao direito à saúde corresponde o dever de a defender e promover, também o direito universal ao cuidado e o dever universal de cuidar poderiam ser explicitados de de forma equivalente, designadamente agora, aproveitando no âmbito da revisão constitucional que decorre. Mas também poderá ser objeto de lei ordinária, uma vez que não há exigência jurídica de que todos os direitos humanos constem da Constituição.
O objectivo da inclusão na ordem jurídica deste novo direito e deste novo dever com âmbito de aplicação universal visa corrigir a assimetria de facto que persiste na sociedade e que ignora quer a dimensão, quer o valor social do trabalho de cuidado não remunerado prestado às famílias considerado como um “dever inerente às mulheres”, que lhes limita as oportunidades profissionais e as mantém em situação de dependência económica face aos homens, trabalhando, no conjunto de trabalho pago e não pago, mais horas por dia do que aqueles, em Portugal [8] e em todo o mundo [9]. O que é uma forma generalizada e submersa não só de discriminação sistémica em função do sexo e de violação também sistémica da lealdade da concorrência no trabalho e na atividade profissional, mas também de violência estrutural contra as mulheres, a exigir, em minha opinião, o reconhecimento nacional e universal de um direito e de um dever novos com potencial de equilíbrio na situação económica e social de mulheres e de homens e, assim, um anúncio consistente da abolição de um fator substantivo da discriminação em função do sexo.
PERFIL
Maria do Céu da Cunha Rêgo
Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, é atualmente membro do Grupo Técnico Científico do Conselho Consultivo da CIG, do CIEG e de várias ONG. Na deliberação do Conselho Geral de 26 de Janeiro que atribuiu o Prémio Elina Guimarães destaca-se o trabalho por Si “desenvolvido no âmbito da Igualdade de Género, enquanto investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG), do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, o único centro em Portugal inteiramente dedicado à área científica dos Estudos de Género, como formadora, oradora em seminários, autora de referenciais de formação e de artigos de opinião sobre o tema, e ainda os cargos públicos que exerceu colocando sempre a prioridade na igualdade entre mulheres e homens”.
[1] https://gddc.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-sobre-eliminacao-de-todas-formas-de-discriminacao-contra-mulheres-0
[2] https://gddc.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-do-conselho-da-europa-para-prevencao-e-o-combate-violencia-contra-mulheres-e
[3] https://rm.coe.int/16809e1b65
[4] https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/rec_geral_28_obrigacoes_fundamentais_dos_estados_partes.pdf
[5] https://www.cig.gov.pt/area-igualdade-entre-mulheres-e-homens/enquadramento/ Legislação – https://www.cig.gov.pt/bases-de-dados/legislacao/#Igualdade entre Mulheres e Homens
[6] https://www.cig.gov.pt/area-igualdade-entre-mulheres-e-homens/indicadores/
[7] Cunha Rêgo, Maria do Céu (2004), “Novas respostas do direito para a concretização da igualdade de género” in ex-aequo, Revista da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mullheres, n.º 10, Porto, Edições Afrontamento, 83-99.
[8] Segundo os últimos dados disponíveis, no conjunto do trabalho pago e não pago, as mulheres em Portugal trabalham todos os dias, em média, mais 1h e 13 minutos do que os homens.Fonte: Perista, H.; Cardoso, A.; Brázia, A.; Abrantes, M.; Perista, P. (2016). Os Usos do Tempo de Homens e de Mulheres em Portugal. Lisboa: CESIS/CITE, p. 139. https://www.cesis.org/admin/modulo_news/ficheiros_noticias/20170201142706-1inut_livro_digital_final.pdf
[9] Segundo estimativas recentes publicitadas pela OIT, no conjunto do trabalho pago e não pago realizado por mulheres e homens e na média mundial, as mulheres trabalham todos os dias mais 49 minutos do que os homens.Fonte: The Unpaid Care Work and the Labour Market. An analysis of time use data based on the latest World Compilation of Time-use Surveys / Jacques Charmes; International Labour Office – Geneva: ILO, 2019. p. 47. https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—gender/documents/publication/wcms_732791.pdf