No Código Penal, quarenta anos depois: ausências injustificadas?
1. O Código Penal em vigor, que data de 1982, celebrou 40 anos de existência algo atribulada. Tendo sido revisto e alterado múltiplas vezes, sofreu uma profunda reforma em 1995, ao ponto de chegar a ser citado por algumas pessoas ou instâncias como datando desse ano, o que me não parece de todo correcto.
A questão que me ocorre colocar, a pretexto desta celebração e do gentil convite do Conselho Geral da Ordem dos Advogados para colaborar neste número do seu prestigiado Boletim, que agradeço, é a seguinte:
O Código Penal e, de forma mais geral, a lei penal portuguesa criminalizam vários actos de discriminação. Actos de natureza diversa e com base em diferentes critérios. Mas não o fazem da forma mais equilibrada (e constitucionalmente enquadrada), pois privilegiam certos fundamentos em detrimento de outros, valorizando de maneira porventura injustificada alguns actos discriminatórios, acabando por esquecer ou menorizar outros comportamentos igualmente condenáveis e atentatórios de bens e direitos fundamentais.
De entre muitas perguntas possíveis, escolhi concentrar-me nesta: A nossa lei interna, no que respeita a discriminação, é mais exigente e mais punitiva em matéria de género do que de raça? Ou o contrário? Como fazer esta comparação? O sexismo é condenado de forma mais evidente e grave do que o racismo, ou a afirmação inversa seria a verdadeira? Ou em ambas as situações as nossas leis penais pecam por defeito, dada embora a restrição
<blockquote>O sexismo é condenado de forma mais evidente e grave do que o racismo, ou a afirmação inversa seria a verdadeira?</blockquote>
constitucional que limita a expansão do Direito Penal, em tantas outras matérias aparentemente desrespeitada ou, pelo menos, posta em causa? E, dada a já evidente conexão entre estes dois fenómenos (racismo e sexismo), a lei portuguesa estará atenta aos fenómenos de discriminação dita interseccional?
2. Uma busca electrónica pela palavra «discriminação» no texto do Código Penal resulta em uma única ocorrência, na epígrafe e no articulado do crime dito de «Discriminação e incitamento ao ódio e à violência» (Artigo 240.º).
O nº 1 deste artigo contém o seguinte preceito:
«1 – Quem:
a) Fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, ou que a encorajem; ou
b) Participar na organização ou nas actividades referidas na alínea anterior ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento;
é punido com pena de prisão de um a oito anos.»
(…)
O nº 2 prevê casos em que se incite a violência ou se injurie ou ameace pessoas ou grupos, mas especificando que através de “… qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade”, o que reforça o carácter de ‘instigação’ e de relativo distanciamento do que aqui está previsto face aos casos concretos de agressões físicas ou morais – que podem naturalmente constituir ofensas à integridade física qualificada ou crimes de natureza informática, dado o previsto na Lei do Cibercrime e no Protocolo Adicional à Convenção sobre o cibercrime relativo à criminalização de actos de natureza racista e xenófoba praticados através de sistemas informáticos (Resolução da Assembleia da República n.º 91/2009, DR 179, 15 de setembro de 2009) [1].
Existem, no entanto, muitos outros preceitos do Código que incriminam ou agravam penas por actos que são, na sua essência, actos discriminatórios, considerados suficientemente graves para a lei os tipificar como crimes e não como actos meramente ilícitos geradores de responsabilidade em termos menos graves que os penais.
Em alguns casos, a dimensão discriminatória está presente, mas não é explicitada na redacção legal. Por exemplo, o artigo 251.º (Ultraje por motivo de crença religiosa) e mesmo o artigo 252.º (Impedimento, perturbação ou ultraje a acto de culto) referem-se a situações de discriminação violenta por motivos religiosos. O novo crime de «casamento forçado» (artigos 154.º- e 154.º-C) contém de alguma forma uma dimensão discriminatória, assim como acontece com o crime de violência doméstica, dado que estatisticamente se trata de crimes em larga maioria praticados por homens contra mulheres e a sua conotação de género é por demais evidente. Sobre muitos crimes sexuais se poderia fazer paralela afirmação, não obstante a evolução historicamente recente para uma linguagem gramaticalmente neutra nestas matérias.
Existem ainda vários outros locais legislativos onde a discriminação é proibida e condenada como inadmissível numa democracia igualitária, começando na Constituição da República, designadamente no artigo 13º. Nas leis ordinárias, surgem como proeminentes a Lei n.º 93/2017, de 23 de agosto, que «estabelece o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem», numa moldura de Direito dito de Mera Ordenação Social, prevendo contraordenações e respectivas sanções de tipo administrativo, isto é, não penais, afastando a possibilidade de sanções que incluam a hipótese de privação da liberdade, a pedra de toque do actual Direito Penal. E muitas outras que, a propósito de variados assuntos, contêm normas especificamente anti-discriminação: o Código do Trabalho, as leis sobre desporto [2], etc. Também a Lei n.º 38/2018, de 7 de Agosto (Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa) estabelece no seu artigo 2.º (Proibição de discriminação) que:
1 – Todas as pessoas são livres e iguais em dignidade e direitos, sendo proibida qualquer discriminação, direta ou indireta, em função do exercício do direito à identidade de género e expressão de género e do direito à proteção das características sexuais.
(…)
Mas, como em outras áreas, o sancionamento destas várias discriminações proibidas não atinge o nível criminal na valoração do legislador. O que será porventura correcto, numa perspectiva de intervenção mínima, ou seja, de subsidiariedade do sistema penal, conforme aos preceitos constitucionais e às concepções actuais de um Estado de Direito democrático como o nosso. Mas, como tudo ou quase tudo em Direito, susceptível de dúvida, confronto e argumentação racional.
3. Impõe-se perguntar a razão pela qual algumas destas normas prevêem verdadeiros crimes enquanto outras se limitam a desenhar contraordenações ou meros ilícitos ‘civis’, geradores de responsabilidade, mas não reveladores da gravidade ínsita ao conceito legal de comportamento criminoso, susceptível da aplicação de uma verdadeira pena.
Face ao artigo 18.º da CRP, que tão insistentemente é chamado a propósito da legitimação de criminalização de alguns comportamentos em detrimento de outros, é legítimo indagar que sinal o legislador português dá ao estabelecer barreiras para o que fica dentro e fora do sistema penal quando se trata de discriminar pessoas com fundamento ou a pretexto de, entre outras, as características ou categorias elencadas, ainda que exemplificativamente, no artigo 13.º. Como, aliás, nas normas de Direito Internacional geral ou regional que estabelecem proibições de discriminação, partindo da Carta internacional de Direitos Humanos formada pela Declaração Universal de 1948 e os Pactos que lhe sucederam, em 1966, sobre direitos civis e políticos e direitos económicos, sociais e culturais. Depois, muitas Convenções específicas de vocação universal – sobre os mais variados assuntos, como a tortura, o racismo, os direitos das mulheres, a migração, os direitos das crianças, e por aí fora – incluem cláusulas antidiscriminação. O mesmo se passa com os sistemas regionais, que nas suas Convenções fundadoras ou nas que de alguma forma as desenvolvem foram aperfeiçoando regras contendo sérias restrições ou proibições plenas de diferenciação entre pessoas ou grupos de pessoas. O sistema global de protecção de direitos humanos, que evolui de forma evidente no pós-guerra a partir de 1945 até hoje, apesar de todas as dificuldades, resistências e violações, funda-se num princípio, estranho a muitas convicções ultrapassadas, incluindo as legais, de que todos os seres humanos são iguais em dignidade e em direitos e têm direito a ser livres e tratados de forma justa e não discriminatória.
4. Importa voltar agora à questão com que iniciei esta breve reflexão: será a nossa lei interna mais exigente e mais punitiva em matéria de género do que de raça? Ou, em ambos os âmbitos, pecará por defeito, não incriminando directa e especificamente factos gravemente atentatórios de direitos fundamentais protegidos pela Constituição? E estará a lei portuguesa de origem interna atenta aos fenómenos de discriminação dita interseccional?

Quer no que respeita à discriminação baseada no género e suas variações, quer quanto a discriminação baseada na raça ou etnia, o Código Penal contempla, como vimos, a possibilidade de incriminação do incitamento à discriminação (o já citado artigo 240.º), mas em termos relativamente restritos. Trata-se de fundar ou apoiar organizações que cumpram ou tendam a cumprir esse objectivo – de ódio discriminatório – mas não se criminalizam os ‘simples actos’ de discriminação, como a recusa da prestação de um serviço, de concessão de um benefício, de contratação para um posto de trabalho… Outras vezes, em alguns preceitos, o Código Penal prevê agravamento de penas em casos de certos crimes, como os crimes de homicídio, de ofensas à integridade física (artigos 132.º, n.º 2, alínea f), e 145.º, n.º 2). Mas uma injúria sexista ou racista não é agravada (qualificada) por esse mesmo motivo, pois não cabe no artigo 184º (Agravação) que apenas parece dar atenção à importância social ou política da pessoa ofendida, chamando o disposto no artigo 132.º, n.º 2, alínea l) como fundamento de agravação da pena aplicável. Bem poderia ir também buscar a alínea f) (“Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima).

5. Em legislação extravagante, a discriminação é em regra proibida em múltiplos preceitos, mas não é penalizada em sentido próprio, isto é, não é tipificada como crime. E embora defina vários conceitos operacionais nestas matérias, incluindo o de discriminação múltipla, como no artigo 3º da Lei n.º 93/2017, de 23 de Agosto, não parece ainda retirar consequências normativas de conjugação interseccional de factores de discriminação – embora lhe fique perto, exigindo, nos casos de discriminação múltipla, que «…a justificação objetiva permitida nos termos da alínea c) [deve] verificar-se em relação a todos os fatores em causa». De notar ainda que, à semelhança do disposto na legislação do Trabalho, inclui o assédio na órbita da discriminação proibida [3].
Quanto a actos concretos de sexismo ou de racismo discriminatório, a lei é em geral ‘generosa’, proibindo-os e sancionando os seus autores, mas não atingindo a gravidade penal, optando pela mais parca medida contraordenacional.
Quanto a actos concretos de sexismo ou de racismo discriminatório, a lei é em geral ‘generosa’, proibindo-os e sancionando os seus autores
Serão legítimas assimetrias na decisão de intervenção penal? Será que o princípio da intervenção mínima consegue justificar as diferentes opções ou, pelo contrário, as mesmas se devem apenas a alguma desatenção do legislador, criando desse modo desigualdades de tutela dificilmente aceitáveis?
Este é, no fundo, mais um caso em que o simples facto de a lei motivar tais interrogações pode constituir, em si mesmo, um indicador de que omissões de tutela são discutivelmente racionais, legítimas e constitucionalmente fundadas. Uma evolução equilibrada e socialmente adequada da lei penal não deve comportar assimetrias desta natureza, porque as mesmas expressam uma escala de valores e de preferências do legislador contrárias ao desvalor social dos factos e à dignidade constitucional das matérias e dos bens jurídicos atingidos.
[1] “Aprova o Protocolo Adicional à Convenção sobre o Cibercrime Relativo à Incriminação de Actos de Natureza Racista e Xenófoba Praticados através de Sistemas Informáticos, adoptado em Estrasburgo em 28 de Janeiro de 2003”.
[2] Como por exemplo a Lei n.º 92/2021, de 17 de Dezembro, que altera a Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, que estabelece o regime jurídico da segurança e combate ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos.
[3] Aqui o Código Penal avançou de forma significativa, em 1998, abrangendo no seu artigo 163º (Coacção sexual) factos que podem ser descritos como de assédio (sexual) criminalizado, nestes termos: 2 – Quem, abusando de autoridade resultante de uma relação de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, constranger outra pessoa, por meio de ordem ou ameaça não compreendida no número anterior, a sofrer ou a praticar acto sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 2 anos. (Redacção dada pelo seguinte diploma: Lei n.º 65/98, de 02 de Setembro). Mas na versão actual do Código, essa presença é, no mínimo, discutível.