DISCUTIR | A Europa
Os valores europeus ameaçados
Os Princípios Fundadores da União Europeia e os Processos de Decisão. O caso do Orçamento Plurianual e o Programa de Recuperação e Resiliência
Na natureza da União Europeia (UE) inserem-se valores e princípios fundamentais, subjacentes à própria pertença à organização.
Podemos resumir esses valores numa palavra – democracia -, ou na expressão consagrada pelo alemão Robert von Mohl, des Rechtsstaates, que remete para a “primazia da lei” (rule of law ou Estado de Direito), conceito já presente em Aristóteles, retomado (e aprofundado), entre outros, por John Locke, Montesquieu e por Albert Dicey, em 1885, nos seguintes termos: “(…) with us no man is above the law (and) every man, whatever be his rank or condition, is subject to the ordinary law of the realm and amenable to the jurisdiction of the ordinary tribunals[1]”.
O Estado de Direito é central na integração europeia, ao ponto de nenhum país que o não respeite poder aceder à UE. E, também, nenhum país que o não respeite pode impunemente permanecer como membro.
O 2.º considerando do Tratado da União Europeia (TUE) evoca os valores sobre os quais se funda a União, inspirada “no património cultural, religioso e humanista da Europa, de que emanaram os valores universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, bem como a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de Direito”, reiterados no 4.º considerando – “Confirmando o seu apego aos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e liberdades fundamentais e do Estado de Direito”.
Esses valores são discriminados no artigo 2.º do TUE:
“A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres”.
Há algum tempo que alguns Estados-membros (EM) da União são acusados de pôr em causa esses valores, seja ameaçando a independência do sistema judiciário, seja por reduzirem a liberdade de expressão ou qualquer outra razão. E o problema reside aí: o que fazer a um país que desrespeita as premissas fundadoras da União?
Responde o artigo 7.º do TUE, adotado aquando da revisão de Amesterdão, entrada em vigor em 1999: a existência de um risco de violação grave ou a violação efetiva dos valores do seu artigo 2.º pode levar à suspensão de direitos do Estado infrator. O regime das duas situações não é idêntico: face a um risco aplicam-se medidas preventivas, precedidas por recomendações, sendo a decisão do Conselho tomada por maioria de 4/5 dos EM. Já quando verificada a existência efetiva de violação grave e persistente dos valores do UE, exige-se unanimidade dos chefes de Estado e de governo.
Até hoje, apenas por duas vezes foram acionados os mecanismos do artigo 7.º. Em dezembro de 2017, a Comissão considerou haver um risco claro de violação séria do Estado de Direito na Polónia e pediu ao Conselho uma decisão ao abrigo do artigo 7.º n.º 1. Em 2018, foi iniciado um procedimento semelhante contra a Hungria. Nos dois casos há preocupações com a independência do judiciário; relativamente à Hungria acrescem questões de liberdade de expressão, corrupção, direitos das minorias e refugiados.
Os procedimentos têm-se arrastado, sem verdadeira evolução e fim à vista. Na verdade, o sistema de proteção dos valores e princípios europeus parece muito insuficiente. São várias as razões para descrer da eficácia dos mecanismos assentes no artigo 7.º TUE:
A natureza eminentemente política do processo, como resulta claro dos debates no Parlamento Europeu (PE), e da resposta dos países visados, que acusam a UE de parcialidade, até de chantagem. Referiu o primeiro-ministro húngaro: “Quem protege as suas fronteiras da migração não é considerado por Bruxelas Estado de direito”.
A exigência de unanimidade, excluído o país visado, para a aplicação de sanções (basta o voto de um deles, numa votação cruzada, para inviabilizar uma decisão).
A relativa indefinição das sanções, não se percebendo exatamente que direitos serão suspensos.
Face a este cenário, perante o crescimento das forças populistas e iliberais, a preocupação com a defesa da democracia na Europa intensifica-se. Por outro lado, a violação de valores democráticos como a separação de poderes, o princípio da legalidade ou a independência dos tribunais, ameaça os interesses financeiros da UE, assentes numa gestão saudável do orçamento europeu.
Dito de outra forma, e de outra forma o disseram responsáveis europeus, estão em causa recursos que são de todos, provenientes do orçamento da UE, financiado por recursos próprios, que é o mesmo que dizer originados sobretudo nos EM – ie, pelos contribuintes. Ora o benefício desses recursos por parte de quem lesa os valores europeus pode até reforçar o seu comportamento, reduzindo a legitimidade e a magistratura de exemplo da União. Isso é inaceitável.
A CONDICIONALIDADE E A DEFESA DOS INTERESSES FINANCEIROS DA EUROPA
O início de um novo ciclo financeiro da UE para o período 2021-27 (Quadro Financeiro Plurianual – QFP), e a aprovação do Programa de Recuperação e Resiliência, ou “Next Generation Europe” (PRR/NGE), dotado de €750 mil milhões, aumentou as exigências do estabelecimento de garantias, claras e tuteladas pela lei, de respeito pelo Estado de direito. No Conselho Europeu de 17 a 23 de julho, um dos mais longos da história, decidiu-se estabelecer uma cláusula de condicionalidade associada ao respeito pelos valores europeus.
A ideia vem de trás. Já em 2 de maio 2018 a Comissão, ao apresentar o projeto do próximo QFP, propôs ligar a gestão sólida do orçamento de longo prazo ao respeito da “rule of law”. O novo mecanismo, entre outras consequências, poderia levar à suspensão do acesso às verbas da União. Era também uma forma de reação – e busca de uma nova via – ao crescente número de situações que ameaçavam, na perspetiva da Comissão europeia, a proteção dos cidadãos contra o abuso do poder do Estado (foi também por esta altura pela primeira vez acionado o artigo 7.º TUE). Tratou-se do embrião da agora chamada “condicionalidade”.
A ideia de sujeitar a utilização dos recursos europeus ao respeito pelo Estado de Direito está longe de ser pacífica. Não é usual pelos padrões internacionais, o vínculo entre Estado de Direito e a violação dos interesses financeiros da UE é difícil de sustentar judicialmente e, em muitos casos, os cidadãos podem ser as principais vítimas[2]. Desde logo se percebeu que a proposta teria a oposição vigorosa dos países visados – numa lista com tendência a crescer.
Talvez (também) por isso, as conclusões finais dos trabalhos de julho 2020 foram menos imperativas do que o inicialmente pretendido. Lê-se no seu número 22:
“Os interesses financeiros da União devem ser protegidos de acordo com os princípios gerais consagrados nos Tratados da União, em especial os valores do artigo 2.º do TUE. O Conselho Europeu realça a importância da proteção dos interesses financeiros da União. O Conselho Europeu realça a importância do respeito pelo Estado de direito. Com base nestes elementos, será introduzido um regime de condicionalidade para proteger o orçamento e o Next Generation UE. Neste contexto, a Comissão proporá medidas, a adotar pelo Conselho por maioria qualificada, em caso de infrações[3]”.
Foi o que sucedeu.
Também aí ficou estabelecido que o NGE e o QFP deverão funcionar em conjunto. A ideia é aliar uma resposta rápida e eficaz a um desafio temporário, enquadrada numa perspetiva de longo prazo, assente no exercício de planeamento. Mas o processo de decisão não é o mesmo em cada caso. Recordemo-lo:
O QFP exige unanimidade no Conselho, após aprovação pelo PE. Recorde-se que, no atual quadro, o orçamento europeu para sete anos (declinado depois anualmente), até é inferior ao inicialmente proposto, em grande parte devido à aprovação simultânea, para o futuro próximo, do PRR/NGE.
Já o PRR/NGE, para poder ser concretizado, carece de uma Decisão que autorize a União a ultrapassar o teto dos recursos próprios, atualmente de 1,24% do RNB do conjunto dos EM. O novo programa, de natureza excecional embora (e não deverá repetir-se, o que aliás seria bom sinal), leva à ultrapassagem desse limite, tendo a Decisão em causa de ser aprovada por unanimidade no Conselho e também em cada um dos 27 parlamentos nacionais.
Só depois a Comissão poderá emitir as obrigações para financiar o programa, no valor de €750 mil milhões.
Ora, a 5 de novembro 2020, membros do PE e a presidência alemã acordaram numa proposta de Regulamento a prever a suspensão ou até o corte de fundos europeus a EM que violem o Estado de direito. A aprovação desse Regulamento assenta no processo legislativo ordinário, isto é, na maioria qualificada no Conselho e aprovação pelo PE.
Estabelece o Regulamento “(…) as regras necessárias para a proteção do orçamento da União em caso de violação dos princípios do Estado de Direito nos Estados-membros” (artigo 1.º). São indicativos da violação dos valores da União previstos no artigo 2.º do TUE, entre outros, a independência do judiciário; sancionar decisões ilegais ou arbitrárias das autoridades públicas; reter recursos financeiros ou humanos que afetem o funcionamento dessas autoridades; não garantir a ausência de conflitos de interesses.
Um dos aspetos relevantes do acordo respeita aos prazos curtos, permitindo procedimentos expeditos e conclusões rápidas, ao contrário do que atualmente sucede. A Comissão notifica o EM da violação de que é suspeito, seguindo-se um prazo de três meses para a reação daquele, que pode propor medidas corretivas. A Comissão tem um mês (embora de natureza indicativa) para propor ao Conselho as medidas a tomar, tendo este de um a três meses (estes, excecionalmente), para as adotar. O Conselho decide por maioria qualificada, e pode emendar a proposta da Comissão.
Na sequência do acordo, e não podendo impedir a aprovação do Regulamento – tomada por maioria qualificada –, Hungria e Polónia ameaçaram vetar o QFP e não aprovar a Decisão sobre o aumento dos recursos próprios relativa ao PRR/NGE. Num caso, a União não teria orçamento e, logo em janeiro, passaria a gerir os seus recursos na forma muito limitada da utilização por duodécimos; no outro, a “bazooka” económica poderia não chegar a ver a luz do dia. Uma das situações seria problemática, ambas uma catástrofe.
Húngaros e polacos consideraram a proposta uma forma de chantagem ideológica ligada às posições de ambos os países sobre migração, multiculturalismo e o papel da família na sociedade. O primeiro-ministro esloveno, que se juntou à oposição à “condicionalidade”, defendeu que só um tribunal pode decidir se há ou não violação do Estado de Direito e que o Regulamento só podia ser aprovado por unanimidade. A ministra da justiça húngara, Judit Varga, chegou a afirmar que “atualmente, Estado de Direito é tudo aquilo de que «eles» não gostam a respeito da Hungria e da Polónia”.
O impasse durou mais de um mês. Sobre a UE – e a esperança de uma recuperação económica sólida após a pandemia – pendeu uma verdadeira espada de Dâmocles, num braço de ferro em que, se por um lado a posição dos resistentes era frágil – pelo interesse que eles próprios tinham em receber as verbas em causa – por outro a sua determinação parecia inabalável.
SALOMÃO E O FIM DO IMPASSE, OU A CONDICIONALIDADE CONDICIONADA
A solução chegou a 10 de dezembro, no primeiro dia do Conselho Europeu. E foi salomónica, tipicamente europeia. Uma “interpretação declarativa” delineou os contornos do novo mecanismo e definiu critérios, limites e recursos que permitiram desbloquear o impasse.
Desde logo, salienta-se que o Regulamento deve respeitar as identidades nacionais dos EM “refletidas nas suas estruturas políticas e constitucionais fundamentais”, bem como o princípio da atribuição e ainda os da “objetividade, da não discriminação e da igualdade de tratamento dos Estados-Membros” (artigo 4.º n.º 2 TUE). O mecanismo “será aplicado de forma objetiva, equitativa, imparcial e com base em factos, assegurando o respeito das garantias processuais, a não discriminação e a igualdade de tratamento dos Estados-Membros”. O que significa? Que há limites à forma como uma violação dos valores europeus pode ser declarada.
Por outro lado, se for interposto um recurso de anulação do Regulamento, as orientações da Comissão sobre a sua aplicação deverão ter em conta o acórdão do Tribunal de Justiça. E, sem essas orientações, não pode propor medidas. Significa que haverá um recurso de anulação (anunciado pela Hungria), pelo que o Regulamento pode não se vir a aplicar antes de dois anos, mais ou menos (a tempo de eleições nalguns países). Entretanto, o PE já veio exigir que o mecanismo se aplique a partir de 1 de janeiro 2021[4] …
A aplicação do mecanismo será subsidiária, não sendo ponderadas medidas que não protejam de forma mais eficaz o orçamento da União do que os procedimentos existentes. Que, como vimos, não parecem muito eficazes.
O impacto das violações na boa gestão financeira do orçamento da União ou nos seus interesses financeiros deve ser proporcional e o nexo de causalidade direta e devidamente estabelecido. Não basta, pois, haver uma violação, o vínculo com o prejuízo causado deve ser suficiente e bem determinado.
Entre outros critérios e fatores, as medidas devem ser reapreciadas o mais tardar um ano após a sua adoção pelo Conselho, e se o EM visado apresentar um pedido conforme, o Conselho Europeu deve discuti-lo e procurar “formular uma posição comum sobre a questão”. Finalmente, aspeto relevante para os países visados, as medidas eventualmente adotadas só se aplicam às autorizações orçamentais do novo QFP, incluindo o PRR/NGE, e não para o passado.
A declaração permitiu a rápida aprovação do QFP. A Decisão sobre os recursos próprios, logo o PRR/NGE, está em processo de ratificação nos EM e foi em fevereiro adotada pelo Conselho e o PE. O Regulamento sobre um regime geral de condicionalidade para proteção do orçamento da União foi adotado em 16 de dezembro de 2020.
São muitas as interrogações suscitadas pela “declaração interpretativa” do Conselho Europeu: o mecanismo entra em vigor de imediato, como exige o PE? Terá de esperar pela resposta do Tribunal de Justiça da UE à ação já anunciada pela Hungria? Certo é que a máquina está em andamento – e não deixará de andar.
O QFP e o PRR foram aprovados ou em vias de o ser. A revolução que constitui o NGE verá a luz do dia.
Resta saber de que forma este novo mecanismo garantirá o respeito pelos direitos fundamentais, o Estado de Direito e os princípios criadores da própria União Europeia.
[1] Dicey, A.V., 1982 (1885), Introduction to the Study of the Law of the Constitution, London: McMillan and Co. Os números das páginas são da versão de 1982, baseada na 8ª edição (1915), Indianapolis: Liberty Classics.
Ver em: http://files.libertyfund.org/files/1714/0125_Bk.pdf
[2] Argumentos utilizados pelo think-tank CEPS, apud Eucrim de fevereiro 2021. Em CEPS de 15 de outubro 2020.
Ver em: https://www.ceps.eu/rule-of-law-and-the-next-generation-eu-recovery/
[3] Ver conclusões do CE em https://www.consilium.europa.eu/media/45120/210720-euco-final-conclusions-pt.pdf
[4] “PE exige que mecanismo do Estado de Direito se aplique a partir de 1 de janeiro”. Ver em:
https://www.europarl.europa.eu/news/pt/press-room/20201215IPR94024/pe-exige-que-mecanismo-do-estado-de-direito-se-aplique-a-partir-de-1-de-janeiro