Regulação das responsabilidades parentais em tempos de pandemia
Em face da situação epidemiológica verificada em Portugal,
torna-se necessário refletir sobre as especificidades do regime
de responsabilidades parentais em tempos de pandemia
O diploma que regulamenta o estado de emergência, estipulando as medidas sanitárias para evitar o risco de propagação da doença COVID-19, exceciona do dever de recolhimento domiciliário o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente. O princípio geral é o de que a situação pandémica não constitui um impedimento ao regime de convívios com o progenitor não residente ou ao regime de residência alternada, tal como fixado no acordo dos pais ou na decisão judicial. Todavia, o facto de o legislador permitir, mesmo em tempos de confinamento, deslocações regulares da criança entre as casas dos seus pais, não significa que o regime de convívios ou de residência não se possa adaptar às novas circunstâncias criadas pela pandemia. A situação pandémica constitui um facto superveniente, que pode tornar necessária uma modificação do regime de convívios ou de residência, em nome do interesse da criança e do interesse público de contenção da pandemia. Nestes casos, os pais podem cooperar numa solução, alterando o estipulado no processo de regulação das responsabilidades parentais, sem necessidade de intervenção do tribunal. Prevalece o princípio da autorregulamentação da família, de acordo com a presunção de que os pais sabem o que é melhor para os seus filhos e para o bem-estar da família. Nos casos de falta de acordo, a decisão cabe ao tribunal.
Qualquer um dos pais ou o MP podem requerer ao abrigo do art. 42.º do RGPTC uma nova regulação do exercício das responsabilidades parentais com base na situação de saúde pública, destinada a vigorar durante o estado de emergência. A este processo deverá ser atribuída uma natureza urgente, nos termos do art. 13.º do RJPTC. Em alternativa, qualquer um dos pais pode intentar uma ação tutelar comum, requerendo uma providência tutelar cível, nos termos do art. 67.º do RGPTC, à qual deverá ser atribuída natureza urgente, sendo reduzidas ao indispensável as diligências a realizar antes de ser proferida a decisão final. Qualquer que seja o enquadramento processual, o tribunal pode proferir de imediato decisão provisória, adotando a providência necessária à salvaguarda da saúde da criança, ainda que sem audição da parte contrária, nos termos do art. 28.º, n.º 4, do RGPTC.
No presente contexto de rutura do sistema de saúde, emerge um forte interesse público em conter a transmissão do vírus que deve ser ponderado nas decisões judiciais. Há situações em que será consensual a suspensão imediata da residência alternada ou do regime de convívio com ambos os pais. Será o caso de a criança integrar um grupo de risco, devendo, então, para salvaguarda da saúde desta, serem reduzidos ao mínimo os contactos pessoais com outros familiares, inclusivamente com um dos pais. Na hipótese de um dos progenitores da criança estar sujeito a confinamento obrigatório por estar infetado pelo SARS Cov 2, deve a guarda ser confiada ao outro progenitor. A necessidade de proteção de um dos pais, em razão da sua idade, de debilidades do seu sistema imunitário, ou de outras doenças de risco, pode também justificar suspensão de visitas ou da residência alternada.
Mas sempre haverá um leque de situações que não reúnem consenso na família, mas que, na perspetiva de um dos pais, justificam a suspensão da residência alternada ou a diminuição dos convívios com o outro progenitor. Por exemplo, se um dos pais tem uma profissão de risco, na área da saúde ou das forças de segurança, que implique o contacto com pessoas infetadas, ou, se no agregado familiar em que a criança vive mais tempo, coabitam pessoas idosas ou com problemas de saúde.
As deslocações das crianças e os seus convívios frequentes com a família paterna e materna são suscetíveis de as colocar em várias cadeias de transmissão, aumentando a probabilidade de a criança ser contagiada e de vir a ser um veículo de propagação da doença do COVID-19. Acresce que os pais podem não residir no mesmo concelho, podendo um deles residir num concelho de risco extremo e outro num concelho de baixo risco, enfrentando a criança, no convívio frequente com ambos, um risco maior de ser infetada e de infetar outras pessoas.
Assim, havendo conflito entre os pais quanto à pertinência de fazer ou não alterações ao regime de regulação das responsabilidades parentais e em que termos, o tribunal terá de ponderar nas suas decisões razões de saúde pública, podendo para o efeito solicitar ajuda técnica. Mas deverá, acima de tudo, ter em conta as necessidades específicas das crianças e dos jovens, não só de saúde, mas também de educação e de bem-estar psicológico, indagando, se for necessário suspender o regime em vigor e atribuir a um dos pais a guarda exclusiva, com a qual dos pais as crianças se sentem melhor num período de isolamento social e de suspensão dos tempos letivos. As crianças mais pequenas precisam de estímulo e de atividade lúdica, sobretudo de afeto e de acompanhamento, para ultrapassarem com sucesso as várias etapas de desenvolvimento que têm de enfrentar. Não se trata, aqui, de condições tecnológicas para o ensino à distância, mas de estímulos afetivos para progredir intelectualmente e adquirir capacidades. Os filhos/as adolescentes, já autónomos, precisam que os pais tenham capacidade de diálogo com eles saibam compreender os seus problemas, ouvi-los e estar atentos a mudanças das suas emoções.
A capacidade de comunicação com os filhos e de organização de rotinas tornam-se, em tempo de pandemia, competências essenciais ao bem-estar das crianças e dos jovens.
Na hipótese de ser necessário suspender a residência alternada, haverá que recorrer, para decidir conflitos parentais, à história de vida da criança, às suas necessidades, rotinas, à relação afetiva da criança com cada um dos pais e à disponibilidade de cada um deles para um acompanhamento mais frequente do que o habitual, indagando também qual dos pais proporciona maior apoio à escolaridade dos filhos, ao ensino à distância e à realização de tarefas essenciais ao seu desenvolvimento intelectual. Se houver dúvidas, o tribunal deve recorrer à audição da criança, apenas para auscultar os seus sentimentos e as rotinas quotidianas com cada um dos pais, sem perguntas que a induzam a escolher um deles. Ponderada terá de ser também a possibilidade de confiança da guarda a terceira pessoa, quando, num quadro de residência habitual da criança com um dos pais, o progenitor residente esteja infetado e o outro progenitor seja negligente com a criança ou represente um risco de violência doméstica, ou nunca tenha tido um contacto próximo com a criança, por abandono ou desinteresse. Nestes casos, deverá ser o progenitor residente, que, por lei, tem a competência para definir as orientações educativas relevantes (art. 1906.º, n.º 3, do CC), a escolher a terceira pessoa a quem a criança será confiada.
Há que olhar, também, de outra forma, nesta fase de pandemia, para os incumprimentos do regime de responsabilidades parentais motivados pela proteção da saúde da criança ou de outros familiares.
É certo que nenhum dos pais pode impor unilateralmente um novo regime de responsabilidades parentais ao outro ou usar a pandemia como estratégia processual num conflito de guarda e de visitas. Mas é compreensível que as famílias tenham receio que as deslocações frequentes da criança, sobretudo quando para concelhos de risco extremo, aumentem a probabilidade de contágio. Se foi este receio que motivou o incumprimento e se o progenitor que incumpriu o fez de boa fé para proteger a criança ou outros membros do seu agregado familiar, ainda que por excesso de zelo, não devem os tribunais aplicar as sanções previstas na lei (art. 41.º, n.º 1, do RGPTC). O surto que estamos a viver, devido ao elevado número de mortos e de internamentos, acompanhados do colapso do sistema de saúde, pode criar nos cidadãos uma sensação profunda de insegurança, não só em relação à doença COVID -19, mas também em relação a outras doenças, por receio de falta de assistência hospitalar.
Mais do que nunca, neste contexto pandémico, o regime de convívios não pode ser visto como um modelo matemático de divisão do tempo das crianças. A prioridade, neste momento, é o combate coletivo à propagação da doença COVID-19 e a proteção da saúde das crianças e das suas famílias de uma forma adequada aos seus contextos próprios.