Justiça penal e comunicação social
Entre o reforço da participação pública na discussão dos temas da justiça e a proteção do direito à presunção de inocência
A relação entre o sistema de justiça e a comunicação social é um tema relativamente tenso e amplamente abordado por académicos, profissionais do foro e jornalistas. Cada vez mais a comunicação social presta atenção aos processos crime, principalmente àqueles que envolvem pessoas politicamente expostas ou que contendem com o desenvolvimento do sistema económico ou financeiro. A cobertura mediática tende a centrar-se na fase da investigação, acabando por perder fôlego à medida que o processo, com o seu ritmo próprio, incomportavelmente lento para manter a atenção da comunicação social, se vai desenrolando até ao seu resultado jurídico final. Pelo caminho, os processos crime e a sua cobertura mediática produzem outros efeitos: os que emergem da opinião pública sobre o processo (e os seus intervenientes) e sobre o desempenho do sistema de justiça.
Esta questão foi abordada no relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), divulgado este ano, sobre a aplicação prática da Diretiva (UE) 2016/343, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em julgamento em processo penal. O relatório baseou-se nos resultados obtidos em nove Estados-Membros (EM), com diferentes tradições jurídicas, incluindo Portugal. O trabalho de campo relativo ao nosso país esteve a cargo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), através do seu Observatório Permanente da Justiça, como membro da FRANET (a rede de investigação multidisciplinar da FRA). Baseou-se nos resultados obtidos de 12 entrevistas semiestruturadas com magistrados judiciais e do Ministério Público, advogados e membros de órgãos de polícia criminal, de análise documental e de dois estudos de caso.
Um dos possíveis efeitos do escrutínio público sobre os processos crime poderia ser a elevação do nível de objetividade e imparcialidade na administração da justiça
De entre as dimensões do direito à presunção de inocência analisadas, o trabalho abordou, também, a aplicação prática da obrigação assumida pelos EM, através do disposto no artigo 4.º da Diretiva (UE) 2016/343, de adotarem as medidas necessárias para assegurar que, enquanto a culpa do suspeito ou do arguido não for provada nos termos da lei, as declarações públicas emitidas pelas autoridades públicas ou decisões judiciais que não estabeleçam a culpa não apresentem o suspeito ou o arguido como culpado.
Mas se o cumprimento formal desta obrigação é, legalmente, garantido por um conjunto de regras que regulam o segredo de justiça e o dever de sigilo e reserva das diferentes profissões forenses, a verdade é que, como os entrevistados reconheceram, registam-se situações em que os processos crime e até concretos atos processuais, protegidos pelo segredo de justiça, são revelados pela comunicação social. Nestes casos, ainda que a comunicação social utilize os jargões próprios que visariam salvaguardar a presunção de inocência (como, o recorrente advérbio “alegadamente”, que no contexto mediático perdeu qualquer significado), a identidade dos arguidos é revelada e, inexoravelmente, aquelas pessoas serão submetidas ao julgamento da opinião pública. Todos os entrevistados concordaram que a cobertura mediática é, na maioria das vezes, muito prejudicial para a imagem pública dos arguidos e que pode arruinar o seu direito à presunção de inocência, não dentro do processo crime, mas aos olhos do público em geral. Muito antes de o julgamento ter terminado, já a comunidade formulou a sua opinião. E se o resultado obtido no tribunal for diverso do esperado pela comunidade, o mesmo é visto como uma falha do sistema de justiça que não soube responder ao desafio que lhe foi colocado.
As diversas situações concretas de partilha pela comunicação social de informação sujeita a segredo de justiça e a aparente incapacidade de o sistema conter ou punir aquela prática desvelam a inoperância do atual regime na proteção dos direitos dos arguidos
Um dos possíveis efeitos do escrutínio público sobre os processos crime poderia ser a elevação do nível de objetividade e imparcialidade na administração da justiça. Este seria um efeito claramente positivo, que poderia contribuir para o reforço da presunção de inocência. Com as suas decisões e ações sujeitas a um escrutínio mais alargado, os diversos atores intervenientes no processo penal aplicariam um nível maior de rigor e clareza na exposição dos fundamentos das suas decisões, o que poderia levar o sistema judicial a ter um melhor desempenho. Nesse sentido, o escrutínio público poderia ser benéfico, exercendo pressão para decisões mais fundamentadas e, assim, reforçando a proteção dos direitos dos arguidos. No entanto, todos os entrevistados salientaram que se trata de um efeito meramente teórico. Para que tal impacto fosse possível seria necessário existir um diálogo eficiente, transparente e ético entre o sistema de justiça e os meios de comunicação social. As diversas situações concretas de partilha pela comunicação social de informação sujeita a segredo de justiça e a aparente incapacidade de o sistema conter ou punir aquela prática desvelam a inoperância do atual regime na proteção dos direitos dos arguidos.
O investimento na criação de uma relação simbiótica entre comunicação social e sistema de justiça penal, baseada em regras claras que permitam, por um lado, evitar a desinformação ou a especulação (preservando, assim, os direitos dos arguidos e garantindo a qualidade da informação) e, por outro, respeitar e assegurar o direito à informação e a liberdade de imprensa, torna-se, assim, cada vez mais premente.
Com base nos resultados obtidos nos nove países que participaram do estudo, a FRA emitiu a seguinte opinião, que encaixa, perfeitamente, na realidade portuguesa: “com respeito pela liberdade de imprensa, os EM devem estabelecer regras precisas relativas à presunção de inocência dirigidas às autoridades públicas que comunicam com a comunicação social sobre os processos crime em curso. Em particular, apenas assessores de imprensa ou responsáveis pelo tratamento de casos devem informar a comunicação social sobre os casos em curso. A informação não deve incluir quaisquer dados pessoais ou detalhes sobre a vida privada dos arguidos. Os agentes da autoridade, advogados e outros participantes em processos penais, tais como testemunhas e vítimas, devem estar sujeitos a regras estritas que proíbam fugas de informação sobre investigações em curso. Os EM devem assegurar que a violação destas regras dê origem a sanções proporcionadas e dissuasivas. Os EM devem considerar o desenvolvimento de orientações e materiais para sensibilizar a comunicação social sobre a importância da forma como um suspeito ou acusado é apresentado na comunicação social, destacando como diferentes práticas podem aumentar ou diminuir as perceções públicas sobre a culpabilidade. Os EM devem considerar o envolvimento de associações nacionais de jornalistas que tenham experiência prática no acompanhamento jornalístico de processos crime” (Opinião n.º 2).
Para mais informações, o relatório comparativo elaborado pela FRA pode ser consultado no seguinte link:
https://fra.europa.eu/sites/default/files/fra_uploads/fra-2021-presumption-of-innocence_en.pdf
O relatório sobre Portugal, elaborado pelo CES, está acessível no seguinte link:
https://fra.europa.eu/sites/default/files/fra_uploads/portugal-2021-country-research-presumption-innocence_en.pdf