Corrupção em Portugal: Percepções, confiança e democracia
Em junho passado, a Transparência e Integridade, capítulo português da rede Transparency International, revelou os dados relativos a Portugal do Barómetro Global da Corrupção (GCB), que demonstram que a corrupção é um tema central nas preocupações dos cidadãos. Os resultados deste estudo de opinião a nível nacional e europeu não deixam margem para dúvidas: quase um terço dos europeus pensa que a corrupção piorou significativamente no seu país, os deputados e os parlamentos nacionais são tidos como as instituições mais corruptas na Europa e quase metade afirma que o seu governo está a fazer um mau trabalho no combate à corrupção.
Em acréscimo, 27% das pessoas diz que a maioria dos deputados são corruptos ou facilitadores da corrupção, ao passo que 88% acreditam que existe corrupção no seio do governo e 41% pensam que aumentou nos últimos 12 meses. 63% defende que tanto o governo como a administração central e local sofrem influências indevidas de indivíduos com grande poder político e/ou económico. No que ao combate à corrupção diz respeito, 60% da população portuguesa diz que o governo é ineficiente e 58% teme ser alvo de retaliação em caso de denuncias de corrupção. A falta de confiança na probidade das instituições e a crença de que o poder político está capturado por interesses privados é incontestável e preocupante para a democracia.
O setor privado também não é visto com bons olhos: 25% dos europeus acha que os administradores de grandes empresas estão envolvidos em corrupção e 23% diz o mesmo dos banqueiros. No nosso país, este número sobe para 33%. Além disso, 74% dos portugueses acreditam que as grandes empresas fogem ao pagamento de impostos.
Medir a corrupção: o perfeito e o possível
O exercício de medir a corrupção é ingrato e imperfeito, mas essencial para compreender o fenómeno e delinear uma estratégia eficaz que o combata. Medidas avulsas e sem sustentação empírica tornam-se um desperdício de tempo, de recursos e minam ainda mais a confiança dos cidadãos e de todas as partes envolvidas. Os diferentes métodos de medição são todos eles imperfeitos, porque apenas mostram uma parte da realidade. Mas, por isso mesmo, é que nenhum deve ser ignorado e todos contribuem para, em conjunto, oferecer um quadro da situação. Vejamos, então, o leque de métodos que são usados, as suas vantagens e desvantagens.
O GCB é um estudo da opinião pública, que procura captar a experiência que o cidadão comum tem relativamente a pagamento de subornos em serviços públicos, bem como as suas perceções sobre a corrupção. O estudo tem sido levado a cabo desde 2003 e é, hoje em dia, o maior estudo de opinião intercontinental com foco em corrupção. A última edição inquiriu, entre outubro e dezembro de 2020, mais de 40 mil pessoas em 27 países da Europa. É um estudo semelhante ao Eurobarómetro, da Comissão Europeia, que recolhe opiniões tanto dos cidadãos europeus quanto de empresários sobre a temática da corrupção.
Mais concretamente, o GCB oferece dados sobre os países que relatam mais ou menos corrupção, quais os setores e instituições considerados mais afetados pela corrupção, as atitudes dos cidadãos em relação à denúncia de corrupção e sobre as práticas que cada entrevistado considera como sendo de facto corrupção. Este último aspeto é particularmente importante porque, em geral, os comportamentos que as pessoas consideram corruptos costumam ser mais latos do que o simples ilícito criminal, o que pode alterar a interpretação das respostas. Além disso, é possível que a atitude dos respondentes seja influenciada por escândalos recentes ou pela maior ou menor mediatização do tema. Por outro lado, permite aferir a confiança que os cidadãos têm nas instituições e as suas experiências pessoais, o que é fundamental para a confiança no combate à corrupção, mas igualmente no regime democrático. Neste aspeto, ainda que os responsáveis políticos ou judiciais não se revejam nesta visão dos cidadãos, não a podem nem devem ignorar, uma vez que é com base nas suas experiências, perceções e informações que os cidadãos votam e respeitam o estado de direito e as suas instituições.
Importa esclarecer que existe outra importante ferramenta de medição global da TI, o Índice de Perceção de Corrupção (CPI), cuja edição de 2021 foi publicada em dezembro último, é um índice agregado de vários indicadores sobre o modo como empresários e especialistas do país entendem a corrupção no setor público. O CPI é semelhante a outros índices, como o Índice de Controlo da Corrupção do Banco Mundial. Assim, os resultados do CPI não são baseados na experiência do cidadão comum, como o GCB, mas sim na visão de especialistas, o que diminui a probabilidade de ser influenciado por escândalos pontuais ou uma insatisfação geral com o panorama político geral do país. É precisamente por ser um índice compósito e menos volátil do que os que medem a opinião publica, que é usado por várias empresas e consultoras para aconselharem os seus clientes, por exemplo, na definição de investimentos internacionais.
Pode medir-se a corrupção através das estatísticas dos serviços de justiça de um país
Finalmente, pode medir-se a corrupção através das estatísticas dos serviços de justiça de um país. Numa primeira abordagem, este poderia ser o método mais fiável. Afinal trata-se de dados concretos sobre investigações, julgamentos e condenações relativos a ilícitos criminais muito concretos. Mas quatro problemas advêm daqui. O primeiro prende-se com o ordenamento jurídico nacional, ou seja, as práticas e/ou comportamentos penalmente considerados como crimes. Isto é especialmente importante na correlação com as perceções, mas sobretudo na comparação entre países e ao longo do tempo, dentro do mesmo país. Por exemplo, se no país A a corrupção passiva não é crime, mas no país B é, naturalmente é possível que as condenações por corrupção no país B sejam maiores do que no país A, sem que isso signifique que há mais casos de corrupção. A mesma lógica se aplica ao longo do tempo. Se no ano X, determinada conduta não é considerada crime – a ocultação de riqueza, por exemplo – mas no ano Y passa a ser, é de esperar que haja um aumento da corrupção, caso se julguem estes crimes. As más práticas não aumentaram do ano X para o Y, simplesmente passaram a ser criminalizadas. Em terceiro lugar, um aumento do número de investigações ou condenações pode não significar por si que haja mais corrupção, mas talvez que a justiça está a funcionar melhor. Ou seja, também aqui não fugiríamos no nível das perceções. Por fim, a boa utilização deste método depende da fiabilidade das estatísticas que cada país produz. Em Portugal, como o próprio ministério da justiça admite na estratégia nacional anticorrupção, as estatísticas precisam de ser melhoradas. Estas desvantagens não desqualificam este indicador como um medidor da corrupção (e do seu combate), simplesmente, e tal como os métodos anteriores, oferece apenas uma parte da realidade.
O que fazer com estes dados?
Um dos resultados mais positivos e surpreendentes do GCB deste ano remetem para o envolvimento da sociedade civil na luta anticorrupção: quase dois terços (64%) dos europeus acreditam que os cidadãos podem fazer a diferença no combate à corrupção, sendo que em Itália, Portugal e Irlanda, este número ultrapassa os 80% da população.
O envolvimento pessoal de cada cidadão na luta anticorrupção é crítico. É muito significativo e reconfortante que, em Portugal, cada vez mais pessoas se mobilizem contra a corrupção e o mau uso de recursos públicos. Contudo, perante esta disponibilidade dos cidadãos, a sociedade civil tem que assumir responsabilidades e oferecer respostas, uma vez que a mobilização social é feita através do coletivo. A Transparência e Integridade assume-se como a organização não governamental pioneira neste combate em Portugal. No entanto, todas as organizações da sociedade civil, incluindo as Ordens Profissionais, podem e devem fazer o seu papel. A Ordem dos Advogados, pelo seu historial de defesa dos direitos humanos (e não existem direitos humanos com corrupção) e de promoção do acesso ao direito; por ser um elemento fundamental do sistema de justiça português – e não há justiça quando há impunidade; e por ser, por ventura, a entidade mais chamada a emitir pareceres e a ser ouvida pela Assembleia da República, tem aqui um papel de importância acrescida na luta contra a corrupção e pela defesa da democracia.