Perante a evolução internacional do paradigma em relação aos direitos das pessoas com deficiência[1] e a necessidade de adaptar a legislação nacional relativa às incapacidades civis e seu modo de suprimento, surge a Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto que veio instituir o regime do maior acompanhado.
O novo regime entrou em vigor em 10 de Fevereiro de 2019, eliminando o modelo dualista e rígido de tratamento jurídico das afecções físicas e mentais e de certos comportamentos dos adultos que, por seu turno, apenas poderiam desembocar na declaração de interdição ou inabilitação.
No que tange à definição do âmbito da incapacidade e da forma de suprimento, o regime do maior acompanhado é, em geral, mais próximo do regime da inabilitação, sendo que este possibilitava uma definição do âmbito e forma de suprimento da incapacidade (representação/assistência) individualmente adaptada, por tipos de actos, a definir na sentença.
Assim, e porque a multiplicidade de circunstâncias observáveis era incompatível com uma rigidez processual, temos agora um regime monista e flexível, regido pelos princípios da primazia da autonomia da pessoa, respeitando e aproveitando a sua vontade.
As alterações incidem sobretudo sobre os artigos 138.º a 156.º do Código Civil. Pode ler-se no art.º 138.º do Código Civil, “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”
Estas medidas poderão ser adoptadas em função da perda progressiva da autonomia por via do envelhecimento ou de afecções degenerativas de natureza física ou psíquica e, nesse sentido, dão cobertura a muitas situações, com graus de autonomia pessoal diferenciados, designadamente, deficiências físicas e mentais, incapacidades permanentes, incapacidades provisórias, incapacidades iminentes, prodigalidade, situações de toxicodependência, alcoolismo, adição a jogos de azar, adesão a seitas ilegais com prática de actos perigosos ou outras dependências.
O regime do Maior Acompanhado rege-se pelo princípio de aproveitamento de toda a capacidade de exercício e gozo do acompanhado. Está gizado para respeitar e preservar condignamente a autonomia do acompanhado, sendo as medidas a adoptar determinadas em função das concretas circunstâncias de ordem pessoal do visado, tratando-o como ser humano em parte inteira.
QUEM PODERÁ REQUERER O ACOMPANHAMENTO? E AS MEDIDAS?
A legitimidade para requerer tais medidas coincide com a legitimidade para requerer o acompanhamento.
Conforme deflui do art.º 141.º do Código Civil, o acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
Todavia, o tribunal poderá suprir a autorização do (futuro) acompanhado, quando, em face das circunstâncias, este não possa, livre e conscientemente, prestar essa autorização[2].
QUAIS AS MEDIDAS DE APOIO QUE PODERÃO SER ADOPTADAS AO ABRIGO DESTE NOVO REGIME ?
Conforme explanado no art.º 145.º, pode cometer-se ao Acompanhante várias medidas
a) O exercício das responsabilidades parentais, conforme as circunstâncias (medida que se adequa às situações antigas dos casos de interdição, tais como, as demências profundas);
b) A representação geral ou especial, neste caso, com indicação expressa das categorias de actos para que se mostre necessária, a título de exemplo: acesso a informação bancária e/ou intervenção nas operações bancárias;
c) A administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados actos ou categorias de actos, tal como: celebração de contratos de compra e venda superiores a certo valor;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
O âmbito e conteúdo deste acompanhamento é amplo e limita-se ao estritamente necessário para suprir as concretas deficiências e incompetências detectadas, conforme deflui do n.º 1 do art.º 145.º do Código Civil. Assim sendo, impõe a proporcionalidade entre a medida adoptada e a situação apurada.
E, não obstante a abertura do catálogo das medidas de acompanhamento, ao abrigo do disposto no art.º 145.º n.º 2 do Código Civil, a verdade é que, este regime permite ao Juiz – qual alfaiate, fazer um “fato à medida” do beneficiário[3], sendo que deverá estar atento às particularidades do estado de saúde e hábitos do visado, no sentido de apurar cabalmente quais as medidas que melhor se ajustam. O que significa que o Juiz não está vinculado às medidas que tenham sido requeridas.
O TRIBUNAL DÁ UMA RESPOSTA CÉLERE?
O processo de acompanhamento de maior, atenta a especificidade das situações sobre que incide, tem natureza urgente, o que significa que corre durante o período de férias judiciais.
É OBRIGATÓRIA A CONSTITUIÇÃO DO CONSELHO DE FAMÍLIA ?
Não, no regime do Maior Acompanhado, a constituição do conselho de Família é facultativa. (cfr. arts.º 145.º, n.º 4 do Código Civil e 900.º, n.º 2 do CPC.
Ao conselho de Família incumbe vigiar o modo por que são desempenhadas as funções do acompanhante, sendo que é o Tribunal que, considerando a factualidade provada, decide sobre a pertinência de constituir um conselho de Família para salvaguardar os interesses do Beneficiário.
OS DIEITOS PESSOAIS DO BENEFICIÁRIO E OS NEGÓCIOS DA VIDA CORRENTE PODERÃO SER AFETADOS?
Esta mudança de paradigma implica a aplicação de um conjunto de medidas aptas a salvaguardar os interesses das pessoas que, por alguma razão, se encontram impossibilitadas de exercer, de forma plena, independente e consciente, os seus direitos pessoais e/ou patrimoniais.
A regra será sempre a da capacidade dos maiores no que concerne ao exercício dos direitos pessoais e os negócios da vida corrente, cfr. dispõe o art.º 174.º do Código Civil, sendo que estamos perante uma inversão dos termos da equação: o legislador pretendeu, com este modelo, promover a capacitação das pessoas necessitadas de acompanhamento.
Nesse sentido, a capacidade dos Beneficiários deve ser preservada até ao limite, apenas devendo ser restringida na exacta proporção em que a sua situação pessoal o exija[4].
DESTE MODO, EM VEZ DA PERGUNTA:
Aquela pessoa possui capacidade mental para cuidar de si e reger convenientemente o seu património?
DEVE PERGUNTAR-SE:
Quais as medidas que melhor se ajustam àquela pessoa para que exerça devidamente a sua capacidade jurídica?
[1] Cfr. o disposto na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 7 de Maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de Julho, que incita os Estados Signatários a adoptar medidas de promoção e garantia do pleno gozo dos direitos e liberdades das pessoas com deficiência.
[2] Exemplo prático: A visada encontra-se internada no Hospital São Francisco Xavier e, por isso, incapaz de cuidar da sua pessoa e bens por um período de difícil determinação, pelo que se torna indispensável, com vista à sua protecção, nomear-lhe acompanhante que assegure o seu bem-estar e o pleno exercício dos seus direitos, bem como o cumprimento dos seus deveres.
– Pode o irmão da Beneficiária, dada a proximidade, em razão de ser o seu único parente sucessível, requerer ao tribunal o suprimento da autorização daquela para requerer o seu acompanhamento uma vez que, em face da situação clínica em que se encontra, a Beneficiária não o pode prestar de forma livre e consciente.
[3] Cf. Pinto Monteiro in “Das incapacidades ao maior acompanhado – Breve apresentação da Lei n.º 49/18” em www.cej.mj.pt
[4] No entanto, prevê-se a possibilidade de, por decisão judicial, ou disposição legal, restringir o exercício de direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente pelo maior acompanhado. A título de exemplo, se o Tribunal concluir que a doença de que padece o Beneficiário o impede, de modo permanente e irreversível, de exercer de forma livre e consciente os seus direitos pessoais e de cumprir os seus deveres enquanto cidadão adulto, poderá excluir do livre exercício da Beneficiária os direitos de testar, de adoptar, de recusar tratamento médico adequado e necessário à sua condição de saúde, de escolher profissão, de se deslocar no país ou no estrangeiro, de fixar domicílio ou residência, de votar e, bem assim, de celebrar negócios da vida corrente.