1. O presente comentário, muito breve, incide sobre algumas alterações ao Código de Processo Civil[1], que se encontram delineadas na Proposta de Lei n.º 92/XIV/2.ª[2]. Serão tratadas apenas as que dizem respeito à forma das sentenças e à apreciação dos recursos (artigos 607.º, 608.º e 656.º).
2. O legislador português parece, de algum modo, tantalizado perante a ideia de celeridade no processo civil, embora tenha melhor sorte do que o verdadeiro Tântalo: este nada alcançava, por muito que tentasse, mas aquele já saciou alguma fome e sede. A evolução positiva na duração dos processos cíveis nas últimas décadas é incontestável, particularmente, na última década, após a reforma do CPC e a reorganização do sistema judiciário[3] [4].
Perseguindo a ideia (legítima) de diminuir os tempos médios de pendência dos processos, procura o legislador eliminar regras que perspetiva como barreiras à celeridade. Olhando a alteração delineada para os artigos 607.º e 608.º do CPC, é de supor que encontrou algumas no momento da sentença.
3. Projeta-se para o artigo 607.º o aditamento de dois novos números:
7 – Salvo nos casos de manifesta complexidade, a sentença pode ser ditada para a ata.
8 – No caso previsto no número anterior:
a) A discriminação dos factos provados e não provados pode ser feita por remissão para as peças processuais onde estejam contidos;
b) A sentença limita-se à parte decisória, precedida da identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado.”
A “inspiração” no regime do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, mais do que uma evidência, é uma evidência confessada na exposição de motivos: “com exceção do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, não é possível à luz da lei processual civil portuguesa a prolação oral de sentenças. Ora, julga-se que inexiste fundamento para manter tal situação. (…)”.
Há dois planos que, a meu ver, merecem ser distinguidos: o da razoabilidade da solução em termos gerais; e o da razoabilidade dos precisos termos em que foi consagrada.
Penso que a possibilidade de ditar a sentença para a ata pode representar um compromisso aceitável entre as exigências decorrentes das garantias das partes e do exercício da função jurisdicional e o interesse da celeridade, mas os termos em que essa possibilidade for consagrada, podem, eventualmente, comprometer a bondade do resultado final.
A “inspiração” do Decreto-Lei n.º 269/98 é particularmente desadequada e exprime a dificuldade do legislador em compreender a sua própria posição e a do juiz. O modo inflexível como se determina, no n.º 7 do artigo 4.º do regime anexo àquele decreto-lei, que “a sentença, sucintamente fundamentada, é logo ditada para a ata” seria absurdo se fosse entendido literalmente. Como é evidente, o legislador pode manifestar uma preferência pela sentença ditada para a ata, pode até vincular o juiz a adotá-la quando possível, mas não pode torná-la possível, por decreto, quando ela for impossível, designadamente se o juiz não tiver a sua convicção imediatamente formada ou algum elemento da sentença carecer de melhor ponderação para que possa ser decidido em consciência.
Na Proposta, o legislador – ciente de que a ação declarativa comum tende a ser diferente da ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias – procurou suavizar o recado e determina que a sentença é ditada para a ata “salvo nos casos de manifesta complexidade”, embora refira um critério diferente na exposição de motivos (“nos casos de menor complexidade…”, o que não é o mesmo). Não é solução muito melhor, padece de ambiguidade e pouco ou nada resolve (o juiz deve ditar a sentença para ata se ela for complexa, mas não manifestamente?; é razoável limitar a sentença aos elementos previstos no n.º 8 fora da manifesta simplicidade? a complexidade refere-se a quê – factos, direito ou ambos?).
A verdade é simples e inescapável: uma sentença só pode ser ditada para a ata, em qualquer processo, de qualquer natureza, se estiverem reunidas as condições necessárias para o efeito, designadamente, se com isso não se comprometer a boa ponderação das questões (ou seja, se o juiz tiver já a necessária segurança de toda a decisão), nem as garantias das partes, designadamente o direito ao recurso. Em suma, se desse modo ainda puder realizar plenamente a sua função de sentença.

Melhor seria, então, se, em lugar do jogo ambíguo e hesitante de conceitos positivos e negativos, o legislador – no CPC, no Decreto-Lei n.º 269/98 e em qualquer norma em que pretendesse consagrar solução semelhante – dissesse, simplesmente, que a sentença poderia ser ditada para a ata quando tal meio seja adequado à concreta decisão a proferir.
Assim se evitariam equívocos e o legislador não decretaria sobre situações impossíveis, na esperança de generalizar o que não é generalizável.
Descontada a inabilidade do texto, será essa a melhor interpretação dos novos preceitos, tanto mais que se trata de uma possibilidade e não de um dever estrito, que o juiz deve ponderar em função das coordenadas apontadas.
4. No artigo 608.º, estende-se a regra do não conhecimento das questões de direito prejudicadas (n.º 2, inalterado) às questões de facto, prevendo-se num novo n.º 3: “o disposto na 1.ª parte do número anterior é aplicável ao julgamento da matéria de facto quando seja manifesto o juízo de prejudicialidade existente entre as questões, segundo as várias soluções plausíveis da matéria de direito”.
Diz-se na exposição de motivos: “por maioria de razão, agora estende-se este regime à matéria de facto, permitindo que o juiz, em sede de decisão da matéria de facto, não tenha de julgar toda a factualidade alegada, quando seja manifesto o juízo de prejudicialidade existente entre as questões, segundo as várias soluções plausíveis da matéria de direito”.
Não é provável que o legislador tenha passado décadas esquecido desta solução simples. Provavelmente, ela não existia porque envolve um risco: em caso de recurso, o tribunal de segunda instância, se tiver fixados ou puder fixar todos os factos relevantes, pode afastar uma solução jurídica em favor de outra e, se necessário, conhecer o que deixou de estar prejudicado, em função de um novo enquadramento jurídico. Mais dificilmente – mesmo no uso dos poderes de modificação da matéria de facto de que dispõe – poderá formar a sua convicção sobre factos que o tribunal de primeira instância não chegou a apreciar. Se carecer de factos e não puder apurá-los, terá de determinar novo julgamento em primeira instância.
Por outro lado, não é racional e representa sinal contrário à ideia de economia processual – e, por esta via, à ideia de celeridade – o desaproveitamento de prova já produzida. O tempo que tarda a proferir decisão da matéria de facto será, por regra, reduzido, face à duração do julgamento, a que acresce o já referido risco de repetição de um julgamento, eventualmente por outro juiz, que é, também ele, um risco de maior duração do processo, o qual não será justificado pelo marginal encurtamento da elaboração da sentença.
Perante o exposto, ainda que a solução venha a ser consagrada, prevê-se que um juiz medianamente prudente será muito contido no uso desta faculdade, preferindo, na dúvida, um elenco de factos mais completo.

Não é fácil compreender, assim, a que “maioria de razão” se alude na exposição de motivos
5. No artigo 656.º, estende-se a possibilidade de decisão liminar do objeto da apelação à seguinte hipótese [correspondente à nova alínea a) do preceito, constituindo a anterior previsão à alínea b)]: “se tiver sido impugnada a decisão sobre a matéria de facto e o conteúdo da alegação do recorrente não revelar, de forma convincente, o erro na apreciação da prova, julgando o recurso improcedente nessa parte”.
A decisão liminar passa, então, a poder ser parcial (restrita ao recurso da matéria de facto) ou total e, quanto à primeira vertente, terá de ser forçosamente negativa.
Aplicada a norma com a necessária moderação – ou seja, nos casos em que o raciocínio lógico-dedutivo é tão inconsistente que nunca permitiria fundar uma convicção de sinal oposto à do tribunal de primeira instância –, é uma solução que se compreende bem, aliviando o relator do exercício inútil de apreciar uma pretensão destinada ao insucesso face aos seus próprios termos.
A possibilidade de reclamação para a conferência assegurará o controlo necessário sobre a decisão do relator.
[1] () Doravante, “CPC”, diploma ao qual pertencem as normas citadas no texto sem outra menção.
[2] () Doravante, “Proposta”. À data em que se conclui este texto (22/11/2021), encontra-se pendente na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, para apreciação na generalidade.
[3] () Cf. dados em “Justiça e Segurança>Processos>Duração média de alguns processos cíveis findos” em https://www.pordata.pt/.
[4] () Embora se admita que “hoje, temos uma grande pressão sobre os tribunais que têm funcionado, nos últimos 15 meses, a um ritmo bastante inferior ao normal devido às medidas sanitárias adotadas e à suspensão excecional dos prazos judiciais” e que “o número de processos entrados vai continuar a aumentar, em especial nas áreas que apresentam maiores conexões com as consequências económicas e sociais da pandemia”, não parece inevitável que, usando as respostas atuais do sistema, “se nada fizermos, voltaremos a ter pendências acumuladas” – expressões citadas do Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Justiça, na intervenção de apresentação do diploma na Assembleia da República (Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 75, de 08/06/2021, p. 32).