Nas Legislativas de 2022, houve 730.011 votos válidos não convertidos em mandatos (VVNCM), o que corresponde a 13,47% do total de votos válidos e estabelece um novo recorde neste tipo de eleições.
Traduzindo a percentagem: um em cada sete eleitores não viu o seu voto contribuir para a composição da Assembleia da República (AR).
Quem quiser saber se faz parte deste vasto grupo, só tem de aceder à plataforma “www.omeuvoto.com“, que desde 30 de janeiro foi consultada por mais de 25 mil eleitores. Para obter uma resposta sobre o seu caso, basta indicar a eleição, o círculo eleitoral e o partido em que votou.
A par deste “serviço público”, a plataforma apresenta uma petição à AR para que, durante esta legislatura, tome medidas para reduzir significativamente o número de VVNCM em eleições futuras, por tal ser politicamente possível e democraticamente desejável.
A petição já recebeu mais de 8.600 assinaturas e, apesar de muitos duvidarem da sua eficácia num contexto de maioria absoluta do PS, que tem sido o partido mais beneficiado pelo sistema atual, há razões para ter alguma esperança na mudança.
Afinal, a história mostra-nos que, para alterar a lei eleitoral, basta haver vontade de colocar os interesses dos cidadãos acima do interesse dos partidos. Isso aconteceu em 2006, quando foram alteradas as leis eleitorais das regiões autónomas. Nesse ano, havia maiorias absolutas na Madeira (PSD), nos Açores (PS) e no país (PS) e, ainda assim, a lei mudou para tornar os parlamentos regionais mais plurais e representativos da vontade expressa pelos eleitores.
À data, António Costa era ministro da Administração Interna, com a tutela da área eleitoral, mas não teve um papel direto na decisão, uma vez que, ao abrigo do artigo 164.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), as eleições dos titulares dos órgãos de soberania são uma reserva absoluta de competência legislativa da AR. É exatamente por respeito a essa reserva absoluta determinada pela CRP que a petição apresentada em “www.omeuvoto.com” não avança uma solução concreta, antes sugere três caminhos passíveis de conduzir a uma diminuição dos votos não convertidos em mandatos. Analisemo-los.
UM CÍRCULO NACIONAL ÚNICO
O círculo nacional único é aquele que possibilita uma maior conversão de votos em mandatos, mas acaba com algo a que muitos eleitores já se habituaram: ter um círculo associado à sua região.
Nas eleições regionais da Madeira, o círculo único estreou-se em 2007 e, não obstante a diminuição do número de deputados no parlamento regional, permitiu a eleição de representantes de todos os partidos candidatos às eleições. Houve, pois, zero VVNCM, o que é muito raro e nunca mais se repetiu.
a história mostra-nos que, para alterar a lei eleitoral, basta haver vontade de colocar os interesses dos cidadãos acima do interesse dos partidos.
Ainda assim, desde a instituição do círculo único, a média de VVNCM nas Regionais da Madeira ronda os 4%, contra os cerca de 14% do modelo anterior com 11 círculos, o que é revelador dos ganhos de inclusão decorrentes da medida, que também neutraliza as distorções na distribuição prévia de mandatos por vários círculos derivadas da presença de eleitores-fantasma nos cadernos eleitorais (um problema que existe igualmente a nível nacional).
UM CÍRCULO DE COMPENSAÇÃO
Esta solução está em vigor na Região Autónoma dos Açores, e, aquando da sua aprovação, foi elogiada por melhorar a proporcionalidade, tornar os votos de todos os açorianos mais iguais e assegurar um maior pluralismo no parlamento regional, o que é um garante da democracia.
Em termos técnicos, um círculo de compensação aproveita os votos que não deram origem a mandatos nos restantes círculos. A sua utilidade depende de vários fatores e da forma como interagem: a dimensão desse círculo de compensação, o tamanho dos círculos que o alimentam e as fórmulas matemáticas de apuramento dos votos que para ele são direcionados para.
É aqui que os partidos podem dar largas à criatividade e apresentar propostas, as quais têm de ser escrutinadas, de modo que se perceba se contribuem para a resolução do problema, se nada mudam ou, pior, se o agravam.
No caso da fórmula adotada nas Regionais dos Açores, os resultados falam por si. Em 2008, o círculo de compensação “repescou” quase 7 mil votos, fazendo com que a percentagem de VVNCM fosse de 1,88%, em vez dos 9,73% que existiriam sem esse círculo. Em 2020, foram quase 10 mil os votos “resgatados” pelo círculo de compensação, fazendo com que os votos não convertidos fossem 4,9% do total, em vez de 14,79%.
No caso dos Açores, os círculos eleitorais anteriores mantiveram-se inalterados, o que facilita comparações entre o antes e o depois do círculo de compensação. Porém, também teria sido possível combinar um tal círculo com um redesenho dos restantes, que é a terceira sugestão da petição.
REDUÇÃO DO NÚMERO DE CÍRCULOS E AUMENTO DA SUA MAGNITUDE
Os estudos comprovam que os valores da não conversão de votos em mandatos são elevados sobretudo devido à divisão do território eleitoral em 22 círculos, muitos dos quais são de pequena magnitude, pelo que, tomando de empréstimo as palavras do constitucionalista Jorge Miranda a propósito do parlamento açoriano pré-círculo de compensação, “não é possível efetivar-se autenticamente a representação proporcional”.
Acresce a isto o facto de, atualmente, os distritos existirem apenas para fins eleitorais, pois as antigas funções dos governos civis transitaram para as CCDR e para as Áreas Metropolitanas. Assim sendo, porque não fazer coincidir os círculos eleitorais com as NUTS II e as AM de Lisboa e Porto, conferindo maior visibilidade a estas estruturas do Estado, evitando acusações de gerrymandering, reduzindo o número de círculos, aumentando a magnitude dos mesmos, e melhorando substancialmente a conversão de votos em mandatos?
PROTEGER E REFORÇAR A DEMOCRACIA
Combinar a redução do número de círculos e o aumento da sua magnitude com um círculo de compensação nacional, por exemplo, provocaria uma subida clara dos votos válidos convertidos em mandatos, transmitindo aos eleitores a mensagem de que o seu voto passou a ter maiores probabilidades de surtir o efeito por eles desejado: corresponder a uma representação efetiva no Parlamento.
Pessoalmente, defendo esta combinação e não me choca uma eventual fusão de NUTS II para tentar equilibrar a dimensão dos vários círculos (ex: Alentejo e Algarve ficarem juntos como Sul, e Madeira e Açores ficarem juntos como «Regiões Autónomas»). No que toca aos círculos da emigração, considero que deviam ser um só e a sua dimensão igual à do menor círculo em território nacional.
A conversão de mais votos em mandatos torna a AR num espelho mais fiel da vontade expressa nas urnas e contribui para uma valorização de cada eleitor, combatendo o desinteresse, o desalento e a indignação que podem decorrer da consciência de que, tanto em 2019 como em 2022, mais de 700 mil votos válidos foram, na prática, ignorados.
Adia-se há demasiado tempo a reforma do sistema eleitoral e há cada vez mais sinais de que é prioritário proteger e reforçar a democracia. Cada assinatura na petição que promovemos sublinha essa urgência e é uma reivindicação de respeito pela vontade de cada cidadão, independentemente das suas opções políticas e do local onde vota. Não há tempo a perder. O momento de agir é agora!
[1] A plataforma inclui dados relativos à Assembleia Constituinte de 1975 e a todas as legislativas subsequentes.
[2] Desde 1975, o PS teve apenas 79.547 VVNCM. O PSD, segundo partido menos prejudicado, tem quase o triplo: 230.416.
[3] Em 1812, Elbridge Gerry, governador do Massachusetts, redesenhou os limites dos círculos eleitorais para favorecer os candidatos do partido republicano. Como um dos novos círculos parecia uma salamandra, os jornalistas chamaram Gerry-mander a esta manipulação e o termo pegou e perdurou.