Remontando, nas suas características estruturantes, ao primeiro sufrágio democrático que ocorreu em Portugal, com a eleição da Assembleia Constituinte, o sistema eleitoral português, desenhado para outras condicionantes históricas, políticas, e sociais, tem exibido uma resiliência obstinada. Isto apesar de, desde a década de 80, terem sido vários os apelos à reforma, com origem na academia, na política e na cidadania.
A eficiência de um sistema eleitoral afere-se em função da sua proporcionalidade, da governabilidade e da qualidade de representação que propicia. Na génese do sistema atual, que surgiu por reação ao monopartidarismo do constitucionalismo autoritário, encontramos preocupações relacionadas com a institucionalização e fortalecimento dos partidos políticos. Marcelo Rebelo de Sousa afirma mesmo que foram os partidos a criar o sistema eleitoral, “moldando-o às suas estratégias políticas e não o sistema eleitoral a originar um determinado sistema partidário”. É este contexto que explica parâmetros constitucionais como o da representação proporcional na conversão de votos em mandatos, o do monopólio dos partidos na apresentação de candidaturas à Assembleia da República, e o sistema de lista fechada e bloqueada que, embora não imposto pela Constituição, está consagrado na lei eleitoral (no qual os eleitores escolhem apenas o partido, não podendo ordenar os candidatos preferidos numa ou várias listas, nem alterar a respetiva ordem). A proporcionalidade do sistema é atenuada pela fórmula de Hondt, critério constitucional que converte votos em mandatos. Este método é o menos proporcional de todos os sistemas proporcionais, e aquele que mais favorece as maiorias e prejudica as minorias. Outros desvios à proporcionalidade decorrem da magnitude dos círculos eleitorais, das alterações demográficas, que implicaram uma redução substancial da população residente no interior do país, e da redução do número de deputados, de 250 para 230, na revisão constitucional de 1989.
Nos primeiros anos da democracia, e até 1987, a principal preocupação em torno do sistema eleitoral português dizia respeito à governabilidade (entre 1976 e 1987, existiram dez governos em 11 anos). Esta fragilidade do sistema desapareceu a partir de 1987, apresentando o mesmo, desde então, uma estabilidade superior à média dos países europeus. A proporcionalidade é mais baixa do que a média dos congéneres europeus, mas onde o sistema falha, de modo flagrante, é ao nível da qualidade da representação parlamentar. Portugal é um dos países onde os eleitores têm menor liberdade de escolha quando votam: no nosso sistema, os eleitores apenas podem escolher o partido (não podendo exprimir preferências por deputados numa lista fechada), e apenas podem indicar a sua primeira preferência. De acordo com um estudo de Paulo Trigo Pereira e João Andrade e Silva, Portugal surge como um dos países, num ranking de democracias consolidadas, com menor liberdade de escolha eleitoral. Este cenário contrasta com o “antipartidarismo crítico” que, como salientam os politólogos, se tem vindo a afirmar como característica da cultura política portuguesa, marcada pelo crescente afastamento entre a sociedade civil e os partidos políticos, a que não é alheio o facto de a “casa da democracia [se ter tornado] uma mera caixa de ressonância da vontade das organizações partidárias”. Também os constitucionalistas vêm alertando que as eleições parlamentares se transmutaram “num cenário de democracia estrangulada pelo domínio dos partidos políticos”, em que vigora um “Estado de partidos, concebido e garantido pelas formações do sistema partidário”.
Em 2014, o Tribunal Constitucional italiano considerou que o sistema de lista fechada e bloqueada, ao permitir apenas a escolha em massa de listas contendo um vasto número de candidatos (tratando-se de grandes círculos eleitorais), constituía uma restrição da liberdade de escolha dos eleitores na eleição dos seus representantes, em violação do próprio princípio democrático. Com efeito, este tipo de regras priva os eleitores de toda a capacidade de escolher os seus próprios representantes, sendo essa escolha relegada inteiramente para a disponibilidade dos partidos políticos. Embora este défice de representação seja menos acentuado nos círculos eleitorais mais pequenos, nos quais, com listas mais reduzidas, existem condições efetivas para conhecer os candidatos e a ordem em que eles surgem e, portanto, para um voto consciente, surgem aí outros óbices, relacionados com os “votos inúteis” ou “votos desperdiçados”. Trata-se de votos válidos que, por vicissitudes do sistema eleitoral, não são convertidos em mandatos.
Segundo o politólogo Luís Humberto Teixeira, nas legislativas de 2022 os votos desperdiçados representaram quase 13% do total. No nosso sistema, os votos desperdiçados resultam da desproporcionalidade induzida pela fórmula de Hondt e da dimensão reduzida de alguns círculos eleitorais. Em círculos como Vila Real e Portalegre, os eleitores que não subscrevam as propostas dos dois grandes partidos com possibilidades de eleger deputados, têm três opções: não votar, votar em partidos em que não se sentem representados, ou votar por convicção, mas sabendo que esse voto não elegerá ninguém. Em maior ou menor medida, os votos desperdiçados são inerentes a qualquer sistema eleitoral. Mas os resultados práticos do sistema atual conduzem a que uma parte significativa do eleitorado nacional se veja limitado, na prática, a uma oferta partidária que redunda em bipartidarismo.
Duas modificações ao sistema permitiriam combater estas duas ineficiências apontadas, com a vantagem de prescindirem de uma modificação constitucional. Por um lado, a criação de um círculo nacional de compensação para eleição de 15 deputados, como é proposto na Reforma do sistema eleitoral apresentada pela SEDES, permitindo corrigir as distorções de proporcionalidade e quebras de representação.
Por outro, a introdução de um sistema de personalização do voto, que desloque alguma liberdade de escolha dos diretórios partidários para os eleitores, aumentando o poder dos cidadãos. Como resulta da literatura, a introdução de algum grau de personalização, embora comporte riscos, relacionados com o aumento dos custos da democracia, eventuais incentivos a financiamentos ilícitos, e possível diminuição da representação feminina, apresenta um potencial de regeneração do sistema político, propiciando um índice maior de satisfação dos cidadãos com a política. Seria de esperar, ainda, que um sistema deste tipo contribuísse para a tão necessária melhoria da qualidade da classe política. Com efeito, já John Stuart Mill alertava que o desenho do sistema eleitoral era crucial para atrair “capacidade” e “inteligência” à assembleia representativa, qualidades essenciais a um bom governo representativo e a uma democracia qualificada.
[1] Marcelo Rebelo de Sousa, Os partidos políticos no Direito Constitucional português. Braga: Livraria Cruz, 1983, p. 9.
[2] Paulo Trigo Pereira, João Andrade e Silva, “Citizen’s freedom to choose representatives: Ballot structure, proportionality and ‘fragmented’ parliaments”, 28 Electoral Studies (2009), 101-110, p. 107.
[3] Conceição Pequito Teixeira, Qualidade da democracia em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2018, p. 127.
[4] Paulo Otero, Direito Constitucional Português. Volume II – Organização do Poder Político. Coimbra: Almedina, 2019, p. 285.
[5] Carlos Blanco de Morais, O Sistema Político no Contexto da Erosão da Democracia Representativa. Coimbra: Almedina, 2018, p. 581.
[6] Sentenza 1/2014.
[7] https://expresso.pt/eleicoes/legislativas-2022/2022-01-31-Mais-de-671-mil-votos-foram-para-o-lixo-nestas-legislativas.-Foi-um-em-cada-sete-c2760589.
[8] Carmen Ortega, “Intraparty Preference Voting and Democratic Regeneration: Does it Make a Difference?”, em Marina Costa Lobo (org.), Sistema eleitoral português: Problemas e soluções. Coimbra: Almedina, 2018.
[9] John Stuart Mill, Representative Government. Kitchener: Batoche Books, 2001, p. 76.