A EVENTUAL TANGIBILIDADE DO CASO JULGADO FUNDADO EM NORMAS INCONSTITUCIONAIS SANCIONATÓRIAS MENOS FAVORÁVEIS
Breves notas sobre o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 [1]
A presente breve reflexão versará sobre o Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 268/2022 sobre a Lei dos Metadados, concentrando-se especificamente nos respetivos efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Em concreto, o Acórdão sub juditio suscita dois problemas delicados em matéria de contencioso constitucional: (1) a eventual tangibilidade do caso julgado fundado em normas inconstitucionais sancionatórias menos favoráveis; (2) a ressalva ope constitutionis do caso julgado perante a jurisprudência do TJUE. No presente artigo, concentrar-nos-emos na questão (1). Vejamos.
O Acórdão sub juditio não procede à limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, pelo que, nos termos do n.º 1 e n.º 3, do artigo 282.º, da CRP, é aplicável o regime regra dos efeitos das decisões de acolhimento, no que concerne à inconstitucionalidade originária:
i. Efeitos ex tunc da decisão, sendo a norma erradicada do ordenamento jurídico bem como os efeitos por ela produzidos desde a sua entrada em vigor;
ii. Repristinação, automática, do direito revogado pela norma declarada inválida;
iii. A força obrigatória geral decorrente da decisão traduz-se: (i) força de caso julgado formal e material; (ii) eficácia erga omnes;
A nulidade das normas declaradas inconstitucionais, constituída, em regra, no preciso momento em que entraram em vigor, importa não apenas a expulsão da norma do ordenamento e a cessação imediata de efeitos futuros, mas também a eliminação de efeitos passados que não tenham transitado em julgado. O que significa que os efeitos da decisão são aplicáveis aos processos pendentes.
A doutrina considera que a decisão produz “os efeitos próprios do caso julgado formal e material”[2]: (i) Caso julgado formal, tornando-se irrecorrível no processo, não podendo o TC interpretar, modificar, suspender ou revogar a decisão, sem prejuízo da eventual arguição da respetiva nulidade através de um recurso extraordinário para o próprio órgão[3]; (ii) Caso julgado material, porquanto a decisão produz efeitos extraprocessuais, projetando efeitos erga omnes.
A regra, por aplicação direta da Constituição, é, portanto, o da salvaguarda do caso julgado. Contudo, se a norma inconstitucional for de natureza sancionatória (lato sensu: lei penal, disciplinar e de mera ordenação social[4]) e menos favorável ao arguido, pode o TC determinar a tangibilidade do caso julgado, através de decisão expressa, nos termos constitucionais.
Trata-se de dar prevalência ao princípio da aplicação do direito mais favorável ao arguido, sediado no Direito Processual Penal e no artigo 29.º, n.º 4, da CRP, com projeção nas competências do TC na segunda parte do preceito constitucional citado. Neste conspecto, não ficará ressalvado o caso julgado quando da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral “resultar uma redução da pena ou de sanção ou uma exclusão, isenção ou limitação da responsabilidade”[5], aplicando-se nesse caso “a norma repristinada mais favorável”[6].
Perante o princípio enunciado no n.º 4, do artigo 29.º, da CRP, impõe-se, contudo, questionar se a revisão do caso julgado é automática e imperativa para o TC. Trata-se de uma questão que reveste crucial importância perante decisões de provimento do TC como a sub juditio. Perante os pressupostos constitucionais, a inexistência de revogação expressa do caso julgado pelo TC é suscetível de ser considerada uma omissão inconstitucional?
Jorge Miranda e Paulo Otero sustentam que, não obstante a tangibilidade do caso julgado careça de revogação expressa por decisão do Tribunal Constitucional, à luz do princípio da proporcionalidade, a preterição do princípio processual penal acarreta uma omissão inconstitucional[7], devendo os tribunais criminais reapreciar os casos julgados[8], com possibilidade de recurso para o TC[9]. Ou seja, embora a regra da modificabilidade do caso julgado não seja automática, constitui uma obrigação[10] para o TC.
Por sua vez, Fernanda Palma[11], embora reconheça que a formulação do artigo 282.º, n.º 3, da CRP, se refere a uma faculdade atribuída ao TC, não hesita em qualificá-la de disfuncional e “sistematicamente aberrante, sobretudo no caso em que a lei penal inconstitucional é menos favorável”[12], porquanto, no seu entendimento, “a proteção do caso julgado em tais hipóteses colide com a estrutura fundamental da legalidade e do Estado de Direito”[13]. Por conseguinte, atribui-lhe a natureza de “um poder vinculado exclusivo do próprio Tribunal”.
Depois de notar que, em rigor, “a lei inconstitucional (menos favorável), por não ser válida, não consta de uma verdadeira sucessão de leis penais”, Fernanda Palma sustenta que a proteção do caso julgado colidiria não tanto com o artigo 29.º, n.º 4, da Constituição, que consagra o princípio da aplicação da lei penal mais favorável, numa sucessão de leis penais, mas sobretudo o próprio princípio da legalidade, “já que uma norma penal incriminadora inconstitucional não poderia fundamentar qualquer decisão judicial de qualificação dos factos, pois seria uma incriminação sine lege praevia.”[14] Por conseguinte, para Fernanda Palma, a reabertura do caso julgado, perante as normas incriminadoras declaradas inconstitucionais constitui “uma decorrência do princípio de legalidade e do Estado de Direito, consagrados respectivamente nos artigos 29.º e 2.º da Constituição[15]”.
Blanco de Morais e Alves Correia, pelo contrário, refutam a interpretação da 2.ª parte, do n.º 3, do artigo 282.º, da CRP, como uma “regra de inderrogabilidade absoluta do caso julgado”[16], pois a mesma não opera ope constitutionis, porquanto “não existe automaticidade na transposição do caso julgado em matéria sancionatória[17], o qual só pode resultar de “uma decisão explícita e motivada”[18] do órgão máximo da Justiça Constitucional. Blanco de Morais nota que o TC “pode fixar critérios gerais em favor da aplicação às situações cobertas pelo caso julgado, seja do Direito repristinado, seja de legislação supervenientemente editada”[19].
Acrescem as aduzidas dificuldades de coadunação hermenêutica entre, sobretudo, a tese da inderrogabilidade automática do caso julgado com o disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 449.º, do Código de Processo Penal (CPP), norma que permite a revisão de sentença transitada em julgado quando: “f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;”. No caso das normas impugnadas no Acórdão sub juditio, haveria ainda que atender ao fundamento disposto na alínea e), do mesmo preceito legal, que torna admissível a revisão da sentença transitada em julgado, se “se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.º 1 a 3 do artigo 126.º”, ou seja, em conformidade com o n.º 3, do artigo 126.º, o qual determina que “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.”.
Perante o exposto, impõe-se questionar se o fundamento descrito é invocável nos casos em que a norma incriminadora inconstitucional menos favorável é objeto de uma decisão de provimento do TC, na qual, porém, o Tribunal não se pronuncia no sentido da derrogabilidade do caso julgado? Para a tese da vinculatividade da decisão do TC, para efeitos da 2.ª parte, do n.º 3, do artigo 282.º, da CRP, não sobram dúvidas de que as normas legais citadas configurariam credenciais suficientes para os tribunais criminais superarem a diagnosticada omissão inconstitucional do TC e, em consequência, reabrirem os casos julgados. Neste conspecto, a norma constitucional atributiva de competência ao TC, o órgão máximo da Justiça Constitucional, perderia qualquer utilidade. Se qualquer tribunal, e não apenas o TC, pode reabrir o caso julgado nessas circunstâncias, porque é que o legislador constituinte quis conferir, expressamente, esse poder apenas ao TC? Dir-se-á que da decisão de revisão a adotar pelo tribunal criminal haverá recurso para o TC. Recurso para o TC, cumpre notar, haverá sempre.
Pela nossa parte, propendemos a sufragar a tese da inderrogabilidade absoluta e automática do caso julgado, perante normas sancionatórias declaradas inconstitucionais de conteúdo menos favorável ao arguido, pelas razões seguintes:
i. Em primeiro lugar, sobressai o elemento literal de interpretação, porquanto afigura-se-nos incontornável que a existência de uma obrigação ou dever vinculado teria de resultar expressamente do enunciado constitucional;
ii. Em segundo lugar, no plano teleológico, poder-se-á deduzir que o TC, enquanto órgão máximo da Justiça Constitucional e o único tribunal investido no poder de erradicar normas inconstitucionais com força obrigatória geral, será, na perspetiva constitucional, o tribunal melhor colocado na ordem jurídico-constitucional portuguesa para proceder a ponderações com eficácia erga omnes com vista à eventual derrotabilidade do princípio da constitucionalidade ou da sua eventual prevalência sobre outros bens constitucionalmente protegidos como sejam o princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido;
iii. Precisamente, porque é o TC, nos termos do artigo 221.º, da CRP, o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional.
Dir-se-á, numa perspetiva lógico-sistemática, que a tese contrária – a tese da tangibilidade absoluta do caso julgado – configuraria o desenvolvimento lógico do reconhecimento aos tribunais comuns do poder de aplicar normas inconstitucionais aos feitos submetidos a julgamento, nos casos em que as normas sindicadas são de conteúdo mais favorável ao arguido, operando o n.º 4, do artigo 29.º, como uma exceção ao artigo 204.º, da CRP. Se os tribunais podem, ao abrigo desse princípio, aplicar normas inconstitucionais, porque é que não lhes é reconhecido o poder de reabrir casos julgados perante normas incriminadoras declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral pelo TC?
Por duas razões:
iv. Precisamente, porque o TC, no exercício das suas competências próprias e exclusivas, atribuídas expressamente pela Constituição, procedeu a uma ponderação e decidiu não reabrir os casos julgados, apesar de a norma invalidada com força obrigatória geral ser de natureza sancionatória e menos favorável ao arguido;
v. O legislador constituinte atribuiu, expressamente, ao TC, em sede de prolação de decisão de provimento em fiscalização sucessiva abstrata, a faculdade de ponderar, à luz do princípio da proporcionalidade, se, estando verificados os pressupostos elencados na norma constitucional de derrotabilidade do caso julgado, pode o mesmo ser objeto de modificação em virtude da destruição retroativa da norma que fundou esse mesmo caso julgado, em favor da aplicação do tratamento legislativo mais favorável.
vi. Admitir-se que um tribunal criminal possa substituir-se ao TC na revisão do caso julgado, nos casos expressamente previstos na 2.ª parte, n.º 3, artigo 282.º, da CRP, atentaria diretamente contra o princípio da intangibilidade do caso julgado, aplicável ope constitutionis, bem como as competências do TC e a respetiva reserva constitucional de jurisdição;
vii. Uma interpretação nesse sentido ofenderia a segurança jurídica, estimularia um profuso subjetivismo e desigualitário por parte dos tribunais comuns;
Por tudo isto, parece-nos inevitável moldar o sentido das normas constitucionais mencionadas supra, por forma a atribuir-lhes um sentido conforme com a Constituição, mais especificamente, ajustado à competência do TC, tal como resulta das normas estudadas. O Código de Processo Penal é uma lei e, como ato legislativo, encontra-se sujeito ao princípio da constitucionalidade, sendo as suas normas inválidas caso desrespeitem os cânones constitucionais (cfr. artigo 3.º, n.º3, da CRP). Sendo uma lei ordinária é um ato hierarquicamente inferior à Constituição, pelo que deve ser lida em conformidade com o seu parâmetro de validade, material e formal, e não o inverso.
Em consequência, as alíneas e) e f), do n.º 1, do artigo 499.º do CPP, devem ser interpretadas no sentido de apenas serem aplicáveis nos casos em que o TC exerceu a faculdade conferida na 2.ª parte, do n.º 2, do artigo 282.º, da CRP20. Ou seja:
i. No caso da alínea f), é admissível a revisão de sentença transitada em julgado quando seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação e o TC tenha determinado essa revisão;
ii. No que concerne à alínea e), a revisão da sentença transitada em julgado é admissível com este fundamento, caso se descubra que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.º 1 a 3 do artigo 126.º, tendo essas provas sido autorizadas por normas declaradas inconstitucionais com força obrigatória geral pelo TC, com os efeitos previstos na 2.ª parte, do n.º 3, do artigo 282.º, da CRP.
[1] O presente artigo versa sobre um dos tópicos desenvolvidos na Conferência que proferimos em junho de 2022, na Ordem dos Advogados, sobre “Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da Lei dos metadados”
[2] Blanco de Morais, Carlos (2011) Justiça Constitucional, Tomo II, Coimbra Editora: Coimbra; cit, p. 193.
[3] Foi o que sucedeu no presente processo, tendo gerado o Acórdão do TC n.º 382/2022.
[4] Otero, Paulo (1993) Ensaio sobre o Caso Julgado Inconstitucional, Lex: Edições Jurídicas: Lisboa; cit., p.
[5] Miranda, Jorge (2017) Fiscalização da Constitucionalidade, Almedina: Coimbra; cit., p. 342.
[6] Alves Correia, Fernando (2016) Justiça Constitucional, Almedina: Coimbra; cit. p. 342. 7 Idem, Ibidem.
[7] Otero, Paulo (1993) Ensaio sobre o Caso Julgado Inconstitucional, Lex: Edições Jurídicas: Lisboa; cit. p. 49, nota 95.
[8] Idem, Ibidem.
[9] Miranda, Jorge (2017) Fiscalização da Constitucionalidade, Almedina: Coimbra; cit., p. 342.
[10] Idem, Ibidem.
[11] Fernanda Palma, Maria “O legislador negativo e o intérprete da Constituição”, in O Direito, Vol. 140, n.º 3, 523-535;
[12] Idem, Ibidem, cit., p. 340.
[13] Idem, Ibidem.
[14] Idem, Ibidem.
[15] Idem, Ibidem.
[16] Alves Correia, Fernando (2016) Justiça Constitucional, Almedina: Coimbra; cit., p. 342.
[17] Blanco de Morais, Carlos (2011) Justiça Constitucional, Tomo II, Coimbra Editora: Coimbra; cit, p. 212.
[18] Idem, Ibidem.
[19] Idem, Ibidem.
[20] Em sentido análogo – Freitas Belo, Paulo Renato (2014) “O recurso de revisão e a reforma penal”, in JULGAR – N.º 23 – 2014; p. 104.