O Ministério da Justiça e a Troika. Um testemunho
Há já algumas décadas que se reconhece que um enquadramento institucional estável e funcional é um dos fatores-chave para o crescimento económico e para o desenvolvimento de uma atividade económica mais sofisticada e competitiva. De entre as Instituições relevantes, aquela que mais afeta a economia (e os mercados) é o sistema de Justiça – o conjunto do Sistema Legal e do Sistema Judicial. Os mercados, afinal, consistem num conjunto de relações, acordos e contratos entre as pessoas, que se baseiam na confiança quanto ao seu cumprimento. Assim, a par do bom funcionamento institucional, o grau de confiança dos cidadãos nos poderes dessas instituições em fazer cumprir as regras, são também críticos. Como colocado por Olson[1] , são “os sistemas legais que garantem os contratos e protegem os direitos de propriedade”. É o funcionamento do conjunto destes dois elementos que determina a facilidade ou a dificuldade de obtenção de uma correta afetação dos recursos de um País. Um bom sistema de Justiça promove o crescimento e uma mais rápida acumulação dos fatores de produção, suportando e defendendo os direitos de propriedade e os contratos.
Um bom sistema de Justiça promove o crescimento e uma mais rápida acumulação dos fatores de produção, suportando e defendendo os direitos de propriedade e os contratos.
Afinal, o que é um “bom” sistema de Justiça? Para além da qualidade legislativa, um “bom” sistema Judicial é um que tem a capacidade de decidir (1) de forma justa, (2) de forma previsível, e (3) em tempo útil. Um sistema de Justiça imperfeito traduz-se em incentivos (distorcidos) que podem levar a comportamentos irregulares / ilegais, que dificultam a formação de redes de confiança mútua, reduz a proteção contra lesões dos direitos dos agentes, e os lesados encaram essa redução como um aumento do seu custo de contratar; enquanto, por outro lado, se criam incentivos para oportunistas, que veem aumentar a probabilidade de uma transação que lhes seja mais favorável.
Entre as causas de um deficiente funcionamento do sistema Judicial encontra-se a morosidade da Justiça. A morosidade da justiça cria as condições necessárias para comportamentos oportunistas por parte de alguns indivíduos e de algumas empresas que contam com um longo e incerto período temporal pela frente por forma a adiar o cumprimento das suas obrigações contratuais, assim obtendo ganhos económicos através da mera exploração das ineficiências do sistema[2]. Para as restantes empresas, isso aumenta a incerteza relativamente ao custo e ao tempo associado com a litigância em tribunal para fazer valer direitos, resultando em verdadeiros custos adicionais, vendo-se na necessidade de alterar os seus comportamentos de forma a evitar (ou reduzir) tais custos; o que tem efeitos nas suas decisões de investimento, nas decisões relacionadas com a dimensão da empresa, nas respeitantes à criação de emprego, nas de com quem contratar (evitando novos parceiros com quem não interagiram anteriormente, por exemplo, resultando em barreiras à entrada de novas empresas nos mercados, porventura mais eficientes), podendo ainda gerar um maior tendência a que as empresas escolham integrar-se verticalmente[3]. As empresas passam a ter (também) como objetivo evitar ações em tribunal – e isso afeta a sua tomada de decisão. O que leva a que se possa estabelecer uma relação entre a morosidade da justiça (ineficiência do sistema Judicial) e a ineficiência do sistema económico.
A morosidade da justiça cria as condições necessárias para comportamentos oportunistas por parte de alguns indivíduos e de algumas empresas que contam com um longo e incerto período temporal pela frente por forma a adiar o cumprimento das suas obrigações contratuais
Cabral e Castelar (2003)[4] conduziram um estudo para a economia portuguesa que incidiu sobre a forma como o Sistema de Justiça influencia as decisões das empresas. Apesar de ter alguns anos, a verdade é não foi feito estudo posterior semelhante e que se acredita que os resultados se mantêm válidos. O estudo abrangeu 2672 empresas portuguesas, das quais 75% afirmou já ter tido contacto com os tribunais. 98,5% das empresas inquiridas classificaram o sistema judicial como “mau” ou “muito mau” no que concerne à morosidade da justiça, tendo 94% classificado o custo de acesso aos tribunais como “alto” ou “muito alto”. Em termos gerais, 91% das empresas consideraram que o desempenho do sistema judicial português era “mau” ou “muito mau”. As empresas revelaram ainda que os fatores que mais afetavam os seus custos e as suas decisões eram (1) os impostos, (2) os custos do trabalho e (3) o sistema de Justiça, infraestruturas e custos associados ao cumprimento de padrões de produção obrigatórios e regulação industrial. Mais preocupante, foi o facto de as empresas inquiridas ter revelado que alterariam substancialmente as suas práticas de negócio se o desempenho dos tribunais fosse “bom”. O aumento de investimento estimado resultante de tal melhoria foi de 9,9%, o aumento do emprego de 6,9% e o aumento da produção de 9,3%. Foi ainda interessante verificar que, individualmente, as empresas afirmaram que tomavam medidas para se “proteger” do risco de ter de lidar com o sistema judicial – tal como lidar com fornecedores ou com clientes conhecidos, apenas.
A verdade é que, se as empresas, de facto, aumentassem o seu investimento, a sua produção e contratassem mais trabalhadores, o efeito direto sobre a taxa de crescimento do PIB português seria um aumento anual de 0,2%. Numa altura em que o crescimento anual do PIB rondava os 2% ao ano, este efeito direto representaria um aumento de 10% na taxa de crescimento anual – um efeito que se prolongaria no tempo, ao longo de vários anos, cumulativo. Não se deve ainda esquecer que, para além deste efeito direto estimado, vários outros efeitos indiretos (mais difíceis de estimar, mas certamente também significativos) resultariam. Tal como aumentos de eficiência e resultante maior produtividade, mais rápido progresso tecnológico, etc. Assim sendo, o aumento da taxa de crescimento estimado subestima o potencial crescimento adicional que poderia resultar dum sistema Judicial eficiente[5]. Merece ainda referencia o facto de Cabral e Castelar (2001)[6] terem ainda demonstrado a existência de uma relação entre o funcionamento do sistema Judicial e o desenvolvimento dos mercados de crédito, resultando um melhor funcionamento destes, em taxas de juro mais baixas no setor bancário e, consequentemente, numa expansão do investimento e do crescimento económico. Finalmente, de considerar efeitos adicionais relacionados com o resultante aumento do investimento estrangeiro. Sem esquecer os efeitos multiplicadores do investimento sobre o PIB.
Fica a questão: existirão incentivos económicos suficientes para que, quem tem o poder de estudar e implementar melhorias na morosidade da justiça, o queira fazer?
[1] Olson, M. (1996), Distinguished Lecture of Economics in Government – Big Bills Left on the Sidewalk: Why Some Nations are Rich and Others Poor, Journal of Economic Perspectives, 10(2);
[2] Quando os custos do recurso à via judicial não suficientemente elevados para dissuadir estes comportamentos.
[3] Conforme defendido por Lorizioa, M. e Gurrieria, A.R., Efficiency of Justice and Economic Systems, Procedia Economics and Finance 17, 2014, pp. 104 – 112.
[4] Cabral, C.C. e A. Castelar, “A Justiça e o seu impacte sobre as Empresas Portuguesas”, Coimbra Editora, 2003.
[5] O Banco de Itália estimou a perda associada a deficiência no sistema de Justiça em 1% do PIB, concluindo ainda que a morosidade constitui um dos maiores entraves ao investimento estrangeiro. Ver Lorizioa e Gurrieria, 2014, acima referido.
[6] Cabral, C.C. e A. Castelar, “Credit Markets in Brazil: The Role of Judicial Enforcement and Other Institutions” em “Defusing Default: Incentives and Institutions”, Marco Pagano (Ed.), Johns Hopkins University Press para a OCDE, 2001.