Propriedade intelectual e vacinas anti COVID-19
Durante uma pandemia, ninguém está seguro até que todos estejam seguros.
Portanto, desde o início desta crise global, estava claro que não precisávamos apenas de vacinas, precisávamos de enormes quantidades delas e numa dimensão muito superior ao que fabricantes e redes de distribuição eram capazes de produzir e distribuir antes da pandemia. O desafio colossal e imperativo de atender a essa necessidade global criou dificílimos problemas morais e jurídicos cuja resolução é essencial, não apenas para acabar com a atual pandemia, mas também para garantir que estejamos mais preparados para a próxima.
Para proteger os seus cidadãos, os governos foram forçados a encontrar um equilíbrio entre a proteção imediata de suas populações – por meio de programas domésticos de vacinação – e sua proteção indireta, ao apoiar o esforço global de vacinação liderado pela COVAX. Uma situação moral e legal semelhante também diz respeito à propriedade intelectual dessas vacinas que, à primeira vista, parece colocar os direitos legais das empresas de proteger as suas patentes em conflito direto com os direitos das pessoas de levarem vidas saudáveis, ao garantir que haja doses de vacinas suficientes para todos.
O acesso equitativo e justo às vacinas anti COVID-19 é o princípio fundamental da COVAX, que foi criada para garantir que ninguém fique sem proteção por não ter condições de pagar. Sem a COVAX, essa seria a realidade para pelo menos metade da população mundial: aquelas pessoas que vivem nas 92 economias de baixo rendimento. Mas, por meio do Compromisso de Mercado Antecipado da Gavi / COVAX, removeram-se as barreiras financeiras ao reunir-se recursos e poder de compra coletivo. Assim, estamos em condição de entregar 1,5 mil milhões de doses para as pessoas desses países até o início do próximo ano, financiadas em grande parte por doadores.
Como a procura global por essas vacinas é várias vezes superior ao suprimento, claramente precisamos de fazer todo o possível para aumentar a capacidade de produção
Para se conseguir isso tornou-se necessário alinhar várias peças complexas: desde o apoio ao desenvolvimento de um grande número de vacinas, bem como levantar o financiamento necessário para assim negociar com os fabricantes num mercado que assistiu a uma competição sem precedentes. E para distribuir vacinas em países com menos recursos é preciso garantir que todas as peças logísticas estejam no lugar: cadeia de abastecimento, armazenamento refrigerado, sistemas de dados, redes de vigilância e profissionais de saúde treinados, bem como todo um sistema de indemnizações legais, incluindo seguros de responsabilidade e compensações.
Chegar até aqui foi possível porque a COVAX se baseou nos pontos fortes pré-existentes de minha organização, a Gavi, The Vaccine Alliance, bem como de seus outros três principais parceiros: a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI), a Organização Mundial da Saúde e o UNICEF. Mas, sem dúvida, gostaríamos que tudo se tivesse passado mais rapidamente e, numa próxima vez, precisaremos de fazê-lo.
Além de levantar os fundos necessários, para o que efetivamente se tornou a maior e mais complexa distribuição de vacinas da história, o maior obstáculo tem sido o fornecimento. Mesmo antes de as vacinas estarem disponíveis, quando a comunidade científica estava numa grande corrida para o seu desenvolvimento, já prevíamos as restrições iniciais de abastecimento. Durante uma pandemia, “engarrafamentos” e bloqueios no fornecimento de produtos médicos essenciais são quase inevitáveis, mas com a COVID-19 isso foi agravado pelos governos que acumularam doses para consumo interno e impuseram restrições à exportação, não apenas de vacinas, mas também de muitos dos componentes vitais e materiais necessários para produzi-las.
Como resultado, a partilha global dessas vacinas tem estado longe de ser justa. Muitos países ricos já vacinaram mais da metade de sua população, enquanto em países de baixo rendimento apenas cerca de 1% das pessoas receberam a primeira dose. Portanto, embora haja 17 vacinas disponíveis e mais de 3 000 milhões de doses tenham sido administradas, milhões de pessoas de maior risco, como profissionais de saúde e assistência social da linha de frente e pessoas vulneráveis, ainda não estão protegidas.
A solução para este problema, muito simplesmente, é a obtenção e distribuição de mais vacinas. Isso levou muitas pessoas, e alguns governos, a pedirem a renúncia de patentes para vacinas anti COVID-19, de forma a aumentar-se a capacidade global, permitindo que outros fabricantes produzam mais doses do que os fabricantes proprietários seriam capazes.
É fácil ver a lógica e certamente houve precedentes para tais movimentos, por exemplo, com a produção de medicamentos antivirais para
HIV / SIDA. Mas as vacinas são muito diferentes de fármacos. Ao contrário da maioria dos medicamentos, que podem ser produzidos em massa com relativa facilidade, as vacinas são produtos inerentemente biológicos e de fabricação extraordinariamente complexa. Algumas vacinas anti COVID-19 envolvem centenas de componentes individuais, até 50.000 etapas de produção e dezenas de verificações de controle de qualidade, todos os quais requerem um know-how importante, o qual não vem automaticamente com a respetiva patente. Para um fabricante produzir uma vacina desenvolvida por outro, não basta compartilhar a propriedade intelectual, torna-se também necessária a transferência de toda a expertise indispensável ao seu fabrico.
Além disso, a propriedade intelectual é parte importante do desenvolvimento de vacinas e crítica para a inovação; sem a vigência de regimes de propriedade intelectual é questionável que teríamos hoje 17 vacinas anti COVID-19 em uso, 105 em ensaios clínicos e mais 184 vacinas candidatas em desenvolvimento pré-clínico. Mas como a procura global por essas vacinas é várias vezes superior ao suprimento, claramente precisamos de fazer todo o possível para aumentar a capacidade de produção. Por isso a COVAX tem apoiado fortemente os fabricantes a compartilhar não apenas a propriedade intelectual, mas também este importante know-how técnico.
Esse tipo de transferência de tecnologia é uma das razões pelas quais conseguimos obter grandes volumes de doses, tão rapidamente. Mas precisamos de mais. E se quisermos estar preparados para a próxima pandemia, torna-se necessário também aumentar a capacidade de fabrico global, especialmente em regiões com baixa capacidade de produção. E embora a COVAX apoie as medidas que aumentem a partilha de propriedade intelectual, encorajar o uso adicional de transferências de tecnologia é a melhor maneira de garantir que haja fornecimento adequado, sem remover os incentivos para os fabricantes desenvolverem as vacinas de que tão desesperadamente o mundo necessita.