O Ministério da Justiça e a Troika. Um testemunho
Fez, no passado dia 6 de abril, uma década sobre o anúncio do pedido de assistência financeira apresentado pelo Governo à Comissão Europeia por forma a, como então expressou o Primeiro Ministro, garantir as condições de financiamento do nosso país, ao nosso sistema financeiro e à nossa economia.
No seu rescaldo, as autoridades portuguesas, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional acordaram, em maio de 2001, o denominado Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), materializado no Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidade de Política Económica (MoU) e do Contrato de Financiamento.
Precedendo a assinatura deste MoU, Portugal cumpriu as ações prévias (prior actions) fixadas em outro documento estruturante e pouco mais do que desconhecido – o Memorando de Políticas Económicas e Financeiras (Memorandum of Economic and Financial Policies – MEFP).
O PAEF assentava numa estratégia orientada para a recuperação da confiança dos mercados financeiros internacionais e para a promoção da competitividade, assentando em três eixos estruturais: a consolidação orçamental, a estabilidade do sistema financeiro e a transformação estrutural da economia portuguesa.
Para o setor da Justiça, perfilavam-se, no Acordo, uma plêiade de medidas que visavam robustecer o funcionamento do sistema judicial, considerado essencial para o funcionamento da economia e para o acréscimo da competitividade do País; aumentar os níveis de eficiência e de eficácia através da reestruturação desse sistema e da adoção de novos modelos de gestão dos tribunais; fortalecer a resposta atempada, através da eliminação de pendências em atraso, particularmente, no âmbito da ação executiva.
A tais medidas expressamente acordadas para a reforma do sistema judicial e previstas nos § 7.1 e seguintes do MoU acrescia a obrigação, que passou a impender sobre a área setorial da Justiça – desalocada da Economia onde, inicialmente, estava posicionada – garantir a aprovação da alteração do Código de Insolvência, em prazo invariavelmente curto (fim de novembro de 2011), para facilitar a recuperação efetiva de empresas viáveis e introduzir uma maior celeridade nos procedimentos judiciais de aprovação de planos de reestruturação, bem como a definição, em lapso temporal ainda mais estreito (setembro desse ano) dos princípios gerais de reestruturação voluntária extrajudicial em conformidade com boas práticas internacionais.
No fim da linha, com o País em situação de falência técnica, assumia especial relevância o pacote de assistência financeira, que previa, para o período de 2011 a 2014, um total de 78 mil milhões de euros, dos quais 52 mil milhões correspondiam a financiamento através dos mecanismos europeus (Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira e Fundo Europeu de Estabilidade Financeira) e 26 mil milhões a assistência do FMI.
Ora, algumas daquelas medidas eram consideradas structural benchmark no referido MEFP, impondo-se, por isso, como particularmente determinantes para o sucesso ou insucesso do Programa de Assistência. Era o caso, designadamente, e no que à Justiça relevava, da alteração do Código da Insolvência (§2.17), da Lei da Arbitragem (§7.6) e, ainda, da revisão do Código do Processo Civil a fim de promover a celeridade, eficácia e simplificação de procedimentos, em particular, nos domínios assumidos como primaciais à luz dos objetivos que norteavam o Acordo: os processos executivos e a denominada justiça económica (§7.13).
Nesses primeiros dias, assistia, como tantos de nós, a este momento particularmente dorial e angustioso da nossa experiência coletiva, que testava, até outros limites, a instituição democrática mergulhada num contexto de crise severa, sem, por um instante, antecipar que viria a ter alguma intervenção, por certo modesta, mas pessoalmente excruciante, na hora aguda que, então, soava.
Mas porque a exigência do momento não permitia indecisões, quando fui instada pela Ministra da Justiça do XIX Governo Constitucional, que pessoalmente não conhecia, para assumir funções no seu Gabinete com a responsabilidade primeira de assegurar a coordenação técnica do processo da implementação do Programa de Ajustamento Económico e Financeiro para a área da Justiça não hesitei por um segundo.
Este artigo é, pois, e apenas, um breve testemunho dessa experiência, não pretendendo significar um esquiço de avaliação de impacto normativo das medidas então adotadas, o qual demanda e pressupõe, naturalmente, mais do que estas linhas.
Por outras palavras, se no âmbito da minha atividade académica, não desconsiderei a responsabilidade de procurar contribuir para a análise técnica da experiência do Ministério da Justiça Português com a Troika, em especial, no domínio do processo de cobrança de dívidas – um dos eixos axiais do Programa, conforme salientado – justificando, através dos resultados e numa série de estudos publicados em coautoria com Pedro Correia, o sucesso dessas medidas, neste contexto, propósito é outro: deixar o registo de uma experiência pessoalmente marcante, preservando a memória de um momento da nossa vida coletiva que também explica o sistema de Justiça que temos vindo a construir.
Naquele contexto, importa recordar que, no decurso do PAEF, Portugal recebeu 11 desembolsos, tendo o Programa terminado a 30 de junho de 2014, sem o desembolso da última tranche prevista.
Foram 12 as missões de revisão de um Acordo severo, pungente e doloroso, mas que, ao mesmo tempo, configurou um momento de oportunidade – a tal palavra que, na prosa de Fernando Pessoa, constitui, para o homem consciente e prático, aquele fenómeno exterior que pode ser transformado em consequências vantajosas – para encetar um conjunto de reformas, também, no sistema de Justiça.
E a Justiça foi, como é sabido, o primeiro setor a concluir a execução das medidas acordadas com os parceiros internacionais, três meses antes do Programa expirar.
Ora, a convicção de quem, como eu, esteve, desde as primeiras horas, envolvida na execução do Acordo é a de que o balanço das medidas então tomadas pelo Ministério da Justiça, nas áreas assumidas como relevantes pelo PAEF por terem especial impacto na economia e competitividade do País, é globalmente positivo.
Entendo, ademais, que a memória desse cruciário momento nos continua a demonstrar, à saciedade, que a justeza e a credibilidade do sistema não dispensam a simplificação, a celeridade e a desmaterialização dos procedimentos, tal como um país eficiente não dispensa uma Justiça eficiente.
E tanto assim é que, neste nosso tempo de transformações jurídicas rápidas e conjunturais, as opções de estrutura ou as bases programáticas que estiveram subjacentes à reforma da Justiça no tempo da Troika – assente em três pilares ou eixos axiais, que são a organização judiciária ancorada num modelo de gestão, centralizado e autónomo, orientado por objetivos, pela especialização e pela proximidade ao cidadão; um novo Código de Processo Civil, que alinhe as exigências de eficácia da ação executiva com a adequação da resposta ao nível do processo declarativo; e a capacitação ou suporte tecnológico do sistema – foram mantidas, na esfera interna, no essencial e apresentadas, pelos parceiros internacionais, como boas práticas ou modelo a replicar.
Em abono da conclusão agora extraída, e tantos outros exemplos poderíamos aditar, fica o registo de que que a Ucrânia introduziu, recentemente, um sistema de penhora de contas bancárias semelhante ao existente em Portugal, após visita bem-sucedida de uma delegação do respetivo Banco Central, que, enquanto Diretora Geral da Política de Justiça, tive a oportunidade de acolher há cerca de três anos, a solicitação do Fundo Monetário Internacional.
Mas, o sucesso de qualquer medida decretada, ainda que ao abrigo de uma visão sistémica e com a força associada à execução de um memorandum de entendimento celebrado com instâncias internacionais, não dispensa, antes pressupõe, outras reformas que não se materializam por decreto.
Falamos da mudança de hábitos, de procedimentos, de mentalidades, de meios, de perceções.
Com efeito, em contexto de crises cíclicas, agudizado pelo surto pandémico em curso, que incita à exclusão, à compressão das liberdades e ao aproveitamento demagógico das estruturas existentes da sociedade, importa analisar seriamente “o projeto inacabado da modernidade” de que fala Habermas, também com o propósito de estancar a erosão real e simbólica do insubstituível papel que o sistema judicial personifica no Estado de Direito democrático, recuperando a confiança [e a esperança] no último reduto de garantia dos direitos fundamentais.