Dez anos após a troika. Um balanço na Justiça.
Pode objetivamente reconhecer-se que muito foi feito e o cenário que hoje se vive é bem distinto daquele que era conhecido há pouco mais de dez anos.
No dia 17 de maio de 2021, celebrou-se uma efeméride que marcou de forma indelével o passado recente da nossa história, tanto no plano económico, como no plano social: referimo-nos à entrada em vigor, 10 anos antes, do Programa de Assistência Económica e Financeira, no qual intervieram, no sentido de apoiar Portugal a ultrapassar a crise financeira em que se encontrava, o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu.
O referido Programa surgiu no contexto da mais profunda crise económico-financeira global iniciada a partir de 2007/2008, crise esta de dimensão e alcance que vieram a revelar-se mais profundos que os sentidos na maior crise económica que a humanidade até então conhecera, esta vivida aquando da Grande Depressão, que ocorrera a partir de 1929, com o foco primeiro nos EUA e que se prolongou pelos anos que se lhe seguiram, estendendo-se durante boa parte da década de 30 do Século XX em diversas regiões do mundo.
Olhando para a situação vivida em Portugal no momento em que a chamada troika prestou assistência económica e financeira ao país, recordamos que no plano económico se enfrentava uma crise de desemprego com grande expressão, provocada, entre outros fatores, pela circunstância de o tecido económico ter sido enfraquecido por um elevado número de empresas que encerraram a sua atividade, acrescendo que, as que ainda subsistiam, foram confrontadas com uma redução drástica do consumo interno e, muitas vezes, com uma redução da procura externa, com reflexo na diminuição das exportações do país. Por seu lado, havia um grande desequilíbrio no crédito com aumentos relevantes do crédito malparado, a refletir-se no aumento dos passivos da banca e no aumento da desconfiança dos investidores. Tal aumento de desconfiança não poupou cidadãos.
Aquando da negociação dos documentos enquadradores do programa de assistência económica e financeira foram desenhadas para o setor da justiça múltiplas medidas de teor legislativo, regulamentar e administrativo
Em termos gerais, podemos afirmar que os agentes económicos não confiavam grandemente nos meios de justiça existentes para fazerem valer os seus direitos, caso tivessem de resolver algum litígio ou cobrar através dos tribunais alguma dívida não paga atempadamente.
Tal quebra de confiança radicava no facto de haver, em áreas específicas do setor da justiça, um apreciável congestionamento e concomitante morosidade dos tribunais, com particular destaque para a realidade que se vivia ao nível da ação executiva,
com cerca de 1.300.000 de ações pendentes nos tribunais judiciais de 1.ª instância, em 2011.
Encontrava-se assim reunida a complexa factualidade que justificava, a par de uma crise económica, uma crise no setor da justiça, binómio crítico que punha seriamente em risco a rápida recuperação de Portugal, pois sem confiança na justiça não seria expectável convencer operadores económicos nacionais ou internacionais da atratividade da nossa economia, fator essencial para superarmos a crise a que aludimos, quer do ponto de vista conjuntural, quer, também, no plano estrutural.
Foi com este pano de fundo que, aquando da negociação dos documentos enquadradores do programa de assistência económica e financeira foram desenhadas para o setor da justiça múltiplas medidas de teor legislativo, regulamentar e administrativo que procuraram, precisamente, dar resposta aos principais problemas que então se verificavam, tendo sempre por desideratos maiores reduzir o congestionamento e a morosidade dos tribunais, bem como diminuir ao máximo a prática de atos inúteis, porque dilatórios ou desnecessários.
Foram exemplos bem ilustrativos do esforço então levado a cabo (i) a aprovação de um novo Código de Processo Civil, (ii) a reforma do mapa judiciário e (iii) a reorientação do regime das insolvências para a reestruturação de devedores, medidas adotadas no campo legislativo e regulamentar, que foram acompanhadas por medidas de execução, de índole administrativa, que levaram a um acompanhamento constante de necessidades e de soluções para serem ultrapassados os naturais escolhos resultantes da colocação no terreno de tantas e tão profundas reformas.
As medidas previstas no programa de assistência económica e financeira para a área da justiça – superando mais de 50 novas medidas – levadas à prática em pouco mais de dois anos, procuraram, numa palavra, melhorar e introduzir racionalidade na gestão de recursos e potenciar o aumento da eficiência dos tribunais.
De realçar que, em sequência do trabalho desenvolvido, a partir de 2012 teve início uma tendência de redução da pendência nos tribunais, que se mantém em termos genéricos, como demonstra a análise dos dados estatísticos divulgados periodicamente pela Direção-Geral da Política de Justiça.
A adoção destas medidas, a par de outras que se lhes seguiram, e que passaram grandemente pela digitalização do sistema de justiça, permitiu, a par do aumento da eficiência do sistema de justiça, a sua aproximação a cidadãos e empresas.
Neste contexto, chegámos a uma realidade em que, pela análise dos dados disponíveis, se constata a redução operada na ação executiva, com um decréscimo de processos na ordem de mais de 500 mil processos desde 2012, uma redução do número de processos de insolvência também muito significativa com um aumento do número de empresas e cidadãos mantidos no giro económico graças aos sucessivos mecanismos de recuperação que vêm sendo implementados e aproveitados por quem deles carece, bem como o aumento da capacidade de resposta dos tribunais, sendo tendência muito marcada a sua maior capacidade de resposta face à procura (para cada processo entrado termina genericamente mais de um processo na maioria das diferentes áreas processuais).
Assim, em jeito de balanço, pode objetivamente reconhecer-se que muito foi feito e o cenário que hoje se vive é bem distinto daquele que era conhecido há pouco mais de 10 anos.
Mas isto não significa que tenhamos chegado ao fim da história e que possa dizer-se que estamos já na linha de chegada. Esta será sempre, ao invés, uma linha de partida para procurar novas soluções, de maior eficiência de recursos, de eficácia das medidas adotadas, perspetivando o uso das novas tecnologias como ferramenta essencial para todos – cidadãos, agentes económicos, profissionais do foro – não como uma finalidade em si, mas para que a Justiça seja mais acessível, mais rigorosa, com elevado padrão de qualidade, mais tempestiva e com uma linguagem (ainda mais) compreensível.
Na verdade, o tempo atual convoca-nos a responder a novos desafios, sendo necessário continuar-se o esforço que todos quantos lidam no dia a dia com o sistema de justiça vêm empreendendo ao longo dos tempos, pois a sociedade em que vivemos apresenta-nos novos desafios a que urge responder.
O trabalho no setor da justiça carece de constante aperfeiçoamento no desenho de novas e de melhores políticas públicas, mais centradas no essencial: responder às necessidades de quem recorre à justiça em tempo razoável e com qualidade. Só assim se cumpre a Constituição, concedendo a todos a possibilidade do exercício dos seus direitos e proteção dos seus legítimos interesses.