O Boletim OA entrevistou a Representante Permanente de Portugal junto da Organização das Nações Unidas em Nova Iorque, Embaixadora Ana Paula Zacarias, que nos falou dos desafios e na Missão desta nossa Representação Nacional.
Na cerimónia de entrega das suas credenciais na sede das Nações Unidas, o Secretário-Geral das NU, António Guterres disse que “Portugal é um pilar muito importante da ONU” e que está convencido de que as excelentes relações entre Portugal e as Nações Unidas vão conseguir desenvolver-se ainda mais com a sua chegada. Corrobora esta opinião?
Portugal, a título nacional e no quadro da União Europeia, é um inequívoco defensor do multilateralismo e das Nações Unidas. Os grandes desafios que hoje enfrentamos têm uma dimensão global – a emergência climática, a preparação, prevenção e resposta a pandemias, o acesso, governação e segurança das tecnologias de comunicação e informação e os ataques à paz e segurança internacionais e ao sistema multilateral baseado em regras. A dimensão destes problemas exige uma resposta global articulada e que respeite os valores fundamentais e os Direitos Humanos.
A participação de Portugal nas NU é multimodal e, claro, de alto nível, desde logo dada a nacionalidade do Secretário-Geral em funções. Contribuímos para todos os grandes programas das Nações Unidas nas áreas do desenvolvimento sustentável, dos Direitos Humanos, da ajuda humanitária e da paz e segurança. Mas não nos ficamos por aqui: fomos anfitriões da Conferência dos Oceanos das Nações Unidas em Lisboa em junho de 2022, participamos com efetivos militares e policiais em Missões de Paz das NU em África e na América latina, e albergamos instituições do sistema NU como o Pólo de Governação Eletrónica da Universidade das Nações Unidas, em Guimarães. Há um claro interesse e compromisso nacional na continuação do reforço do nosso envolvimento nas NU a todos os níveis que se reflete, igualmente, na nossa candidatura ao Conselho de Segurança das NU para o biénio 2027-28.
Uma das prioridades de Portugal na ONU tem sido a questão dos Oceanos. Concorda? Quais os objetivos nacionais para este tema?
Para um país como Portugal, cujo passado, presente e futuro está inelutavelmente ligado ao mar, os oceanos serão sempre uma prioridade. Por isso trabalhámos para que um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável fosse a preservação da vida marinha e realizámos a Conferência dos Oceanos das NU em Lisboa. Continuamos ativamente empenhados neste processo, apoiando a concretização da 3ª Conferência em 2025, co-organizada pela Costa Rica e pela França e somos reconhecidos internacionalmente pela nossa consistente defesa da preservação dos oceanos, elemento fundamental para a regulação do clima.
A governação internacional dos oceanos, em todas as suas dimensões, desde a economia azul até à questão da definição dos limites da plataforma continental, é uma das prioridades da política externa portuguesa.
A Conferência dos Oceanos das Nações Unidas realizada em Lisboa foi um “impulso importante” para regular as zonas oceânicas sem jurisdição e proteção. Acha que será possível alcançar a meta de 30% de áreas marinhas protegidas até 2030?
Trata-se de um ambicioso objetivo nacional, anunciado no âmbito da estratégia das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável. A Conferência de Lisboa foi sem dúvida um impulso importante nesse sentido. Mas, há claramente muito trabalho a fazer. As negociações neste sentido continuam agora na COP 15 da Convenção sobre a Diversidade Biológica, em Montréal. A este processo juntam-se os trabalhos da Conferência Intergovernamental sobre a Preservação da Biodiversidade Marinha das zonas para além das áreas de jurisdição nacional, bem como os trabalhos destinados a combater a poluição oceânica pelos plásticos.
A crise energética provocada pela guerra na Ucrânia colocou a energia nuclear novamente no centro dos debates internacionais. Pensa que Portugal poderá vir a equacionar esta solução no futuro?
Efetivamente, a crise energética provocada pela guerra na Ucrânia reabriu alguns aspetos do debate sobre a energia nuclear, sobretudo nos países que tradicionalmente a utilizam. Portugal não tem tradição industrial no setor e temos uma posição geográfica privilegiada em matéria de energias renováveis. Neste sentido, Portugal vem fazendo, desde há mais de uma década, uma importante aposta na transição energética, buscando diversificar as fontes de abastecimento e obter um mix energético cada vez mais sustentável. Somos o país do sul da Europa com a maior percentagem de eletricidade produzida a partir de fontes renováveis e creio que esse é o caminho do futuro.
António Guterres referiu recentemente na Cimeira do Clima, que “Estamos numa autoestrada rumo ao inferno, com o pé no acelerador” e propôs um Pacto de Solidariedade Climática, com vista a acelerar a transição energética e taxar os lucros inesperados das empresas de combustíveis fósseis. Qual a posição de Portugal em relação a este pacto? E, no seu entender este pacto é viável tendo em conta a posição, ou a falta dela, dos países mais poluidores do mundo?
Portugal, considera e aprecia as iniciativas do Secretário-Geral que reflitam maior ambição em matéria de mitigação das alterações climáticas. Trata-se, claro, de questões de elevada complexidade técnica e em que as diversas posições nacionais refletem, como não podia deixar de ser, as estruturas económicas de cada país. Mas há consenso global sobre o diagnóstico e sobre as soluções. Creio que hoje todos estamos bem conscientes das terríveis consequências das alterações climáticas associadas a fenómenos extremos de secas, fogos florestais de inusitada dimensão ou cheias devastadoras. Todos sabemos que é preciso agir rapidamente para prevenir, mitigar e adaptarmo-nos às consequências. A maior dificuldade neste momento está na partilha dos custos, mas também essa vai avançando. O futuro dirá se avançamos com a velocidade suficiente.
De acordo com o último relatório de várias organizações das NU – FAO, FIDA, UNICEF, PMA e OMS -, estima-se que quase 924 milhões de pessoas, ou 11,7% da população global, enfrentaram insegurança alimentar em níveis graves nos últimos dois anos. Em que medida está o mundo preparado para lutar contra este problema?
A guerra na Ucrânia veio agravar uma situação já de si preocupante por outros motivos, (1) resultantes dos efeitos negativos da pandemia na cadeia de valor global, ao limitar a circulação de bens; (2) das alterações climáticas a provocar secas e inundações, que por sua vez afetam as capacidades de produção agrícola; (3) do aumento dos preços de energia e, em consequência, dos custos de transporte. Dito isto, é certo que, como grandes produtores de cereais e fertilizantes, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia veio desestabilizar gravemente os mercados. Neste sentido, a iniciativa do Secretário-Geral das Nações Unidas e o acordo alcançado relativo à exportação de cereais e fertilizantes foram de grande relevância. Mas não há dúvida que a questão da insegurança alimentar a nível global persiste e é muito preocupante, afetando sobretudo as populações mais vulneráveis.
A NATO, é “o pilar” da defesa coletiva europeia, justifica-se a criação de um exército europeu?
A política externa e de defesa comum é, nos termos dos Tratados, um dos pilares da UE. O seu alcance dependerá da vontade política dos Estados Membros. A guerra na Ucrânia parece ter propiciado a unidade em torno do aprofundamento da defesa europeia, mas ainda há reservas significativas de vários parceiros à institucionalização de forças armadas de bandeira europeia. De qualquer forma, há ainda um longo trabalho a fazer em termos da harmonização eficaz e da cooperação entre as forças dos Estados Membros e da cooperação da área das indústrias de defesa.
As missões de paz das Nações Unidas em vários contextos, nomeadamente em África, e as migrações foram outras das prioridades que referiu quando apresentou as suas credenciais. Em que sentido?
Portugal é considerado como um parceiro fiável para a paz e estabilidade global. Participamos na Comissão de Consolidação da Paz das NU, investindo na prevenção dos conflitos e na construção da paz e participamos hoje, em quatro operações de paz das Nações Unidas, no Mali, República Centro Africana, Sudão do Sul e também na Colômbia. Isso dá-nos credibilidade e a possibilidade de ter uma voz ativa neste domínio.
No que respeita às migrações, Portugal é um país com uma longa experiência histórica como emissor e recetor de comunidades migrantes. No quadro da União Europeia, temos defendido posições progressistas e inclusivas em matéria da gestão sustentável das migrações, posições que temos defendido também no quadro do Pacto Global das Migrações das Nações Unidas. Somos um dos “países campeões” do Pacto porque acreditamos no valor acrescentado de um quadro internacional que, pela primeira vez, reflete as visões dos países de origem, de trânsito e de destino de migrantes, e que encara as migrações de forma holística, isto é, na sua vertente prática, mas também no seu contributo para o desenvolvimento sustentável e na sua dimensão de Direitos Humanos. Esta nossa política reflete também as nossas conexões históricas e constitui um elemento importante na nossa interlocução com os países de África, da Ásia e da América Latina.
Não podemos deixar de falar na pandemia. Para além dos milhões de mortos que todos lamentamos quais são, no seu entender, as maiores sequelas e efeitos da pandemia a nível global?
Os efeitos económicos da pandemia foram devastadores, sobretudo nos países com grandes economias informais, onde milhões de pessoas perderam o seu ganha-pão quotidiano. Ao tomar medidas para socorrer os seus cidadãos, as famílias e as empresas, muitos países perderam também espaço de manobra orçamental e aumentaram os seus níveis de endividamento. Por outro lado, a pandemia contribuiu para o surto inflacionista que acompanhou a reabertura dos mercados mundiais e, finalmente, veio diminuir a dimensão da globalização, trazendo consigo processos de maior autonomia económica circunscrita geograficamente. Mas a resposta à pandemia propiciou, também, sucessos sem precedentes em matéria de progresso científico e de cooperação internacional na investigação médica e farmacológica, bem como na coordenação de políticas de mitigação e combate à propagação do vírus. No quadro da ONU, propiciou também o início de um debate sobre a negociação de uma Convenção internacional sobre pandemias, que institucionalize, enquadre e desenvolva para o futuro o que a comunidade internacional aprendeu nos últimos três anos.
O planeta chegou aos 8 mil milhões de habitantes. Que planeta será este no futuro?
As perspetivas de crescimento demográfico constituem mais um dos grandes desafios, que só juntos, conseguiremos enfrentar. Felizmente, o planeta é suficientemente rico para nos albergar a todos. Mas precisamos de respeitar o planeta que nos acolhe e encontrar soluções de equilíbrio, enfrentando os desafios das alterações climáticas, da perda de biodiversidade e da poluição. E, precisamos, em simultâneo, de nos respeitarmos a nós próprios, de construir laços de solidariedade que diminuam as desigualdades e permitam um desenvolvimento humano justo e sustentável. As soluções estão identificadas e as tecnologias já existem, precisamos de vontade política, visão de longo prazo e um compromisso efetivo para com as gerações presentes e futuras.
PERFIL
Ana Paula Zacarias nasceu em Lisboa em 1959. Licenciou-se em Antropologia Cultural pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), sendo posteriormente assistente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL. É diplomata do Ministério dos Negócios Estrangeiros desde 1983, com uma longa carreira em Portugal e no exterior. Entre outros cargos, foi Vice-presidente do Instituto Camões, Consultora para as Relações Internacionais na Presidência da República, Representante do MNE no Pavilhão de Portugal e das Comunidades Portuguesas durante a Expo 98, Secretária de Embaixada nos Serviços do Protocolo do Estado e na Direção de Serviços da Europa. Foi Representante Adjunto na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia, Embaixadora de Portugal na Estónia, Representante Permanente Adjunto na Delegação de Portugal junto da UNESCO em Paris, Representante de Portugal junto da União Latina, Cônsul de Portugal em Curitiba e Secretária de Embaixada na Embaixada de Portugal em Washington. Desempenhou funções no Serviço Europeu de Ação Externa como Embaixadora da União Europeia para o Brasil, entre 2011 e 2015, e para a Colômbia e Equador, entre 2015 e 2017. Foi Secretária de Estado dos Assuntos Europeus do XXI Governo Constitucional de julho de 2017 a março de 2022.