Criptomoedas – Um maravilhoso mundo novo?
Fazer uma análise crítica geral das criptomoedas é uma tarefa árdua visto que as moedas têm características e modelos de governação distintos
As criptomoedas são como os chapéus: há muitas.[1] A mais conhecida é sem dúvida a Bitcoin, que foi a primeira a ser desenvolvida utilizando a tecnologia de blockchain que serviu de base às demais criptomoedas, e que se assume como um verdadeira moeda digital (apesar de não ter conseguido até agora funcionar como instrumento geral de trocas[2]. Mas existem outras que vão desde a Ethereum (plataforma de smart contracts – contratos autoexecutados), à Tether (stablecoin – criptomoedas que têm associado um ativo subjacente que lhe confere estabilidade), à Dogecoin (uma cripto-piada com grande valorização e que ajuda a perceber porque há quem pense que as criptomoedas são meramente especulativas e se assemelham a esquemas piramidais[3]. Além destas criptomoedas privadas, também os Estados começam a desenvolver as suas próprias moedas digitais, as chamadas Govcoins, ou CBDC[4]: a China tem já o E-yuan, os EUA estão a desenvolver o e-dollar, e o BCE pretende lançar o Euro digital até 2025.
Fazer uma análise crítica geral das criptomoedas é, portanto, uma tarefa árdua visto que as moedas têm características e modelos de governação distintos. Todas elas levantam problemas ou desafios, algumas delas têm virtudes. Neste artigo enuncio alguns dos principais problemas e virtudes das criptomoedas na esperança de despertar o interesse do leitor para esta realidade.
Virtudes e o reverso da medalha
As principais virtudes prendem-se com a rapidez das operações e os baixos custos transacionais. A ineficiência do sistema bancário em operar o sistema de pagamentos, e as elevadas comissões que são cobradas aos consumidores para a realização de pagamentos e manutenções de conta são absurdas num mundo altamente globalizado. Mas no mundo das criptomoedas, os baixos custos de transação têm beneficiado de uma total ausência de regulação, não tendo os operadores de suportar custos de compliance. Não só é expectável que os custos das transações aumentem à medida que as plataformas tenham de implementar mecanismos de controlo (uma regulação necessária e inevitável), como nos últimos tempos se tem assistido a um aumento muito significativo das comissões associadas às operações com criptomoedas (p.e. a média de comissões de transações com Bitcoin atingiu os $59[5].
Já a segurança das transações, uma das grandes promessas e potencialidades da tecnologia blockchain, continua a ser um desafio considerando as várias notícias de fraude associadas à criptomoedas e furto – quer por hackers quer por países como a Coreia do Norte que furtaram criptomoedas para financiar o seu projeto nuclear[6].
A segurança das transações, uma das grandes promessas e potencialidades da tecnologia blockchain, continua a ser um desafio considerando as várias notícias de fraude associadas à criptomoedas e furto
Outra das principais virtudes é a privacidade das operações, garantida através de um sistema de pseudónimos e por não se ter de se justificar qualquer transação. É verdade que na era da informação a privacidade é um bem raro que deve ser garantido e preservado. No entanto, e apesar de todas as operações ficarem registadas na blockchain, o potencial de anonimato das operações torna extremamente difícil o controlo preventivo das operações o que tem favorecido a utilização das criptomoedas pela economia do crime. Além disso, vivemos na dualidade de, por um lado, termos o sistema de pagamentos tradicional com elevados padrões de controlo e reporte, e por outro, o sistema de criptomoedas em que tais padrões não existem.
Finalmente, os entusiastas consideram que a existência de um modelo de moeda descentralizado, não controlado por autoridades financeiras, e não sujeito às suas políticas monetárias permite que estes ativos sirvam de refúgio dos investidores não os sujeitando às flutuações que as moedas fiduciárias têm, nomeadamente a inflação. Esta é uma virtude particularmente relevante nos dias de hoje em que UE e EUA, nomeadamente para combater a crise pandémica e o seu impacto económico, têm sucessivamente adotado políticas expansionistas que favorecem a inflação. Se enquanto ativos financeiros, algumas criptomoedas poderão ter esta potencialidade de se tornarem ativos de refúgio (o novo ouro), a utopia da sua efetiva utilização generalizada enquanto moeda (i.e. enquanto instrumento geral de trocas) pode ter no longo prazo consequências graves para as economias mais pequenas e/ou mais pobres, sem dimensão geopolítica para influenciar a política monetária internacional. Pense-se por exemplo, num país que perante uma crise económica decide restringir a saída de capitais, ou desvalorizar a moeda. Perante uma moeda nacional fraca ou desvalorizada, que pode ser substituída por uma criptomoeda forte, os cidadãos podem facilmente trocar a sua moeda nacional por criptomoedas, mantendo assim o seu poder de compra intacto. No entanto, se a criptomoedas, neste tipo de casos, beneficiam os seus utilizadores, a verdade é que retiram aos Estados a possibilidade de utilizarem a política monetária para intervir na economia, tornando-os totalmente refém de instituições ou países terceiros.
Inovação para progredir – a questão ambiental e ética dos negócios
Uma das críticas que tem sido apontada às criptomoedas prende-se com os elevados custos ambientais com a sua mineração. Moedas como Bitcoin, exigem uma elevada capacidade computacional para que seja completada a prova de trabalho que é o que permite a mineração de Bitcoin[7].
Como contra-argumento a estas críticas, a comunidade cripto tem referido que os custos ambientais são superiores se considerarmos o conjunto do sistema financeiro tradicional. Este argumento é falacioso. A indústria financeira existe desde o séc. XIV e a evolução do sistema financeiro fez-se, como nos outros setores, sem ter em conta os custos ambientais. No entanto, a questão ambiental é hoje incontornável sendo necessário transformar a forma como estas indústrias operam. O que não se pode aceitar é que indústrias novas, ainda por cima digitais (que não têm o impacto ambiental inerente à produção de bens físicos), assentem o seu modelo de funcionamento em padrões ambientais antiquados e insustentáveis.
Não podemos depender de inovações que nos fazem regredir, sob pena de estarmos a criar estruturas e instituições que não estão em linha com os valores do
séc. XXI
Oiço várias vezes o argumento que não se pode bloquear a inovação sob pena de a matar. Contudo, não podemos depender de inovações que nos fazem regredir, sob pena de estarmos a criar estruturas e instituições que não estão em linha com os valores do séc. XXI. No final da crise de 2007-08, clamou-se por negócios e empresas mais éticas. Por vezes a febre das criptomoedas faz-nos cair numa lógica de lucro fácil e rápido; de lucro pelo lucro. É fundamental que estes mercados tenham um comportamento ético em que o foco não é apenas o lucro, mas a maximização dos ganhos económicos desta nova tecnologia. Não interessam inovações extraordinariamente lucrativas se esses lucros são alcançados à custa de externalidades negativas que afetam o ambiente, o trabalho, a segurança, e em última análise a própria vida em sociedade.
Governação das criptomoedas
Como dissemos, cada criptomoeda tem as suas próprias características, e a sua governação – as regras que respeitam ao modelo de funcionamento da moeda e ao protocolo que lhe está subjacente. De acordo com os entusiastas, o modelo descentralizado das criptomoedas permitiria um funcionamento mais democrático da moeda visto que a execução do protocolo estaria dependente dos participantes, não estando estes reféns das políticas monetárias dos Estados. A verdade, porém, é que em vez da política monetária das criptomoedas (i.e. o protocolo de funcionamento da moeda e as suas alterações) estar refém de uma autoridade pública central passa a estar nas mãos dos fundadores, agentes designados, ou dos principais detentores de uma determinada criptomoeda, tornando estas moedas dependentes de uma governação plutocrática ou oligárquica[8]. A democraticidade desta alteração é altamente questionável.
As Govcoins
As Govcoins são critpomoedas emitidas, organizadas e geridas pelos bancos centrais. Resolvem muitos dos problemas das criptomoedas privadas: sendo emitidas pelo Estado, as Govcoins deverão ter curso legal tornando-se em verdadeiras moedas digitais que não dependem de um consenso social alargado para servirem como meio de pagamento. A governação da moeda mantém-se na esfera pública. Alcança-se a rapidez, baixos custos transacionais e segurança. Mas as Govcoins colocam outros perigos/desafios específicos que devemos ter em conta[9].
A forma como estas moedas têm sido desenhadas implicam que os utilizadores as adquiram através de depósitos junto do banco central. Por um lado, alarga os instrumentos macroeconómicos dos bancos centrais. Por outro, as Govcoins podem colocar sérios problemas de privacidade – o Estado passa a ter acesso direto aos dados de utilização da moeda digital – e de abuso de poder – pense-se na possibilidade de multas digitais automaticamente dedutíveis na conta do cidadão. Finalmente, a massificação deste modelo poderá implicar que o Estado se torne a força dominante na Finança ao mesmo tempo que ameaça a falência do sistema bancário que depende dos depósitos para realizar a sua mais importante função de conceder crédito.
Regulação e ética
A indústria das criptomoedas alcançou uma dimensão que torna urgente a sua regulação, desde logo para o próprio desenvolvimento saudável deste mercado, distinguindo empresas boas e empresas más[10]. Ao nível internacional estamos a dar os primeiros passos, nomeadamente instituindo a travel rule que (simplificando) obriga à identificação dos intervenientes das operações.
Para nós, advogados, esta é uma área que oferece oportunidades para desenvolvermos a nossa atividade ao mesmo tempo que podemos fazer a diferença numa indústria em clara transformação. O nosso papel enquanto advogados deve ser o de pautar pela eticidade dos nossos clientes, antecipar tendências regulatórias, e ajudar esta indústria a navegar o desconhecido com o interesse público em mente. Mais que criptomaníacos urge ser criptoéticos.
[1] De acordo com a Yahoo Finance, existem aproximadamente 5392 criptomoedas e cada uma delas tem um modelo de funcionamento e de governação diferentes. Além disso, existem mais de 1000 moedas que apareceram e desapareceram, tendo os seus promotores obtido investimento através das ICOs (Initial Coin Offers) sendo que pouco depois todo o investimento foi perdido com o desaparecimento da moeda ou a sua total irrelevância
[2] Excetuando El Salvador que conferiu curso legal à Bitcoin.
[3] https://www.nytimes.com/2021/05/20/opinion/cryptocurrency-bitcoin.html
[4] Central Bank Digital Currencies
[5] https://www.coindesk.com/bitcoin-transaction-fees-more-expensive-than-ever
[6] https://www.france24.com/en/live-news/20210210-north-korea-stole-300m-in-crypto-to-fund-nukes-un-experts
[7] Basicamente os computadores da rede têm de resolver problemas matemáticos complexos para que a Bitcoin seja minerada/produzida
[8] https://ericposner.com/the-cryptocurrency-and-more-broadly-blockchain-governance-conundrum/
[9] https://www.economist.com/leaders/2021/05/08/the-digital-currencies-that-matter
[10] https://amp-theguardian-com.cdn.ampproject.org/c/s/amp.theguardian.com/technology/2021/jun/03/cryptocurrency-dealers-face-closure-for-failing-uk-money-laundering-test