O dinamismo do (arriscado) mercado de criptomoedas
Apesar de todos os riscos invocados, as criptomoedas vieram para ficar e vão abrir a porta a uma profunda transformação no mundo financeiro
As criptomoedas chegaram, de mão de dada com o cepticismo, e foram-se instalando. Agora são incontornáveis, embora continuem a levantar dúvidas. Conseguiremos resistir-lhes?
As moedas virtuais são a representação digital de ativos baseados em tecnologia blockchain e podem ser usadas para diversos fins: como forma de pagamento numa comunidade que as aceite, com vista à atribuição do direito de utilizar determinados bens e serviços, ou ainda visando um retorno financeiro. A tecnologia blockchain (de cadeias de blocos) permite a realização e o registo de transações eletrónicas muito parecido com os registos contabilísticos. Distinguem-na o facto de os registos sequenciais (blocos) serem partilhados e mantidos por uma base de dados comum (ao invés de uma entidade que centraliza esses registos) e a utilização de criptografia – encriptação de dados através de algoritmos – com o propósito de armazenar dados, validar transações e registar operações.
Se pensarmos no atual cenário caracterizado por baixas taxas de juro e na galopante valorização já protagonizada por algumas criptomoedas, como a bitcoin (uma das mais conhecidas, tal como a ethereum ou a cardano, entre outras também promissoras), sobretudo a partir de 2020, percebemos o quão sedutoras estas moedas digitais podem ser para o investidor. E é por isso que empresas como a Paypal ou a Visa já aderiram em força às criptomoedas. Recentemente, a Deutsche Boerse Group, que gere o índice de Frankfurt, adquiriu uma participação maioritária de dois terços da Crypto Finance AG, empresa que presta serviços de compra e venda de criptomoedas. A Fórmula 1 também confirmou, há poucos dias, que terá o patrocínio de plataforma de gestão e transação de criptomedas. Apostas robustas que mostram a crença de que os ativos digitais estão a transformar o setor financeiro.
Recordando que as criptomoedas não são emitidas por um banco central, instituição de crédito ou instituição de moeda eletrónica, elas não estão, contudo, proibidas.
Este apetite voraz por criptomoedas não visita apenas as empresas, atravessa também os consumidores. Em Mastercard New Payments Index: Consumer Appetite for Digital Payments Takes Off, realizado em 18 países e publicado em maio, afirma-se que 40% dos consumidores inquiridos equacionam utilizar criptomoedas já no decorrer do próximo ano. Perante estes acontecimentos, naturalmente que os governos e os bancos centrais estão muito atentos a esta tendência pelas novas tecnologias de pagamento. E a acompanhar este movimento, temos a decentralized finance, sem intervenção de qualquer intermediário financeiro, em que empresas e particulares efetuam operações diretamente entre si, recorrendo a smart contrats que utilizam as stablecoins. Os smart contracts são um bloco de código, dentro do blockchain, que tem a capacidade de se autogerir, verificando o cumprimento das suas cláusulas de forma automática. Não tendo supervisão humana, adivinham-se-lhes infalibilidades ao mesmo tempo que se aplaude a otimização da gestão que pode acarretar. As stablecoins, ou moedas estáveis, pretendem diminuir a volatilidade das criptomoedas, equiparando-as a um ativo estável, como o dólar ou o ouro. Através destas novas figuras, é possível, por exemplo, vender dívida a qualquer cidadão ou empresa do mundo, contornando os canais tradicionais, situação que nos deve levantar algumas reservas.
Mas a volatilidade das moedas digitais é indiscutível, dado que o valor da criptomoeda está sujeito a variações de preço grandes e repentinas. Aliás, acontecimentos como o recuo da Tesla em aceitar criptomoedas, como forma de pagamento pelos veículos elétricos que a empresa produz, ou a decisão do governo chinês de proibir bancos e empresas de disponibilizarem serviços relacionados com criptomoedas, levaram imediatamente à desvalorização da bitcoin, instalando-se um rol de ceticismo e de incerteza relativamente ao futuro das moedas digitais.
Quanto ao episódio Tesla, e ao volte face protagonizado por Elon Musk – o seu conhecido líder – o mesmo aconteceu enquadrado na justificação do impacto ambiental. O CEO da Tesla parece ter-se mostrado sensível ao elevado consumo energético que comporta a mineração de que depende a moeda digital. Também as transações na rede blockchain despendem muita energia, dado que atravessam vários computadores espalhados pelo mundo, que também zelam pela transparência e segurança do sistema.
Uma referência deve ser feita ainda à desproteção de que os investidores nacionais podem ser alvo. Na medida em que a maioria das entidades que comercializam ativos virtuais não se encontram sediadas em Portugal
Ora, recordando que as criptomoedas não são emitidas por um banco central, instituição de crédito ou instituição de moeda eletrónica, elas não estão, contudo, proibidas. Mas não sendo a utilização das moedas virtuais garantida por qualquer autoridade nacional ou europeia, ela comporta riscos, conforme nos alerta o próprio Banco de Portugal e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários[1].
Começamos pela não obrigatoriedade da sua aceitação pelo valor nominal, o que é claramente uma fragilidade. Ora, os investidores podem não conseguir vender as criptomoedas que adquiriram e não há proteção legal que possa garantir os direitos de reembolso ao consumidor que utilize ativos virtuais para fazer pagamentos. Também há um risco de fraude inerente, e que reside na complexidade das próprias criptomoedas aliada ao facto de ser assimétrica a informação de que dispõe o emitente quando comparada com aquela que detém o investidor. Efetivamente, a informação disponibilizada aos investidores pode ser incompleta e pouco clara, exigindo-lhes um conhecimento técnico demasiado específico para conseguirem percecionar as particularidades das criptomoedas.
Ademais, os investidores podem perder grande parte – senão a totalidade – do capital investido. É que caso exista uma desvalorização total ou parcial das criptomoedas, inexiste um fundo que cubra as perdas, o que leva a que os investidores tenham de suportar a plenitude do risco. As transações também não estão imunes a ser utilizadas com vista a atividades criminosas, na medida em que o anonimato associado às criptomoedas acaba por facilitar que a origem dos fundos investidos seja sonegada. Aqui reside o papel do Banco de Portugal, que decorre da publicação da Lei n.º 58/2020, de 31 de agosto: a supervisão das entidades que exercem serviços de troca, transferência ou guarda de ativos virtuais, no que diz respeito ao cumprimento das regras preventivas de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. A competência do nosso banco central não se alarga, portanto, a questões de outro cariz, mormente o prudencial ou comportamental.
Uma referência deve ser feita ainda à desproteção de que os investidores nacionais podem ser alvo. Na medida em que a maioria das entidades que comercializam ativos virtuais não se encontram sediadas em Portugal (exceção feita à Criptoloja, com sede no Estoril e à Mind the Coin, com sede em Braga), a resolução de conflitos pode extravasar a competência das autoridades nacionais.
Mais caricato, mas realista, é o risco de perda da palavra-passe de acesso às criptomoedas, que pode mesmo tornar inexequível a movimentação definitiva do investimento efetuado. Já foram reportadas situações em que investidores perderam milhões de euros, por se terem esquecido do código que permite abrir a carteira virtual e aceder às moedas digitais.
Apesar de todos os riscos invocados, as criptomoedas vieram para ficar e vão abrir a porta a uma profunda transformação no mundo financeiro. As suas particularidades convencem cada vez mais e há quem esteja a enriquecer com elas (assim como há quem esteja a perder dinheiro, naturalmente). E o fenómeno fear of missing out explica a enorme adesão às moedas digitais, o que nos leva à famosa lei da oferta e da procura, que tão bem a esclarece.
Contudo, os aspetos políticos, económicos e ecológicos que a generalização das criptomoedas compromete, não devem sair do nosso horizonte. Questões como a possível criação de uma bolha especulativa em torno das moedas digitais, os elevados níveis de energia necessários para produzi-las – quando as preocupações ecológicas são cada vez mais transversais – e o facto de este mercado poder ser apelativo para pessoas menos honestas, devem fazer-nos refletir. Há ainda um longo caminho a percorrer. As questões elencadas poderão até ter solução, e a mesma pode vir a ter concretização normativa, enquadrando este regime e conciliando-o com o nosso atual sistema financeiro.
Por enquanto, as criptomoedas merecem toda a nossa curiosidade. Ainda assim, conviver com um sistema em que os bancos centrais se preocupam em estabilizar a inflação e o valor das moedas, condenam o terrorismo e o branqueamento de capitais e apostam num custo ecológico baixo, parece ser preferível. Viver na montanha russa das moedas digitais que ora disparam, ora afundam – às vezes apenas com base num comentário feito numa rede social – pode ser emocionante, mas não gera a necessária confiança, tão cara ao sistema financeiro.