DEFENDER A ARBITRAGEM ADMINISTRATIVA HOJE
A arbitragem vem normativamente estabelecida em Portugal desde os primórdios da revolução liberal, tendo tido consagração logo na Constituição de 1822, de que estamos a celebrar os seus 200 anos. A atual Constituição de 1976 consagra também os tribunais arbitrais como uma das espécies de tribunais admitidos na nossa Ordem Jurídica, tendo o Tribunal Constitucional tido já por várias vezes a oportunidade de lhes garantir a igualdade de estatuto a par dos restantes tribunais estaduais.
Em concreto, a arbitragem administrativa, vem admitida em variadas leis avulsas desde os primórdios do século XX, pelo menos em matéria de contratos públicos e, posteriormente, em matéria de responsabilidade extracontratual. Mesmo no Estado Novo, em que o autoritarismo estatal era regra, na ausência de uma lei geral, os Administrativistas sempre admitiram a arbitragem para as matérias do chamado contencioso por atribuição, reservando apenas o contencioso de legalidade dos atos da administração para os Tribunais estaduais. Não é o sítio certo para demoradas discussões sobre a matéria, mas hoje é admitido que mesmo a verificação do contencioso dos contratos ou da responsabilidade, já exigia uma análise da legalidade dos atos da administração, nem que fosse por exceção.
Várias leis gerais do procedimento e do contencioso administrativo vieram, entretanto, desde a reforma do contencioso administrativo dos anos 80 do século XX, paulatinamente, a admitir a arbitragem de forma cada vez mais lata. Basta atentar logo na versão inicial de 1984 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na versão inicial de 1991 do Código do Procedimento Administrativo, na versão inicial de 2002 e na versão atual do Código do Processo dos Tribunais Administrativos ou no Código dos Contratos Públicos de 2008, evoluindo muito das leis sobre empreitadas de obras públicas dos anos 60 do século XX que a consagravam.
Aliás, a partir de 2011, quando a lei abriu a arbitragem ao contencioso da legalidade dos atos de natureza fiscal, atos impositivos de autoridade por excelência, mal ficaria que ainda permanecesse excluída a apreciação da legalidade de atos da administração, desprovidos, muitos, da mesma força autoritária daqueles.
Hoje, está em geral admitida a arbitragem para apreciar o contencioso dos contratos e da responsabilidade extracontratual da administração, mas também já a legalidade de determinados atos da administração e da relação de emprego público.
A evolução não tem sido sempre constante, verificando-se alguns retrocessos, aqui e ali, espelhando algumas dúvidas surgidas com o alargamento do âmbito da arbitragem. As matérias das arbitragens ad-hoc ou institucionalizadas, do estatuto dos árbitros, da publicidade das decisões ou dos recursos, têm vindo a sofrer retoques do legislador, nem sempre consentâneos com a natureza do instituto, mais parecendo que o legislador hesita, reage a críticas, sem querer, no entanto, retroceder totalmente na abertura feita, mas impondo alguns limites que podem desvirtuar o instituto ou retirar-lhe algumas das suas maiores vantagens reconhecidas, como a celeridade.
Ciclicamente ouvem-se vozes contra a arbitragem administrativa sem se perceber muito bem a sua razão, designadamente se são críticas a um determinado processo, por o Estado não ter sabido ganhar, ou se são posições contra a arbitragem em geral. Na verdade, mais parecem, em geral, meras posições ideológicas, a favor de um Estado omnipresente e dominador, abafador de uma sociedade civil forte e independente. Talvez sejam até as mesmas vozes que de vez em quando ameaçam pôr em causa as liberdades de autodeterminação das classes profissionais e a sua autorregulação, negando-as no seu estatuto como administração autónoma, reconhecido desde os primórdios da era liberal, com a Associação dos Advogados de Lisboa.
Não é por acaso que a nossa Ordem dos Advogados, em boa hora, entendeu recentemente de propor ao Governo algumas importantes medidas de reforma
Na realidade, hoje, quando ouvimos estas críticas cegas à arbitragem administrativa e as posições extremadas a favor do exclusivo dos Tribunais estaduais, questionamo-nos se o crítico tem alguma noção do atual estado infeliz da Justiça Administrativa, apesar da abnegação diária dos magistrados e dos oficiais de justiça que tudo fazem por ainda a manterem viva, e se têm também noção das normas hoje existentes que regulam a arbitragem. É que as críticas que ouvimos parecem desconhecer uma e outras, tão deslocadas estão da realidade fáctica e normativa.
Não é por acaso que a nossa Ordem dos Advogados, em boa hora, entendeu recentemente de propor ao Governo algumas importantes medidas de reforma da Jurisdição Administrativa e de reação contra processos parados por tempo excessivo, sendo uma das medidas propostas o recurso à arbitragem administrativa.
As críticas de falta de publicidade e de opacidade das decisões e sobretudo as que afirmam que não devia ser permitida a arbitragem administrativa porque o Estado perde sempre, remontam a períodos retrógrados já afastados pelo Portugal Democrático afirmado na nossa Constituição de 1976. Pior, correspondem, na verdade, não a críticas à arbitragem, mas a afirmações de suspeição de falta de independência dos Tribunais estaduais que não acompanhamos! Pretender que nos Tribunais estaduais o Estado seria mais bem tratado, corresponde a afirmar que os Magistrados Judiciais não são independentes do Poder Político, num retrocesso civilizacional de várias décadas da Justiça Administrativa, ao tempo das auditorias administrativas ou até do administrador-juiz. Os nossos Tribunais Administrativos ganharam plenamente a sua Independência desde 1975, não dependendo mais do Poder Político. Pretender o contrário, apenas para atacar a arbitragem administrativa, é perigoso e até aviltante para os nossos Magistrados Administrativos e para tudo o que souberam construir desde então, com o apoio determinado do Conselho dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Mas pior, as críticas recorrentes à falta de publicidade desconhecem a legislação vigente, que, pelo princípio da administração aberta, garante a transparência e o acesso a qualquer documento da administração ao público em geral, sendo que a Comissão de Acesso aos Documentos da Administração vem desde há décadas defendendo uma cada vez maior restrição de limitações. A que acresce a imposição hoje, da publicidade das decisões arbitrais, ínsita no CPTA, sem o qual estas não adquirem eficácia executiva, o que, bem, tem sido alvo de reparos, por algum exagero. A isto, acresce também, a predominância que a lei hoje dá à arbitragem institucionalizada, em centros de arbitragem. Nestes, o processo segue regras de total transparência, mesmo para além da decisão final.
Face a isto, falar ainda de processos secretos e sigilosos, é mostrar um total desconhecimento do que é hoje a arbitragem administrativa!
Por último, pôr em causa a dignidade e independência dos árbitros demonstra também um total desconhecimento da realidade normativa. Os árbitros têm um estatuto idêntico ao de um magistrado, estando até sujeitos a maiores deveres de independência que estes, face às normas legais que têm vindo a ser impostas nestas matérias, o que tem recebido alguns reparos pelo seu exagero.
Assim, não é pelos árbitros que o Estado perde ou ganha uma causa. Como identicamente, não é por causa dos magistrados que isso sucede! O Estado perde tanto na arbitragem como nos Tribunais estaduais, pois os juízes são independentes e julgam de acordo com a lei, tal como os árbitros. Nunca se deve pôr em causa a dignidade dos excelentes profissionais que têm dado o seu melhor para a resolução de litígios arbitrais, sejam Professores de Direito ou Dignos Colegas Advogados.

Uma última palavra para uma das principais vantagens da arbitragem administrativa, a sua função facilitadora do investimento estrangeiro, tão necessária para Portugal. É compreensível que um investidor estrangeiro, desconhecedor do contencioso português, pretenda salvaguardar-se com o recurso a arbitragem, com exclusão do acesso aos tribunais estaduais. Sem isso muito investimento seria desviado para outros países que reconhecem a arbitragem de forma até mais ampla. Por isso, muitas vezes é escolhido um centro de arbitragem estrangeiro, Paris, Londres ou Genebra, entre outros, onde as regras são diferentes das fixadas na nossa lei, embora sem pôr em causa o que se poderá entender como limites invioláveis de Ordem Pública. Em investimentos derivados de contratos com o Estado, Portugal aceita mesmo sujeitar-se a arbitragens reguladas internacionalmente, chamadas de arbitragens de investimento e sujeitas a um Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID), derivado de uma Convenção Internacional, celebrada em Washington, em 1966, promovida pelo Banco Mundial para promover e facilitar o investimento estrangeiro no Mundo. Portugal aderiu a esta Convenção em 1983, passando a estar a ela vinculado desde 1984, aceitando desde essa data a submissão de casos contra si por investidores internacionais.
É compreensível que um investidor estrangeiro, desconhecedor do contencioso português, pretenda salvaguardar-se com o recurso a arbitragem, com exclusão do acesso aos tribunais estaduais
Recentemente, no dia 21 de março de 2022, o processo ICSID foi alvo de uma reforma muito relevante, tendo sido aprovadas novas regras processuais relativas ao início dos processos, novas regras de conciliação e de arbitragem, um novo conjunto de regras do mecanismo complementar, um novo regulamento do mecanismo de verificação de factos e um novo mecanismo de mediação, a par de uma nova versão do seu regulamento administrativo e financeiro. Estas reformas entraram em vigor a 1 de julho de 2022, podendo ser invocadas em substituição das anteriores regras de 2006. Não é o local certo para grandes desenvolvimentos, mas importa dizer que as reformas de 2022 visam dotar a arbitragem ICSID de maior transparência, maior modernidade, simplificação e agilidade. Faremos apenas menção ao reforço da publicidade das decisões, passando a regra geral a ser a publicação de todas as decisões, apenas com supressões de texto quando necessário para proteger informações confidenciais, sendo que as partes se podem opor à publicação no prazo de 60 dias da notificação, caso em que serão publicados extratos sob proposta do Secretário-Geral.
Do exposto, é importante ter em conta que as regras das arbitragens internacionais, incluindo as regras ICSID, não são totalmente coincidentes com as limitações nacionais, devendo o legislador ter em conta a necessidade sentida pelos investidores internacionais e as melhores práticas internacionais em matéria de arbitragem, por estarmos inseridos num mundo global. Deve ainda ter em conta o imperativo de não serem criadas desvantagens competitivas para investidores nacionais: não pode existir uma desigualdade penalizadora para um português na sua relação com o Estado.
Esperemos que o legislador nacional tenha bem noção que regular a arbitragem administrativa não é algo doméstico e sem consequências para a economia, devendo ter bem presente que, pelo contrário, é um importantíssimo aspeto que o investidor internacional tem em conta na sua decisão de investimento.