Convidamos o gestor e docente universitário André Rocha, fundador do The Escapist a escrever sobre o seu projeto que promove caminhadas e expedições em locais pouco habituais ou remotos, sem fins lucrativos.
UMA VEZ EM CIMA DOS SEUS DOIS PÉS, O HOMEM PERDE A OPÇÃO DE FICAR NO MESMO SITIO
Esta frase foi adaptada do primeiro capítulo de um livro que, com muito detalhe e todo o cuidado, nos mostra as ligações diretas entre a filosofia (ou a forma como os homens foram pensando ao longo dos tempos) e o ato de andar. Em a Philosophy of Walking1, Frederic Grós vai-nos contando, com detalhe, muitas das coisas que se fazem evidentes depois de as lermos e que colocam o ato de andar como personagem central e o motor de muitos processos intelectuais (quando, muitas vezes, somos tentados a pensar exatamente o seu contrário). Ao contrário de outras formas de demonstração e expressão física, sobretudo as que elevamos a desporto ou competição, o ato de andar é quase indistinto e democrático, um atributo de todos e em que todos se igualam. Ao descontarmos a futilidade da velocidade a que andamos e a distância que conseguimos percorrer seguida, conseguimos nivelar a espécie num ato coletivo que não discrimina em função da nacionalidade, estatuto, riqueza, inteligência ou credo e, muito menos, de género.
Ao marcar a nossa velocidade natural enquanto espécie, o ato de andar sempre me pareceu o melhor aliado para outro dos nossos atributos primordiais: a curiosidade. Juntos, e quando sincronizados, conseguiram com o tempo tornar-se o vício perfeito.
A partir de 2015, quando iniciei as caminhadas de longo curso, fui progressivamente sentindo os benefícios de regresso a um estado primordialmente físico, onde a componente intelectual é secundarizada e muitas vezes reduzida a um mero estado de alerta, o que lhe permite uma retemperação do frenético dia a dia, para além de uma ligação emocional e identitária com o território. Para todos aqueles da minha geração, que porventura sentiram na pele a pressão do frenético apelo da realização profissional (seja isso o que for), da interminável filigrana dos deveres familiares ou da maratona social, o encontro de uma zona de desafio e intimidade pode ser o pilar de sustentação de uma arquitetura pessoal.
A ANATOMIA DE UMA LINHA
O The Escapist (nascido e criado nas redes sociais) representou a institucionalização deste ponto de fuga, que simultaneamente sustentou tudo aquilo de onde se procurava sair.
Fugindo das práticas convencionais do turismo de aventura ou das excursões de montanha, procuramos (todos aqueles que já nos aventuramos numa das expedições que organizamos, e hoje somos já mais de 200) uma forma de exílio temporário, onde por um período mínimo de três dias onde o objetivo último é ligar, unicamente a pé, o ponto A ao ponto B.
A este exercício linear, fomos juntando elementos que permitiram ir contruindo uma sensação de aventura, que cresce até à altura em que é dado o primeiro passo: a autonomia de uma mochila que carrega o que precisamos para subsistir em três dias (com exceção das dormidas e jantares), a imprevisibilidade do terreno e das condições e sobretudo a ignorância e desconfiança com que todos começam sobre a possibilidade de conseguirem terminar.
Para um organismo habituado ao meios artificiais de movimento e ao veludo dos confortos atuais, a exposição ao meio natural, intermediado unicamente por um par de botas, pode mostrar-se um exercício temeroso: as inclinações do terreno não são contornadas, ninguém se esconde da chuva e as vertigens aparecem quando têm que aparecer. Progressivamente, cada um de nós vai-se adaptando a um novo contexto e a um novo grau de exigência, e ao terceiro dia, a dúvida do primeiro passo tornou-se já na vitória do último. Este ritual de conversão repete-se sempre: foi assim nas magníficas e pristinas Flores, na intrépida Costa da Morte, em toda a Costa Vicentina, na travessia da grande muralha do Gerês, por cada uma das nossas Aldeias Históricas e em muitos outros sítios que conhecemos passo a passo, à nossa velocidade natural.

A ROTA 76 E OUTROS CONTOS
Visto na primeira pessoa, este vício agigantou-se e evolui como qualquer vício que se preze.
A curiosidade com que acabava cada uma das nossas caminhadas de 100 ou mais quilómetros provou que só aqueles já não a satisfaziam. Erling Kagge, porventura um dos mais épicos pensadores sobre os efeitos da exploração e da curiosidade (e também advogado) diz certeiramente que todos nascemos curiosos, mas que algum de nós perdem essa característica com a tirania irreversível da idade. Por alguma deformação, a minha tendia sempre a aumentar e foi por isso que decidi começar a pôr pés a ainda mais caminho.
Em junho de 2021 aprimorei o vício dando-lhe o sustento que há muito tempo era pedido: entreguei-lhe 19 dias e 961 quilómetros seguidos, por todas as estradas e caminhos ao longo da linha costeira de Portugal continental, que ficou depois chamada de Grande Rota 76. E depois de ter conhecido todas as praias, marginais e falésias da nossa costa continental, consegui levar a certezas muitas das coisas que aqui vos escrevo.
É de facto a excitação da aventura, como resposta a algo que não sabemos como acaba antes de o fazer, que nos faz dar o primeiro passo
É de facto a curiosidade o maior motor para contrariar a constante vontade de parar, que a nossa racionalidade insiste em nos pôr à frente.
É de facto a subjugação da nossa atividade intelectual à nossa prevalência física que gera a sensação de retemperação e de pousio, mascarada de euforia no final de cada um dos caminhos.
Foi assim na nossa costa, como foi assim na volta à ilha da Madeira, que acumula em si um desnível equivalente a uma subida ao Evereste e na subida do Douro até à fronteira, acompanhando o curso do rio entre quintas e estações abandonadas da antiga linha do comboio.
Creio que ainda será assim umas quantas mais vezes porque o vício ainda não se conseguiu sublimar e é agora um amigo de casa, que não pede licença para entrar.
Como todos os bons amigos, espero que volte sempre.