Alojamento local em condomínios habitacionais: e depois do Assento?
Foi amplamente noticiado o Acórdão do STJ[1] que, perante a questão de saber se o exercício da atividade de alojamento local (“AL”) em fração autónoma destinada a habitação constitui ou não uso diverso do fim a que essa fração é destinada, de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal (“PH”), concluiu positivamente, uniformizando jurisprudência nos seguintes termos: “No regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fracção se destina a habitação, deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitida a realização de alojamento local”.
De uma leitura do Acórdão parece resultar terem sido ponderados todos os argumentos relevantes em benefício de uma e de outra posição, tendo sido tomada, como ponto de partida comum, que o AL não convoca “um uso tipologicamente diverso da habitação”, mas corresponde a um uso funcionalmente diverso da fração autónoma, “porque enformado por dinâmicas diferentes daquelas que compõem as rotinas próprias da habitação comum ou permanente”.
E, efetivamente, assim é: quem recorre ao AL, tal como quem recorre a apartamentos turísticos em sentido próprio, não faz da unidade de alojamento uma utilização de tipo diferente da que faz da sua própria residência, mas não a usa com a dinâmica e perenidade próprias de um uso materialmente residencial.
É nesta base que o STJ conclui que o AL é um destino distinto do habitacional, adotando esta posição como absoluta e idónea para regular todos os casos em que o título constitutivo destina frações autónomas a habitação, e defendendo que será sempre com este sentido e alcance que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, interpreta um título constitutivo com esse teor: “o sentido normal do destino “habitação” para qualquer potencial adquirente das referidas frações não poderá deixar de ser o de que a sua função económico-social é a de servir de fogos ou de residência para pessoas e agregados familiares, proporcionando-lhes o sossego, a tranquilidade, a segurança e o conforto requeridos por qualquer economia doméstica, num envolvente espaço comum instrumental desse tipo de convivência coletiva.”
Penso que, neste ponto, a conclusão é excessiva, pela sua generalização estanque e absoluta, dado que será sempre necessária uma interpretação do título constitutivo à luz das circunstâncias em que a PH foi criada para resolver cada caso concreto.
Vejamos dois casos que o demonstra.
O primeiro prende-se com os edifícios residenciais, constituídos em PH, localizados em zonas de veraneio e manifestamente dirigidos para o mercado de habitações secundárias, como, por exemplo, Quarteira e Armação de Pera. Um declaratário normal, perante o título constitutivo de um destes edifícios em PH, não está absolutamente legitimado a concluir que o destino dessas frações autónomas é alojar quem esteja de férias e pretenda usufruir do sol e da praia, seja o proprietário, seja terceiros?
O segundo prende-se com a data em que a PH tenha sido constituída, considerando que o AL apenas veio a ter assento legal em 2008. Se a partir de 2008 já pode considerar-se que a constituição do edifício em PH envolve escolhas relativamente à admissibilidade do uso de AL nas frações, explícita ou implicitamente, é mais difícil identificar os termos em que essas escolhas terão sido feitas no âmbito dos títulos constitutivos anteriores a 2008.
Estes conflitos no contexto de condomínios residenciais são também um reflexo da omissão de tratamento deste tema no âmbito das políticas locais de urbanismo e de turismo, onde se parte aprioristicamente da ideia de que o AL é um uso que se compreende no uso residencial.
Esta máxima, no domínio administrativo, vale para efeitos de legitimidade (excetuando os hostels, basta ao requerente demonstrar que a fração se destina a habitação), urbanísticos (a autorização de utilização da fração deve ser para fins habitacionais) e de planeamento (o AL é tido como uso habitacional nos planos urbanísticos, e não como uso turístico ou terciário).
E os conflitos que esta situação gera ao nível dos condomínios não deixa de se refletir ao nível das próprias cidades, na medida em que as
necessidades urbanísticas geradas pelos dois usos (habitacional e AL) são totalmente distintas ao nível de equipamentos públicos, mobilidade ou serviços urbanos.
Este Acórdão é uma evidência de que faz falta uma abordagem compreensiva e global da figura do AL.
Perante este Acórdão, e ainda que o mesmo não seja formalmente vinculativo perante futuros litígios, o que esperar?
Num primeiro nível, este Acórdão tem que ser ponderado pelo legislador, nomeadamente no que respeita ao regime de resolução de litígios, dado que uma tutela cautelar e principal com base na jurisprudência uniformizada será muito mais eficaz do que os demais mecanismos atualmente previstos.
Quanto ao Governo e aos Municípios, este Acórdão pode conduzir a uma diminuição da disponibilidade de camas em regime de AL, o que terá impactos na dinâmica turística e económica do país.
Em terceiro lugar, ao nível da atividade administrativa, este Acórdão deve conduzir a uma reflexão sobre as condições de legitimidade procedimental para a apresentação de pedidos de registo de estabelecimentos de AL, de forma a eliminar dúvidas quando estejam em causa frações autónomas em condomínios residenciais. E pergunta-se se, até lá, a aceitação de registos nestes casos pode ou não gerar algum tipo de responsabilidade civil dos municípios.
No que respeita agora aos promotores imobiliários, haverá que ter cuidados acrescidos na redação dos títulos constitutivos de PH, determinando expressamente ou a admissibilidade de desenvolvimento da atividade de AL nas frações autónomas para fins habitacionais, ou mesmo a possibilidade de qualquer condómino, sem necessidade de autorização do condomínio, alterar o uso da sua fração entre habitação e AL.
Nesta situação, o que parece também ser certo é que, perante a existência deste Acórdão, a previsão simples do uso habitacional em sede de títulos constitutivos de PH aprovados após o mesmo deve ser entendida, efetivamente, como não permitindo a instalação de estabelecimentos de AL.
Esta questão tem a sua sensibilidade, dado que é cada vez mais comum que os promotores não possam prevalecer-se da ambiguidade dos títulos constitutivos, havendo uma procura de certeza por parte dos compradores no sentido de garantir ou que o condomínio não terá estabelecimentos de AL, ou que poderão rentabilizar a sua fração através do recurso ao AL.
O último nível é o dos condóminos.
Por um lado, os condóminos descontentes com a existência de estabelecimentos de AL podem ancorar-se nesta jurisprudência uniformizada para fazer cessar a exploração dos mesmos de uma forma que, aparentemente, será rápida e expedita.
Por outro lado, os condóminos titulares desses estabelecimentos, que, em certos casos, e para além de discutir a interpretação do título constitutivo em concreto, procurarão defender a eventual aquisição, por usucapião, do direito de instalá-los e explorá-los, em função do lapso de tempo decorrido desse a sua instalação originária.
Contudo, o que este Acórdão marca definitivamente é um desequilíbrio da balança em benefício dos condóminos residentes, que se encontram agora numa posição muito mais favorável para negociar com os titulares de estabelecimentos de AL as condições em que aceitam que os mesmos sejam explorados, podendo considerar-se nesses acordos específicos autorizações anuais, constituição de cauções, acréscimo de contribuições para o condomínio, e muitas outras condições que, atualmente, o titular do estabelecimento de AL não tem automaticamente que suportar
[1] Acórdão de 22 de março de 2022, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 90, de 10 de maio de 2022.