Autor do livro “Como salvar um mundo doente” Eduardo Paz Ferreira escreve sobre as diversas doenças que afectam o nosso mundo.
É com grande honra que colaboro com o Boletim da Ordem dos Advogados com algumas reflexões sobre a pandemia COVID 19 e o papel que o Direito pode desempenhar para ajudar num combate decisivo para o futuro da humanidade.
O convite do Boletim, que muito agradeço, surge num momento em que, de novo, se acastelam nuvens pesadas em torno da evolução da doença, com epicentro na Europa, com a Holanda a ser o primeiro país a introduzir medidas de confinamento por três semanas, mas outros países como a Áustria ou a Alemanha a avançarem no mesmo sentido. Mesmo entre nós, ainda sem números dramáticos, a doença tem vindo a crescer de forma indesejável, acompanhada de previsões negativas.
Significa isto que quase dois anos desde os primeiros alarmes em torno do COVID 19, uma pandemia que infectou e matou um número muito elevado de pessoas, enquanto quase paralisava a economia mundial, continua a ser difícil saber qual será o desfecho de uma doença que traz o mundo em sobressalto, à semelhança de tantas outras pandemias anteriores, algumas das quais bastante mais mortais, com a gripe espanhola, que terá rondado os 100 milhões mortos.
Alguns observadores desta realidade mantêm uma posição otimista tal como Eward Carr (The Economist, 8 de Novembro de 2021), sustentando que “as pandemias não morrem—tornam-se fracas e perdem importância e aparentemente será o que acontecerá ao COVID 19 durante o ano de 2022, ainda que seja verdade que que continuarão a existir fluxos locais e sazonais particularmente nos países cronicamente não vacinados”.
Estes dois anos trouxeram consigo um sucesso impressionante e um falhanço deprimente, para continuar a usar palavras de Edward Carr.
O sucesso situou-se no plano científico com a rapidez da produção de vacinas, que atinge atualmente os 1,5 biliões de doses mensais e às quais começam a juntar-se medicamentos para o tratamento da doença uma vez contraída.
O falhanço espelha-se no dramático número de infectados até aqui verificados e no facto de muita da imunidade ter sido conseguida por infecção anterior, bem como na baixíssima taxa de vacinação nos países menos desenvolvidos, com a África a situar-se bem abaixo dos 5% de vacinação.
Sublinhe-se aliás que, se os números oficiais de mortes se situam nos cinco milhões, várias estimativas, de entre as quais as do próprio The Economist, se situam perto dos 20 milhões, o que dá uma expressão mais clara da intensidade do drama.
Um aspecto especialmente impressionante destes anos foi a forma como se tornou patente a incapacidade do actual sistema de organizações internacionais para fazer face a este tipo de situações que não podem ser tratados apenas a nível nacional, tanto mais quanto vivemos em tempos de globalização aparentemente irreversível: a falta de meios da Organização Mundial de Saúde, praticamente reduzida a um papel de coordenação científica, a incapacidade das organizações de Bretton Woods – Banco Mundial e FMI – para assegurarem o fornecimento de vacinas aos países menos desenvolvidos são aspectos gritantes.
Na sua ausência, uma panaceia reduzida foi constituída por organizações privadas como a COVAX e outras organizações de beneficência, bem como o apoio de alguns países, com relevo para os Estados Unidos da América e até a indústria farmacêutica. Perto do final do ano verifica-se, no entanto, que se não atingiu sequer metade do volume de vacinas prometidas, apesar dos múltiplos anúncios ciclicamente repetidos.
No passado dia 12 de Novembro, um exausto Diretor Geral da OMS foi perentório na afirmação que a pandemia “terminará quando o mundo decidir que terminará”, que “falta vontade política, confrontando os valores de vacinação em África com os 80% dos países G-20.
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse em tempos que a pandemia constituía um raio X do mundo, numa visão totalmente acertada e que seria desenvolvida de forma extraordinária pelo Papa Francisco.
Este raio-x permite-nos ver um mundo muito pior do que aquele que desejaríamos.
Na fase mais aguda da doença pudemos assistir a impressionantes manifestações de solidariedade, das quais retenho em especial, a de os italianos a cantarem áreas de ópera nas varandas das casas e os ajuntamentos para apoiar e agradecer aos funcionários de saúde e tento esquecer a miserável exploração sensacionalista da comunicação social a invadir enfermarias e lares, ajudando a criar um ambiente de pânico.
Mas rapidamente o individualismo e o nacionalismo tomaram conta do terreno e a indústria farmacêutica mostrou a sua faceta mais voraz, ignorando a sua função social, a colaboração com universidades públicas e os enormes montantes de dinheiro entregues pelos governos para entrarem num conjunto de práticas irregulares, com destaque com a Astra Zeneca ao não cumprir o contrato com a Comissão Europeia e a vender vacinas a outras áreas.
Impressiona, particularmente, a recusa das empresas em partilharem as patentes com entidades que as pudessem produzir nas áreas menos desenvolvidas. Tal prática poderia, de resto, ser imposta, no quadro da OMC e do Acordo TRIPS, proposta formulada por Estados como a África do Sul ou a Índia e apoiada pelos Estados Unidos da América, mas confrontada com a recusa da União Europeia (com a corajosa excepção da Espanha), refém dos lobbies farmacêuticos, que anunciou a sua posição no decurso de uma cimeira da Europa Social.
E, assim, vamos passando dos aspectos puramente sanitários para aquilo que é especialmente importante e que é a incapacidade do actual sistema político para lidar com factores como a pobreza, a desigualdade, as alterações climatéricas, as sucessivas guerras e o tratamento das ondas de refugiados que caracterizam este mundo doente que o Papa tão lucidamente denunciou.
Se num primeiro momento se pareceu assistir a uma tentativa real e que gerou um consenso no sentido de inverter a situação e de alterar as condições económicas e sociais que determinaram esta pandemia e nos fazem viver sob a ameaça de novas doenças, alcançado algum grau de menor risco abandonou-se a preocupação com um novo mundo para se procurar tão só voltar aos tempos pré-pandemia.
Ora, a actual situação tem de dar resposta a dois problemas: o controlo da pandemia atual sem qualquer excesso de cedência e a preparação de novas estruturas que permitam respostas mais sólidas e rápidas a desafios que se venham a colocar no futuro.
Não se pode, por outro lado, passar ao lado do negacionismo que tantas vítimas já causou e ameaça continuar a provocar, utilizando um argumento totalmente faccioso de defesa da liberdade individual que, obviamente, cessa no momento em que põe em causa a saúde e a vida da generalidade dos cidadãos.
Os juristas em conjugação com cultores de muitas ciências são, pois, chamados a um papel central, que passa pela luta pelo cumprimento dos contractos e dos deveres assumidos pelas farmacêuticas, pela recusa firme da legitimidade ou constitucionalidade das posições negacionistas, pela revisão do papel e dos meios das organizações internacionais e pelo apoio atento e cuidadoso aos governos de cada país.