O Plano para a Recuperação e Resiliência (PRR), inscreve-se na iniciativa política promovida pelo Conselho Europeu designada “Next Generation EU”, com o objetivo de redução dos adversos efeitos económicos e sociais perante os quais a sociedade se defronta.
De entre os seis pilares relevantes da estratégia europeia 2030, inscreve-se na vertente da Transição Digital, mais concretamente no campo das iniciativas associadas à Justiça Económica e Ambiente de Negócios, [melhorar] a “eficiência na justiça e melhoria das condições de contexto […] para melhorar o ambiente empresarial propício ao investimento […]” e “[…] aumentar a eficiência dos processos de insolvência e recuperação e garantir a execução mais rápida das garantias dos empréstimos não produtivos”. Ao longo do PRR é possível identificar, no desenho da ambição anunciada de reforma do sistema de Justiça, menções à redução de pendências dos processos judiciais, à agilização dos processos de insolvência, à introdução de um sistema de reestruturação e insolvência das empresas “[…] promotor da manutenção [d]e empresas economicamente viáveis, mas financeiramente estranguladas” e a um conjunto de medidas em sede da capitalização das empresas para evitar o incremento das insolvências.
O desenho destes objetivos surge num contexto em que se identifica a morosidade dos processos de insolvência (e, acrescentaríamos, a reduzidíssima taxa média de recuperação de créditos) como um nó górdio da justiça portuguesa.
O PRR enquadra (i) a revisão do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, refletindo também a transposição da Diretiva 2019/1023 e (ii) a simplificação do regime de acesso ao exercício das funções de administrador da insolvência, em ambos os casos com o duplo intuito de assegurar a conclusão satisfatória dos processos de recuperação ou transferência do estabelecimento em atividade (no caso de liquidação) (dimensão temporal) e o incremento do valor de recuperação de créditos pelos credores (dimensão financeira).
Acrescem ainda às medidas elencadas outras adicionais e específicas em torno da citação eletrónica de pessoas coletivas, a simplificação da tramitação do incidente de verificação e graduação de créditos (passando a recair sobre o administrador da insolvência o dever de apresentação de proposta de graduação de créditos, para homologação judicial na ausência de impugnações), o dever que passa a impender sobre o administrador da insolvência de elaboração de um plano de liquidação (com calendário e metas definidos) e a existência de rateios parciais obrigatórios em determinados casos. Incluem-se também naquele alargado catálogo, a merecer destaque, as propostas para reforço da posição do credor hipotecário (em confronto com o titular de direito de retenção) e a criação de secções especializadas nas instâncias judiciais superiores.
A Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, cuja elaboração e publicação precede o despontar da pandemia provocada pelo COVID-19, ganhou redobrada utilidade e relevância após a pandemia, com maior expressão no campo da justiça económica.
Tanto é assim quando os governos e banco centrais, cientes da imperatividade de se substituírem ao mercado na criação de uma rede de segurança e apoio aos cidadãos e às empresas, tomaram um conjunto de iniciativas que suspenderam ou diferiram no tempo o cumprimento de várias obrigações financeiras das famílias e das empresas. Estas soluções surgem como resposta à redução de rendimentos que a doença COVID-19 causou, ao impor medidas de confinamento generalizado e medidas restritivas da iniciativa económica.
Sucede, no entanto, que a eficácia imediata das medidas e a resposta dos governos e da Comissão Europeia foi acompanhada, com impacto a médio e longo prazo, de um aumento relevante dos níveis de endividamento públicos e privados, de uma alteração permanente dos modelos de negócio de certas empresas (de tal forma que não é expectável que os lucros e níveis de atividade históricos regressem, de forma generalizada, depois do levantamento do medidas associadas à pandemia), porventura com maior incidência em determinados setores, dos quais serão exemplo o imobiliário (não residencial), o associado ao lazer, o retalho e o automóvel.
Em paralelo, a retirada gradual das medidas de apoio dos governos, a cessação do efeito das moratórias bancárias e das demais contramedidas de reação aos efeitos nefastos da pandemia, poderá não acompanhar, pelo menos ao mesmo tempo, o recrudescimento da atividade económica. Este desfasamento temporal, propício para criar maior pressão sobre o rendimento disponível (e, em especial, da tesouraria) das empresas e das famílias, dificultará o atempado cumprimento das obrigações financeiras e tem como elemento estrutural o aumento significativo dos níveis de alavancagem financeira (seja por via da redução do rendimento, seja por via do aumento do endividamento, ou de ambos).
Tudo isto sucede num contexto em que surgem novas tendências que poderão precipitar a atividade de reestruturação, que passam pelas recentes pressões inflacionárias, pelo aumento das taxas de juro de referência, pela manifesta disrupção nas cadeias de fornecimento e de distribuição e pelos custos crescentes de transporte (numa economia que continua global e interdependente). Se cumularmos a estas tendências a apontada existência de assimetrias na velocidade da recuperação entre países, blocos regionais e setoriais, poderão infelizmente estar criadas condições para que, a partir de 2022, se verifique um crescimento significativo de insolvências e de restruturações empresariais.
É, por tudo isso, de saudar a criação de um regime de reestruturação preventiva e de perdão da dívida que permita assegurar a preservação de valor, com a consequente proteção de postos de trabalho e o aumento do montante total a receber pelos credores em contextos de recuperação empresarial por contraposição a um adiamento, em muitos casos tardio e destruidor de valor, que reaja a desadequadas estruturas de capital das empresas e à constrição financeira das famílias, vazando frequentemente em processos de liquidação que se arrastam penosamente por anos ou décadas em tribunal, o que certamente não será desejável em relação a projetos económicos que poderiam ter sido viáveis caso se tivesse atuado oportunamente.
No direito português, aliado à vertente política a que o PRR deu corpo, o processo legislativo de transposição da Diretiva 2019/1023 vai bem avançado, tendo sido aprovada pela Assembleia da República, em 19 de novembro de 2021, a Proposta de Lei n.º 115/XIV/3ª (GOV) que, entre outras iniciativas, “estabelece medidas de apoio e agilização dos processos de restruturação das empresas e dos acordos de pagamento”.
Recorrendo à conhecida figura do processo especial de revitalização (PER), não foi criado no direito nacional um novo processo de reestruturação preventiva, tendo o regime jurídico do PER sido sujeito a ajustamentos em cumprimento da transposição da Diretiva 2019/1023.
A este respeito destacaríamos a importação do “cross-class cram-down”, uma figura que não conhece tradição no nosso ordenamento jurídico, oriunda do sistema anglo-saxónico. Este mecanismo permite a imposição do fardo da reestruturação de forma transversal sobre credores agrupados “em função da existência de suficientes interesses comuns” (sendo que esta nova classificação de credores não é obrigatória para as micro, pequenas e médias empresas). Sublinhe-se, no entanto, que esta taxonomia jurídica não substitui a tradicional segmentação de credores que separa credores garantidos, privilegiados, comuns e subordinados, aguardando-se com grande expetativa para verificar como é que os diferentes stakeholders destes processos de recuperação conciliarão a aplicação destas diferentes abordagens à qualificação de créditos/credores.
Na perspetiva processual e substantiva da criação daquelas subcategorias, o juiz deverá assegurar um duplo teste para permitir a adoção do plano de reestruturação: primeiro, que as categorias de credores afetados que tenham manifestado a sua discordância “recebam um tratamento tão favorável como o de qualquer categoria do mesmo grau e mais favorável do que o de qualquer categoria da grau inferior”; segundo, que o plano não seja mais favorável do que seria num cenário de liquidação da empresa (no creditor worse off).
Além da indicada alteração de paradigma no que diz respeito à classificação dos credores (cujo cabal impacto dependerá da prática de aplicação do novo sistema),
a reforma legislativa em curso introduz outras importantes alterações na dinâmica das relações entre credores e devedores e nas relações entre credores entre si.
Não sendo esta a sede própria para nos pronunciarmos mais detalhadamente sobre essas alterações, não podemos deixar de fazer uma referência telegráfica às alterações que visam introduzir uma maior eficiência na condução dos processos (veja-se as alterações quanto ao agora mais restritivo regime de suspensão das ações de cobrança), uma proteção acrescida do devedor durante o período de negociações (veja-se a obrigatoriedade da continuação de cumprimento de “contratos executórios essenciais” pelos credores), o reforço do princípio da igualdade de tratamento de credores (veja-se a cominação com nulidade das denominadas cláusulas “ipso facto” recortadas à luz do novo PER) e a proteção acrescida dos financiadores da empresa no decurso do PER (veja-se a nova previsão legal que lhes confere um crédito sobre a massa insolvente caso a insolvência venha a ser declarada nos dois anos seguintes).
Em conclusão, e numa análise geral, a iniciativa legislativa em curso introduz alterações e clarificações que são bem-vindas e que poderão aumentar a eficiência de processos de recuperação, seja no que diz respeito ao período de duração, à taxa de recuperação dos credores e à proteção dos credores mais vulneráveis (trabalhadores e pequenos fornecedores, em particular). Só o decurso do tempo permitirá avalisar se se as soluções agora contempladas terão o alcance que se lhes preconiza, sendo que o curtíssimo processo de consulta pública não constitui o melhor presságio quanto ao acerto de algumas opções legislativas adotadas na transposição de alguns aspetos da diretiva comunitária. Como aconteceu com a entrada em vigor do CIRE e, depois disso, com a introdução do processo especial de revitalização, algumas das questões que se colocarão certamente só serão resolvidas com a prática dos intervenientes nestes processos e com o necessário labor jurisprudencial. Outros aspetos haverá que, também a exemplo do que aconteceu em 2004 e em 2012, reclamarão acertos a introduzir por via legislativa, uma vez efetuado um primeiro balanço do sucesso da reforma legislativa. Numa nota positiva final, parece-nos absolutamente acertada a opção legislativa de base de alterar o processo especial de revitalização em vez de se criar um novo processo recuperatório paralelo, o que potenciará certamente uma aceleração da curva de aprendizagem de todos os atores em processos de recuperação empresarial.