Deveres parentais impreteríveis e justificação de faltas ao trabalho
o Acórdão do STJ de 3-3-2021
1. No caso em análise, um trabalhador da Metro Transportes do Sul foi despedido por motivo de faltas injustificadas, que a entidade empregadora quantificou em 10 interpoladas no mesmo ano civil e defendeu consubstanciarem justa causa de despedimento, nos termos do art. 351.º/2-g) do CT.
O trabalhador impugnou judicialmente o despedimento. Impôs-se, pois, ao julgador, indagar da verificação da ocorrência de justa causa, isto é, se as faltas alegadas pela entidade empregadora eram injustificadas e, sendo-o, se revestiam os caracteres necessários para legitimarem o despedimento, atento o carácter de ultima ratio desta sanção disciplinar, repercutido no conceito legal de justa causa patente, nuclearmente, no n.º 1 do art. 351.º do CT, de que o n.º 2 é mera concretização exemplificativa e insuscetível de, só por si, sustentar a qualificação de algum dos comportamentos aí descritos como justa causa de despedimento.
Em 2018, o trabalhador faltou ao trabalho nos seguintes dias: 4-2; 11-2; 3-3; 20-3; 23-4; 24-4; 8-5; 10-7; 4-9; 20-10. Não obstante, nesta última data, a ausência se ter verificado em apenas um dos períodos da jornada, o empregador invocou terem ocorrido 10 faltas, o que permitiria apelar ao segundo segmento da alínea g) do n.º 2 do art. 351.º, com o efeito de o desonerar da prova de qualquer prejuízo ou risco provocado pelas ausências[2].
2. Destas faltas, 5 mereceram particular atenção do julgador.
A ocorrida a 10-7 foi considerada, inequivocamente, justificada. Provou-se, por um lado, que, nesse dia, o trabalhador, o qual beneficiava do estatuto de trabalhador-estudante, fora prestar uma prova de avaliação oral – motivo bastante para justificar a ausência (arts. 91.º e 249.º/2-c)) – e, por outro, que comunicara atempadamente a falta e o seu motivo (art. 253.º), pelo que não poderia senão considerar-se justificada. Estaria, então, fora de dúvida a inaplicabilidade do segundo segmento da alínea g) do art. 351.º/2. Não atingindo as ausências o número de 5 seguidas ou 10 interpoladas, para despedir com justa causa, o empregador não poderia deixar de provar, para além do seu carácter injustificado e da gravidade da culpa, a ocorrência de prejuízo ou risco directamente adveniente daquela conduta – tudo a convergir na inexigibilidade de conservação do contrato. Uma vez que não logrou fazer tal prova, o despedimento foi considerado ilícito, por não se verificar justa causa.
Quanto às faltas dos dias 23 e 24-4, foram consideradas injustificadas, embora providas de fundamento material. Com efeito, também estas encontraram arrimo justificativo no estatuto de trabalhador-estudante; com prova de avaliação no dia 24, o trabalhador teria direito a faltar nesse dia e no anterior (de novo, arts. 91.º e 249.º/2-c)). Nesta ocasião, porém, ele não comunicou tempestivamente as faltas e sua motivação, dever cujo incumprimento acarreta a injustificação da falta (art. 253.º/5). Com efeito, só no dia 5-5 o trabalhador transmitiu a razão pela qual faltara, tendo, de resto, apresentado documento comprovativo da realização da prova escrita em causa (dever, o de prova, que não emerge da lei e que é meramente eventual, só se impondo na hipótese de o empregador o exigir, de acordo com o art. 254.º). Assim, pese embora o incontornável carácter injustificado daquelas ausências, ele deveu-se somente a razões de índole procedimental – a omissão de comunicação atempada. Reconhecer-se-á que, em sede de juízo valorativo incidente sobre a gravidade do comportamento faltoso, o grau de censura seja, tendencialmente, mais severo quanto a uma falta desprovida de fundamento legítimo do que em relação a outra assente, materialmente, numa razão justificativa bastante e somente tida como injustificada por aquele dever de comunicação não ter sido cumprido. E tal juízo valorativo é incontornável no momento em que pretendam imputar-se consequências disciplinares a uma falta – impõe-no o princípio da proporcionalidade (art. 330.º/1, 1.ª parte) –, revestindo-se, claro, de particular sensibilidade quando a sanção em vista é o despedimento.
3. O que torna o caso em apreço particularmente curioso é a análise das faltas dos dias 4 e 11-2. Divorciado, com uma filha de 8 anos a cargo e perante a alegada indisponibilidade da mãe para assumir a guarda da menor ao fim de semana, o trabalhador viu-se, em várias ocasiões, confrontado com a obrigação de ir trabalhar, sem, porém, ter como cuidar da filha, a menos que se fizesse acompanhar por ela. Assim fez, de resto, no dia 3-2: foi conduzir a composição de metropolitano na presença da menor, que esteve com ele na cabina. Nesse mesmo dia, foi advertido de que não poderia prestar trabalho nessas condições e obrigado a abandonar o posto. Assim, logo comunicou que, também por ter a filha ao seu cuidado e não poder deixá-la com outra pessoa, iria faltar ao trabalho nos dias 4 e 11-2; cumpriu, pois, o dever resultante do art. 253.º. Do ponto de vista material, porém, podem tais faltas considerar-se justificadas?
O STJ respondeu em termos lapidares: “o cumprimento de obrigações parentais relativamente à filha (…) é um motivo legítimo para a justificação das faltas, dado que a alínea d) do n.º 2 do artigo 249.º contém uma cláusula geral seguida de uma enumeração meramente exemplificativa (“nomeadamente”) e a impossibilidade a que se refere deve ser interpretada como uma inexigibilidade à luz, designadamente, de outros deveres, como os familiares, que podem ser tanto ou mais importantes que os deveres laborais.” Já anteriormente o TRL se pronunciara em sentido muito próximo. Embora tenha considerado aquelas faltas injustificadas, só assim foi por ter entendido que o trabalhador não lograra fazer prova da inexorável necessidade de cuidar, ele mesmo, da filha, nas datas indicadas. Não fora essa insuficiência probatória, também teria considerado as ausências justificadas, ao abrigo daquele art. 249.º/2-d), por entender que, verificando-se, no caso, um conflito de direitos (art. 335.º do CC) – o do empregador, à prestação de trabalho; o da menor, a que o pai cumprisse as devidas responsabilidades parentais – não poderia prevalecer senão este último. Em todo o caso, entende que a relevância disciplinar de tais faltas é muitíssimo reduzida, é diminuto o grau de culpa e até de ilicitude.
Na linha do sustentado, há décadas, por Jorge Leite[3], entendemos[4] que nem todas as faltas injustificadas constituem infração disciplinar, sem embargo de produzirem as demais consequências legalmente associadas às faltas injustificadas (art. 256.º). Assim sucederá naqueles casos em que, embora o trabalhador pudesse e devesse ir trabalhar, ele não revela uma atitude subjetiva – a apreciar tendo em conta, principalmente, a atendibilidade social dos motivos apresentados como justificação da ausência – de desprezo pelas responsabilidades laborais e, por isso, merecedora de um juízo de censura. Retomando um dos exemplos de Jorge Leite, pense-se no trabalhador que falta para comparecer ao funeral da antiga ama, com que mantém laços afetivos fortes. Sendo esta, à luz da lei, uma falta injustificada – exceto se autorizada ou aprovada, nos termos da alínea j) do art. 249.º/2 – e podendo o empregador descontar o dia na retribuição e também na antiguidade, será razoável admitir que possa ainda sancionar o trabalhador, lançando mão do seu poder disciplinar? Como o Autor, responderíamos negativamente, por o comportamento em causa, atendível, desculpável, hoc sensu, à luz da consciência social dominante, carecer da censurabilidade necessária à verificação de uma infração disciplinar.
Talvez, porém, não seja esse o enquadramento mais adequado para faltas motivadas pelo cumprimento de deveres parentais impreteríveis, como as do caso em apreço, se supusermos que, efetivamente, nenhuma alternativa razoável estava ao dispor do trabalhador para garantir o acompanhamento da filha menor. Numa hipótese como esta – de conflito de bens, como bem assinalou o TRL –, fazer prevalecer o dever de cuidar da criança sobre o de ir trabalhar é, porventura, mais até do que desculpável, a solução postulada pelo jogo de bens e valorações jurídicas em causa. À questão de saber se, em tal situação, o trabalhador podia e devia ir trabalhar, talvez que a resposta devesse mesmo ser negativa. É que, não lhe sendo impossível fazê-lo, ser-lhe-ia inexigível. Como explica a doutrina civilista[5], existem situações que, não sendo, rigorosamente, de impossibilidade liberatória, se lhe devem equiparar; são hipóteses em que, a exigir-se do devedor o cumprimento do contrato (no caso, o de trabalho), possível, em termos absolutos, se imporia ao devedor um facere lesivo de bens jurídicos a reputar como prevalentes.
Sendo este o entendimento aplicável ao caso em questão, as faltas motivadas pela necessidade impreterível de cuidar da filha de 8 anos ter-se-iam como justificadas. Assim se pronunciou – parece-nos que bem – o STJ, bem como, nos termos indicados, o TRL, apelando à alínea d) do art. 249.º/2, que se reportaria não somente às hipóteses de impossibilidade, naturalística ou jurídica, de cumprir, mas também às de inexigibilidade.
Tal leitura desta alínea d) já havia sido proposta por Júlio Gomes[6], que assim enquadrava os casos de atendibilidade social das razões motivadoras da falta anteriormente recortados por Jorge Leite. Pela nossa parte, diríamos que existem situações de ambos os tipos: faltas que, sendo injustificadas, não devem produzir consequências disciplinares – sempre que não possa, razoavelmente, assacar-se ao trabalhador um juízo de censura, no sentido de ele ter revelado desconsideração pelo interesse no cumprimento do contrato de trabalho; casos que se caracterizam por dever considerar-se prevalente, segundo a ordenação de bens que funda o sistema jurídico, não o interesse do empregador no cumprimento do contrato, mas aquele que o trabalhador prossegue adotando um comportamento que motiva a sua falta laboral.
Em suma, pode não ser fácil apurar se determinada falta é justificada ou não. E se, não o sendo, constitui ou não uma vera infração disciplinar. Ainda e sempre a riqueza e complexidade da vida, perante um contrato duradouro cuja diuturna execução limita sobremaneira a liberdade pessoal do trabalhador, a faculdade de este dispor do (seu) tempo. Trabalhador que, a mais de ser laborioso, é também pessoa humana, não é um robô, é, quiçá, estudante, é, porventura, pai ou mãe. Tudo circunstâncias atendíveis e relevantes, que não podem ser desconsideradas pelo Direito, afinal, também ele, um produto humano. Com efeito, não por acaso a CRP declara, solenemente, que incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho dos trabalhadores estudantes (art. 59.º, n.º 2-f)), bem como que a maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes, tendo os pais e as mães direito à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos (art. 68.º, n.º 1 e 2). O tribunal decidiu bem.
Texto integral do Acórdão disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0c39d712d126680b8025868d003de4ae?OpenDocument
[1] Relator: Júlio Gomes.
[2] Mas apenas, em nosso entender, desse elemento; os demais elementos do conceito de justa causa, nomeadamente a gravidade da culpa, teria a entidade empregadora de os provar, nos termos gerais. Embora o ponto não seja líquido na doutrina nem na jurisprudência (veja-se, para uma síntese, Milena Rouxinol, “As faltas ao trabalho”, in Leal Amado/Milena Rouxinol/Joana Vicente/Teresa Moreira/Catarina Santos, Direito do Trabalho – Relação Individual, Almedina, Coimbra, 2019, p. 766-769), o STJ afirmou, a propósito do caso em apreço, tal entendimento, como já o fizera, anteriormente, o Acórdão recorrido (TRL, 13-7-2020, relator: Eduardo Sapateiro). Uma vez que, pelas razões enunciadas, infra, no texto, ambos os tribunais afastaram a aplicação daquele último segmento da alínea g), a discussão deste aspeto não foi decisiva para a decisão do caso. Também não o foi a questão de saber se, do ponto de vista quantitativo, aquela parte final do preceito poderia aplicar-se apesar de, rigorosamente, o trabalhador não ter faltado 10 dias, mas apenas 9 e meio… Valerá, neste contexto, o da punição do trabalhador, de resto com a sanção privativa do emprego, a regra matemática de arredondamento para a unidade mais próxima? Deve uma ausência parcial valer, para estes efeitos, como uma falta tout court (cfr. art. 248.º/2 e 3)?
[3] “As faltas ao trabalho no Direito do Trabalho português”, Revista de Direito e Economia, ano IV, n.º 2, 1978, p. 431 e ss.
[4] Para maiores desenvolvimentos, sobre este ponto e o que a seguir se explicita no texto, Milena Rouxinol, “A relevância disciplinar das faltas injustificadas – considerações (principalmente) em torno da jurisprudência portuguesa”, Questões Laborais, ano XXII, n.º 47, p. 193-152, e “As faltas ao trabalho”, cit., p. 754 e ss.
[5] Entre nós, por exemplo, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, Almedina, Coimbra, 1997, 7.ª edição (reimp.), p. 63. Abordando a questão com referência específica ao universo laboral e aludindo à dignidade do trabalhador como bem jurídico capaz de se traduzir na neutralização da ilicitude das suas ausências, Mauro Bussani, La colpa soggettiva, CEDAM, Pádua, 1991, p. 131 e ss.
[6] “Algumas reflexões sobre as faltas justificadas por doença do trabalhador”, in AA.VV, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Raul Ventura, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 725 e 726, e Direito do Trabalho – volume I: Relações individuais de trabalho, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 725.