1) Combustíveis fósseis: o Primeiro Elefante na Sala
Se a COP 26 em Glasgow vier realmente a ser lembrada como um marco histórico, será com certeza pelo facto de pela primeira vez os líderes mundiais se terem dirigido a um dos “elefantes da sala”: os combustíveis fósseis. Em 2015, mesmo quando os países chegaram a um acordo para limitar o aquecimento global a “bem abaixo” de 2 graus Celsius, a questão estrutural ficou oculta. A ênfase foi colocada na redução das emissões de gases de efeito estufa sem, no entanto, a causa dessas emissões – os combustíveis fósseis – ser referida uma única vez no texto do Acordo de Paris. O facto de os combustíveis fósseis serem a base da economia global moderna, leva a que possibilidade de qualquer sucesso no combate às alterações climáticas implique uma mudança no modelo económico, e não apenas no modelo energético. Mesmo com um recuo de última hora, considerando a redução do uso de carvão ao contrário da sua eliminação, a COP 26 ficará como o momento em que pela primeira vez, ao fim de 26 anos de negociações, se percebeu o óbvio: a de que não é possível reduzir emissões sem abandonar os combustíveis fósseis e o modelo económico daí resultante.
Os próximos anos vão revelar os efeitos em cascata deste processo de transição e da consequente mudança na percepção do que é reconhecido como criação de riqueza na nossa sociedade. Mas, talvez ainda mais relevante do que isso, ao incluir-se o “elefante na sala” no texto do Pacto do Clima de Glasgow, abriu-se o espaço para se tornar visível a existência de um outro elefante, oculto pelo primeiro: o estatuto jurídico do clima.
2) Estatuto Jurídico do Clima: o Segundo Elefante
Um clima estável é uma manifestação visível de um sistema terrestre num bom estado de funcionamento. O facto de um clima estável corresponder a um determinado padrão de funcionamento do sistema terreste, transforma o clima num “recurso natural intangível, que atravessa e ultrapassa os territórios nacionais dos Estados”[1], o que é altamente desafiante para um dos pilares fundamentais do Direito Internacional — o princípio da territorialidade. Existe uma longa história de conflitos entre a regulamentação jurídico-política internacional, baseada numa visão exclusivamente territorial do planeta ainda resultante do Tratado de Vestefália de 1648, e um Sistema Terrestre, global, uno, indivisível e altamente interconectado. Esses conflitos, decorrentes da circulação global dos ciclos biogeofísicos, da água e da atmosfera, são um sinal claro da atual incapacidade do direito internacional para explicar, representar e harmonizar as interdependências globais decorrentes do funcionamento global deste Sistema. “O próprio direito internacional estava (e até certo ponto permanece) mal equipado para abordar as actividades estatais que afectam negativamente um recurso natural intangível que se estende através e para além dos territórios nacionais dos Estados”[2]. E é esta realidade de factu do mundo natural, hoje explicada e decifrada pelas ciências do sistema terrestre, que continua a ser invisível de um ponto de vista jurídico. Não podemos esperar que o Tratado de Vestáfalia explicasse o que era inexplicável na época – a de que este planeta não é apenas um território, e que possui um sistema altamente complexo e interconectado. Sabemos hoje que é possível realizar uma operação de divisão jurídica abstracta do espaço geográfico dos oceanos criando diferentes zonas marítimas, ou dividir atmosfera em diferentes espaços aéreos através de abstracções jurídicas. A mesma operação de divisão jurídica, mesmo que de forma puramente abstrata, não pode ser realizada ao nível da composição biogeoquímica da atmosfera, dos oceanos, ou do clima, visto que os fluidos que os compõem circulam por todo o planeta. Perceber e representar estas duas realidades de factu do planeta, o território e o sistema de funcionamento, como duas realidades que embora sejam profundamente conectadas e que se influenciam mutuamente, mas que no entanto são distintas, implica a aceitação da existência de um bem comum intangível, que existe de facto na natureza, e que atravessa todas as fronteiras. É este bem não-territorial, que cria um “elo inextricável entre as actividades dos Estados no território nacional e seus efeitos no clima (…) uma situação sem precedentes no direito internacional”[3], é ainda um problema não resolvido pelo Direito.
Quando na década de 1980 o problema das alterações climáticas entrou na agenda da ONU, foi este “elefante na sala” que esteve na origem da primeira pergunta fundamental: “O que é o clima de um ponto de vista jurídico?” O surgimento de um bem que é impossível dividir, mesmo que de forma abstracta, deu origem a uma proposta inicial (a), e a uma posterior solução derivada (B), que é apenas uma tentativa para contornar o caracter subversivo deste bem relativamente às formulações jurídicas pré-existentes sem, no entanto, resolver o problema jurídico de base:
a) Proposta: Considerar o clima estável como um Património Comum da Humanidade (proposta de Malta em 9/1988), o que aponta para a aceitação da existência um bem comum intangível que existe de facto no mundo natural, que atravessa e se estende por todas as fronteiras, e que deveria ser reconhecido como um verdadeiro objecto jurídico tutelado pelo Direito Internacional. Este reconhecimento implicaria a existência um sistema institucionalizado de governança global capaz de pôr em prática as condições estruturais necessárias para ser possível gerir o uso de um bem comum com sucesso, nomeadamente a existência regras congruentes entre a provisão e apropriação do bem comum, isto é, uma contabilidade e um sistema de compensações entre os impactos positivos e negativos que todos realizam no Património Comum. Por outras palavras, seria um sistema de internalização dos fatores que são hoje considerados como “externalidades” económicas, quer negativas quer positivas. Ao tornar possível a internalização das externalidades positivas realizadas no património comum, a criação deste suporte jurídico global – um Património Comum da Humanidade Intangível – pode ser um game changer na estrutura da economia, permitindo-nos transitar do actual paradigma de extracção e destruição de recursos naturais para ser possível criar um valor na economia, para uma economia regenerativa em que a provisão de serviços ambientais intangíveis, realizados por actividades humanas de conservação, manutenção ou restauro de ecossistemas pode ser reconhecida como criação de valor na economia. Através da internalização no património comum intangível destes benefícios que se espalham globalmente através do sistema terrestre, seria possível tornar visíveis no PIB de cada país estes processos naturais que suportam a vida na Terra e um clima estável.
b) Solução actual: Considerar as alterações climáticas como Preocupação Comum da Humanidade, o que aponta para uma estratégia de compromissos voluntários de auto contenção com o objectivo de evitar os danos ao clima (Resolução da AGNU 12/1988, consagrada na Cimeira da Terra Rio 1992 e Acordo de Paris 2015). Esta solução está em linha com a actual forma jurídica de pensar o Planeta, em que este é considerado um mero território de 510 milhões de Km2 em que os bens comuns globais, são apenas os territórios remanescentes das jurisdições estatuais. Neste conceito, a existência factual de um bem comum intangível e global – o padrão de funcionamento do sistema terrestre que corresponde a um clima estável, não é reconhecido como existente no plano jurídico. Para contornar a omissão de um bem comum que não encaixa com os pilares do direito internacional, criou-se um sistema de compromissos com o objectivo de reduzir emissões, sem alterar o modelo económico que está na origem dessas emissões. No fundo os desafios incontornáveis que o clima impõe ao direito e à economia, foram evitados através de um conceito indefinido como é o da “Preocupação Comum da Humanidade”. Em 1991, um dos pais fundadores deste conceito, já afirmava: “É muito importante que o conceito de preocupação comum da humanidade seja mais elaborado para tornar seu conteúdo e alcance compreensíveis e claros; também é importante verificar como esse conceito pode ser interpretado em termos de direitos e obrigações dos Estados no processo de sua implementação”[4]. 30 anos depois, ninguém sabe quais são esses direitos e obrigações, uma vez que o objecto a partir do qual estes direitos e obrigações poderiam emanar – o clima estável – não existe como objecto jurídico. Os resultados estão à vista. O que é reconhecido como criação de riqueza é a redução de emissões, e não a provisão dos processos naturais que criaram e mantém clima estável. Desta forma obtém-se créditos financeiros através das emissões evitadas, vendendo-se créditos de carbono que não foram usados, mas ninguém é compensado por retirar o CO2 em excesso da atmosfera no interesse da toda Humanidade (emissões negativas). O valor está na redução de emissões, e não no reconhecimento dos direitos decorrentes da provisão do bem público global clima estável, uma vez que esta provisão se espalha por todo o sistema terrestre, e essa escala corresponde a um vazio legal. Perversamente, para existir valor, têm de existir emissões. Por isso, e antes de tudo o mais, o problema das alterações climáticas é um problema jurídico de definição do bem comum, como base imprescindível para a sua posterior gestão.
3) Um Caminho Português
Uma semana antes da COP 26 ter aberto a porta a uma nova economia sem combustíveis fósseis, no parlamento português abria-se o caminho para que os processos, que são geradores e suportes da vida e de um clima estável, pudessem ser reconhecidos como a mais importante e vital criação de riqueza nas sociedades humanas.
No passado dia 5 de Novembro de 2021, foi aprovada a Lei de Bases do Clima, onde na alínea f) do Artigo 15º se estatui “ O reconhecimento pela Organização das Nações Unidas do Clima Estável como Património Comum da Humanidade”.
Como afirmava James Baldwin, “Nem tudo o que é enfrentado pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até que seja enfrentado”. Da mesma forma que as emissões não podiam ser reduzidas sem enfrentar o problema de uma economia baseada nos combustíveis fósseis, também restaurar um clima estável e assegurar a provisão desse bem público global para as próximas gerações, não pode ser resolvido sem um suporte jurídico global intangível, capaz de capturar e representar do ponto de vista jurídico, o verdadeiro valor vital que estes serviços ambientais representam para a vida na terra e para a economia das sociedades humanas. Existirá algum postulado do Direito mais relevante do que a preservação do suporte da vida?
[1] Borg. S., (2007) – Climate Change as a Common Concern of Humankind, Twenty Years Later… From UNGA to UNSC. IUCN Academy of Environmental Law, “Towards an Integrated Climate Change and Energy Policy in the European Union”. 2007. University of Malta. Retrieved from: http://www.iucnael.org
[2] Borg, S. (2009) Key Note Speech at the unveiling ceremony of the Climate Change Initiative Monument, University of Malta, 21 April p.1. Retrieved from: https://www.um.edu.mt/newsoncampus/features/?a=62770.
[3] Borg, S. (2007) Climate Change as a Common Concern of Humankind, Twenty Years Later… From UNGA to UNSC. IUCN Academy of Environmental Law “Towards an Integrated Climate Change and Energy Policy in the European Union”. University of Malta. Retrieved from: http://www.iucnael.org.
[4] Tolba, M. (1991). The Implications of the “Common Concern of Mankind” Concept in Global Environmental Issues. Revista IIDH, 13, 237–246. Retrieved from: http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/iidh/cont/13/doc/doc 27.pdf