Risco de insolvência e créditos não produtivos: a missão impossível?
Em cenário de crise acentuada, a severidade dos efeitos do incumprimento é de tal ordem que ameaça a própria estabilidade do sistema financeiro
Na sequência da crise financeira de 2008, a expressão NPL (do inglês, non performing loans) ganhou protagonismo e, pouco a pouco, foi-se entranhando no dia a dia. O problema destes créditos não produtivos (CNP’s), designação que privilegio nestas linhas, nunca foi inteiramente resolvido, mas é verdade que se assistiu a uma redução muito acentuada do seu peso no sistema bancário nacional, com o decisivo impulso de massivas operações de venda destes créditos a entidades não financeiras ao longo dos últimos anos.
O negócio bancário consiste, essencialmente, no financiamento da economia, sendo remunerado através das taxas de juro aplicadas ao capital mutuado e em comissões cobradas aos clientes pela prestação desses serviços. Quando, por alguma razão, os clientes bancários se transformam em devedores, as instituições são forçadas a classificar (ou “marcar”, como se diz na gíria) esses créditos como não produtivos, o que tem vários efeitos imediatos, para além, claro está, da perda do capital mutuado e da remuneração subjacente: (i) o reconhecimento no balanço dos bancos das perdas associadas aos CNP’s, através do registo de imparidades, penalizando os resultados e rácios de capital; (ii) os próprios requisitos de capital são tendencialmente superiores em instituições com elevado nível de CNP’s; e (iii) o acesso aos mercados financeiros para a emissão de dívida e capital torna-se mais difícil.
O sistema financeiro tem promovido diferentes estratégias para a redução do rácio de CNP’s, existindo também um consenso de que as medidas devem ser tão precoces quanto possível, sobretudo numa situação de crise anunciada
A isto acresce a alocação intensiva de recursos a tarefas de recuperação de crédito, com prejuízo do negócio bancário, propriamente dito.
Importa ressalvar que o incumprimento por parte dos clientes é um risco normal do negócio bancário, como acontece, aliás, nos negócios em geral. Sendo exatamente por isso que, previamente à concessão de crédito, é analisado o risco de cada operação, com impacto, desde logo, na fixação de spreads e nas garantias a constituir.
O problema é que, em cenário de crise acentuada, a severidade dos efeitos do incumprimento é de tal ordem que ameaça a própria estabilidade do sistema financeiro e, por consequência, a capacidade de financiamento da economia.
É neste quadro que o sistema financeiro tem promovido diferentes estratégias para a redução do rácio de CNP’s, existindo também um consenso de que as medidas devem ser tão precoces quanto possível, sobretudo numa situação de crise anunciada, como aquela que hoje vivemos.
Quanto às estratégias que vêm sendo adotadas ao longo do tempo, é possível destacar os processos de recuperação de ativos; o abate de empréstimos ao ativo das instituições; e, muito especialmente, a venda de carteiras de CNP’s.
Já no que respeita à capacidade de antecipação do sistema, importa realçar, em primeira linha, o pacote bancário COVID-19 da Comissão Europeia, com uma Comunicação interpretativa sobre a aplicação dos quadros contabilístico e prudencial; bem como alterações específicas às regras prudenciais bancárias da UE. Foi, de resto, este enquadramento que permitiu instituir um regime de moratórias que tem sido decisivo para amortecer o impacto da crise junto de muitas empresas e famílias.
Porém, tendo no horizonte o fim generalizado das moratórias de crédito, merece especial atenção a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu, ao Conselho e ao Banco Central Europeu (Resolver o problema dos empréstimos não produtivos na sequência da pandemia de COVID-19).
Aqui se preconiza a seguinte tipologia de medidas:
- O desenvolvimento de estratégias nacionais;
- O reforço da capacidade das autoridades de supervisão;
- A criação de uma Sociedade Gestora de Ativos nacional, em conformidade com o plano pormenorizado sobre a criação de sociedades de gestão de ativos e as melhores práticas;
- O desenvolvimento e melhoria da arquitetura de gestão de dados para fins de supervisão e fomento da inovação no domínio da tecnologia de apoio;
- O reforço dos quadros que regem a cobrança de dívidas, a insolvência e a reestruturação de dívidas.
Permito-me destacar esta última, pela sua centralidade mas, também, pela estreita relação com o papel dos advogados portugueses neste contexto. Isto por forma a compatibilizar os objetivos do sistema financeiro (em parte confluentes com os da economia em geral), com a defesa dos direitos das famílias e das empresas numa situação de especial debilidade.
Prevê-se aqui, designadamente, que a transposição da Diretiva (UE) 2019/1023 relativa aos regimes de reestruturação preventiva será um importante contributo para “evitar a acumulação de CNP’s, assegurando que sejam tomadas medidas antes de as empresas deixarem de reembolsar os seus empréstimos, reduzindo o risco de os empréstimos se tornarem não produtivos. Paralelamente, as empresas não viáveis sem qualquer perspetiva de sobrevivência deverão ser liquidadas da forma mais rápida possível”.
Embora a referida Diretiva tenha sido publicada em meados de 2019, certo é que se desconhecem, até à presente data, iniciativas de fôlego por parte do governo, com vista a transpor, de modo consistente, participado e atempado o diploma em apreço. Pelo contrário, todos os sinais indicam que o governo terá mesmo solicitado à Comissão Europeia uma prorrogação do prazo de transposição, encargo que deveria estar concluído até 17 de julho de 2021.
O negócio bancário consiste, essencialmente, no financiamento da economia, sendo remunerado através das taxas de juro aplicadas ao capital mutuado e em comissões cobradas aos clientes pela prestação desses serviços. Quando, por alguma razão, os clientes bancários se transformam em devedores, as instituições são forçadas a classificar esses créditos como não produtivos
Ora, de acordo com o nº 1, do art.º 4º, da Diretiva, “os Estados-Membros asseguram que, caso exista uma probabilidade de insolvência, os devedores tenham acesso a um regime de reestruturação preventiva que lhes permita proceder a uma reestruturação, para evitar a insolvência e garantir a sua viabilidade, sem prejuízo de outras soluções destinadas a evitar a insolvência, protegendo desta forma os postos de trabalho e mantendo a atividade empresarial.”
Por outro lado, de acordo com o nº1, do art.º 5º, “os Estados Membros asseguram que os devedores que adiram a processos de reestruturação preventiva mantenham o controlo total ou pelo menos parcial dos seus ativos e do exercício corrente da sua atividade”.
Prevê-se ainda que “os Estados-Membros asseguram que os devedores possam beneficiar da suspensão das medidas de execução para apoiar as negociações do plano de reestruturação num regime de reestruturação preventiva” (cfr. nº1, do art.º 6º).
Comportando embora exceções, são estes os princípios gerais propugnados, em obediência à ideia de que “os regimes de reestruturação preventiva deverão, acima de tudo, permitir que os devedores se reestruturem efetivamente numa fase precoce e evitem a insolvência, limitando assim a liquidação desnecessária de empresas viáveis. Tais regimes deverão ajudar a evitar a perda de postos de trabalho e a perda de conhecimentos especializados e competências, e maximizar o valor total em benefício dos credores, face ao que receberiam em caso de liquidação dos ativos da empresa ou em caso de melhor cenário alternativo na ausência de um plano, bem como dos proprietários e da economia no seu conjunto.” (Considerando 2.) Tal propósito não é alheio, também, claro está, ao efeito potencialmente positivo deste tipo de medidas no que respeita à formação de créditos não produtivos. (Considerando 3.)
Certo é que, independentemente do tempo e do modo de transposição da Diretiva, o governo, os empresários e as instituições financeiras deverão mobilizar todos os instrumentos que, no nosso ordenamento jurídico, sejam já suscetíveis de amortecer os efeitos do fim das moratórias, através de processos negociais precoces, transparentes, justos e participados, dos quais beneficiarão as empresas (pela oportunidade de escapar à insolvência); os bancos (pela utilização de estratégias que são, comprovadamente, mais céleres e aptas a maximizar o montante dos créditos recuperados, quando em confronto com execuções judiciais e processos de insolvência); os governos e a economia em geral (pela necessidade de garantir que os custos da crise sejam partilhados pelos diversos agentes económicos, acudindo à emergência dos CNP’s, certamente, mas com especial atenção às micro, pequenas e médias empresas, que são o essencial do nosso tecido produtivo).
Como se disse, independentemente da transposição da Diretiva, deverão ser já mobilizados os instrumentos em vigor, como sejam o Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE) ou o Processo Especial de Revitalização (PER), eliminando obstáculos injustificados à sua utilização pelas empresas, incentivando a participação dos credores e potenciando, assim, uma verdadeira reestruturação preventiva, “à moda da Diretiva”, para que os créditos, mas também as empresas, possam voltar a ser produtivos, com benefício para todos.
Claro está que, para isso acontecer, também da União Europeia e, especialmente, da EBA, deverão existir orientações claras, viabilizando o recurso a instrumentos de reestruturação preventiva que, embora considerados úteis a impedir a formação de créditos não produtivos, continuam a determinar, no atual quadro prudencial, a marcação dos créditos como…não produtivos.
Ontem seria tarde.