30 anos de CMVM: sucessos, desafios e o importante papel dos advogados
A quarta década da história da CMVM começa a construir-se este ano, no seguimento de 30 anos de compromisso com a proteção dos investidores e tendo pela frente novos desafios que exigirão contributos e a criatividade de todos, incluindo dos advogados que desempenham um papel fundamental no bom funcionamento do mercado.
Os anos de 1990, nos quais a CMVM se estabelece, decorrem num ambiente de grande dinamismo do mercado, associado à adesão de Portugal à CEE nos anos 1980 e sob um forte impulso aos mercados de valores mobiliários decorrente das privatizações, da estabilização financeira e cambial que culminou na adesão ao euro e num contexto de crescimento económico robusto.
É na sua primeira década de vida que a CMVM se afirma como regulador independente e de elevada qualidade técnica, num percurso que culminou com a aprovação do Código dos Valores Mobiliários em 1999, numa altura de grande dinamismo e crescente globalização dos mercados de capitais. O Código, com os seus cinco princípios basilares de codificar, simplificar, flexibilizar, modernizar e internacionalizar, viria não só a moldar a atuação da CMVM nas décadas seguintes mas também a ser um instrumento essencial na proteção dos investidores e de dinamização do mercado.
À consolidação institucional seguiu-se a década do reforço do enquadramento regulatório nacional e europeu e uma melhoria da informação e do apoio prestado ao investidor. A Grande Crise Financeira iniciada em 2007, com impactos mais violentos em Portugal já na terceira década de vida da CMVM, questionou a organização do sistema financeiro, bem como a sua regulação e supervisão. A União Europeia procurou responder através de alterações estruturais no quadro institucional europeu e de uma ambiciosa agenda reformadora, imprimindo novidades significativas na natureza da regulação e supervisão financeira. De entre estas destacam-se, a nível institucional, a criação das três autoridades de supervisão (EBA, ESMA, EIOPA) para uma supervisão integrada e abrangente do sistema financeiro europeu. Ao nível regulatório, a Diretiva dos Mercados e Instrumentos Financeiros (DMIF), publicada em 2007 e revista em 2014, teve um impacto transformador no mercado não só ao nível das regras pelas quais se regem os intermediários financeiros (nomeadamente relativas à sua organização e conduta) mas também pelo seu alcance sem precedentes, renovando a cultura e a lógica de mercados organizados em prol da proteção do investidor.
Na última década da CMVM juntámos esforços para responder aos violentos impactos de duas crises, a da dívida soberana e, agora, a gerada pela pandemia por Covid-19. Neste período procurámos continuar a contribuir, nos planos nacional e internacional, para a implementação do novo enquadramento institucional e regulatório, aprofundando a cooperação europeia ao nível da supervisão, e trabalhando para construir um sistema financeiro mais estável e mais seguro, com o objetivo de conquistarmos mais empresas e famílias para o mercado de capitais.
A última década é também marcada pelo sucessivo alargamento das competências da CMVM, incluindo-se dentro do seu perímetro de supervisão novas entidades e realidades como os peritos avaliadores de imóveis, as contrapartes centrais ou o financiamento colaborativo, bem como novas dimensões como a supervisão prudencial das entidades gestoras de ativos e de titularização ou da informação não financeira dos emitentes.
Olhando para o futuro, merecem destaque três vetores que, pelo seu poder transformador e potenciador do mercado, continuarão a moldar a CMVM e o percurso que se seguirá, sempre tendo como pano de fundo o nosso profundo compromisso com a proteção dos investidores, incluindo através do contributo para o desenvolvimento de mercado. Destaco aqui a introdução de fatores de sustentabilidade nas decisões de gestão e de investimento, a aceleração da digitalização e a afirmação do investidor de retalho no funcionamento dos mercados, e uma crescente consciencialização dos impactos atuais e potenciais do funcionamento do mercado na estabilidade financeira e económica.
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O último ano evidenciou desigualdades e fragilidades globais e nacionais, expôs a fragilidade do indivíduo e de abordagens individuais, mas também a força da ciência, do conhecimento e do potencial das nossas construções sociais. Há hoje, por isso, uma crescente consciência de que se não agirmos em conjunto e em consonância com o ambiente que nos rodeia, estaremos condenados a piores resultados e, no limite, à incapacidade de resolver crises, garantir o bem-estar e a estabilidade económica, social e política a longo prazo.
Hoje no mundo excedemos em 60% o consumo de recursos que o planeta é capaz de “gerar” em cada ano, colocando em risco 25% da biodiversidade do planeta. Não é, portanto, surpreendente que a agenda climática e ambiental tenha levado a dianteira nos trabalhos de desenvolvimento dos fatores de sustentabilidade. Ao mesmo tempo, a pandemia veio agora igualmente reforçar as vertentes sociais e de governo societário. A nossa atuação em matéria de sustentabilidade, incluindo a dos reguladores, não se poderá limitar à questão ambiental, importando desenvolver um escrutínio mais intenso e expor mais frequentemente os modelos de negócio aparentemente sustentáveis que escondem situações de desrespeito pelos mais elementares fatores sociais ou de bom governo societário.
No que respeita ao caminho que está a ser percorrido nesta matéria pela CMVM e ao qual aderiu com entusiasmo, a urgência climática, indiscutível, não deve levar à desvalorização da relevância dos fatores social e de governo societário. Uma das vias mais eficazes de transformação social e económica assenta no reforço das estruturas e mecanismos de bom governo das empresas que possam trazer maior valor para a empresa e um efetivo compromisso com o bem comum. Temas tão clássicos como a relevância e responsabilização da função de fiscalização, a diversidade (em sentido amplo) nos órgãos de administração, as políticas e práticas remuneratórias e o envolvimento dos investidores na dinâmica das empresas ganham no contexto atual uma importância e relevo acrescidos, sob o impulso inexorável do foco em objetivos de longo prazo e da consideração de outros grupos de interesses na definição das políticas e objetivos de gestão das grandes empresas.
Importa ainda ter presente que, em matérias de finanças sustentáveis, há um longo e difícil caminho a percorrer de identificação sustentada de riscos, atividades e dados relevantes, bem como de suporte e de supervisão da integridade, transparência e comparabilidade de dados e resultados. A CMVM permanece totalmente focada neste desafio que será imperativo trabalhar em benefício de todos, e em particular das próximas gerações.
Uma outra tendência de transformação radical e em ritmo cada vez mais acelerado é a digitalização, com impactos tremendos nos modelos de negócios, na indústria, no acesso aos produtos e serviços de investimento e nos comportamentos dos investidores, forçando uma verdadeira metamorfose do mercado e supervisão. De facto, o acesso e o tratamento massificado de grandes blocos de informação, a utilização de novas formas de distribuição e de registo descentralizado de produtos e serviços financeiros (blockchain) ou a prestação de serviços automatizados e assentes em mecanismos de inteligência artificial são exemplos de desenvolvimentos já materializados mas que, provavelmente, constituem apenas uma tímida amostra do futuro próximo.
Noutro plano, a disponibilização de plataformas de negociação alternativas que permitem a agregação de ordens de investimento vêm proporcionando um acesso imediato dos investidores de retalho aos mercados, permitindo o investimento em pequenas quantias e com custos de intermediação muito reduzidos. Estes modelos de negócio, não obstante permitirem uma aproximação do investidor de retalho ao mercado sem precedentes, colocam alguns desafios. De entre eles destacamos eventuais conflitos de interesses que podem impactar a integridade dos mercados, conduzindo a uma maior fragmentação e menor eficiência e transparência na formação de preços, bem como a segurança com que os serviços financeiros são prestados, em particular na proteção de dados dos investidores, resultante de uma lógica crescente de ‘open finance’.
Ao mesmo tempo, a conjugação destas novas formas de fazer negócio com a progressiva alteração do perfil dos investidores – sendo estes cada vez mais sensíveis ao ambiente digital, aos serviços prestados com base em sistemas de inteligência artificial e com maior automação – abre caminho a um reposicionamento das famílias perante os serviços financeiros, traduzido numa maior ‘afirmação do investidor de retalho’ no mercado com oportunidades únicas para o desenvolvimento do mercado de capitais. É neste sentido que a CMVM tem procurado reforçar a disponibilização de informação útil aos investidores, nomeadamente sobre riscos e custos dos seus investimentos. Por seu lado, a supervisão tem de encontrar novas formas tecnológicas de recolher, ler e interpretar quantidades enormes de informação em tempo útil e ser capaz de acompanhar os movimentos do mercado, prevenindo, na medida possível, fenómenos lesivos aos investidores.
Por último, o terceiro vetor de transformação reside no crescente reconhecimento da relevância de uma adequada gestão dos riscos que pendem sobre a estabilidade financeira, incluindo os que residem nos mercados. A intervenção dos bancos centrais e a adoção de medidas de política monetária e orçamental durante a pandemia foram relativamente bem sucedidas, mas a experiência evidenciou riscos e oportunidades de melhoria, nomeadamente em áreas como a gestão de ativos, setor ao qual as famílias portuguesas estão crescentemente expostas. Tais intervenções, associadas a outros fatores como o aumento da poupança e um inesperado aumento da confiança dos investidores no mercado, potenciaram também valorizações exuberantes em alguns ativos, cuja sustentabilidade e suporte na economia real serão testadas nos próximos meses.
A inscrição transversal da proteção da estabilidade financeira no mandato da supervisão do mercado afirmar-se-á como um contributo fundamental para assegurar fontes estáveis de financiamento alternativo às empresas, regulado através de mecanismos adequados e que respeitem a sua especificidade e a especificidade do setor, assegurando a manutenção da sua função económica e a proteção adequada do investidor de retalho.
O último ano evidenciou desigualdades e fragilidades globais e nacionais, expôs a fragilidade do indivíduo e de abordagens individuais, mas também a força da ciência, do conhecimento e do potencial das nossas construções sociais
Considerando estes vetores, com os seus desafios e oportunidades, bem como o contexto competitivo de mercado interno europeu, apenas a adoção de uma estratégia nacional de mercado, assente numa perspetiva integrada sobre o sistema financeiro que coloque o investidor no centro do desenvolvimento do mercado e conte com iniciativas consistentes e complementares de decisores políticos, reguladores e de todos os participantes do mercado, permitirá identificar e explorar os nichos de qualidade, as vantagens comparativas e a promoção efetiva de diversificação de fontes de financiamento e de oferta adequada de produtos.
Nessa estratégia os advogados têm um papel fundamental, contribuindo para assegurar a adequada proteção dos investidores e dos seus direitos, estimulando com o seu conhecimento aperfeiçoamentos ao enquadramento regulatório em favor dos investidores e da competitividade e funcionalidade dos mercados, e apoiando e suportando a adesão às regras de mercado, visando um sistema financeiro mais eficiente, estável e promotor de uma economia sustentável. Os advogados tiveram, têm e terão um papel fundamental no regular funcionamento do mercado e na sua dinamização, o qual gostava de realçar neste contexto de celebração dos 30 anos da CMVM.
Os advogados tiveram, têm e terão um papel fundamental no regular funcionamento do mercado e na sua dinamização, o qual gostava de realçar neste contexto de celebração dos 30 anos da CMVM
É importante que os advogados tenham a exata noção da função crítica que desempenham na ligação das empresas ao mercado. É a eles, muitas vezes, que compete o primeiro contacto e todo o acompanhamento de novas entidades no seu caminho para o mercado, para além do aconselhamento e apoio técnico nas mais diversas áreas, desde a elaboração de um prospeto ou a montagem de uma oferta pública de aquisição até à avaliação da idoneidade de membros dos órgãos de administração face aos normativos e práticas de supervisão em vigor. Cabe-lhes, por isso, uma responsabilidade particular no incentivo das empresas para integrarem o mercado e na assistência jurídica e estratégica a essas entidades, uma vez em mercado, sendo, nessa qualidade, interlocutores privilegiados da CMVM.
Olhando para as próximas décadas, a CMVM continuará profundamente comprometida com a sua missão, trabalhando com todas as partes interessadas, incluindo advogados, para a construção de um mercado nacional sofisticado e integrado numa união do mercado de capitais que permita afirmar Portugal na Europa, e afirmar a Europa no Mundo. Nesse caminho é fundamental reconquistarmos a confiança dos cidadãos no sistema financeiro e afirmar o propósito e a função central do mercado de capitais na construção de uma economia, mais eficiente, justa e sustentável.