COVID-19: Do Vírus à Sociedade
O Boletim OA convidou o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) a colaborar nesta edição com um artigo sobre a evolução
da pandemia
A COVID-19 (Corona Virus Infectious Disease) e o vírus SARS-CoV-2 que é a sua causa necessária foram rapidamente identificados e caracterizados desde que em 30 de Dezembro de 2019 a Comissão Nacional de Saúde da China recebeu a comunicação de um surto de pneumonia de origem desconhecida na cidade de Wuhan, na província de Hubei[1].
A detecção concomitante deste surto através de sistemas de vigilância de base documental pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Sociedade Internacional de Doenças Infecciosas e a comunicação ao escritório regional da OMS para a área do Pacífico ocidental no âmbito do regulamento sanitário internacional permitiram disseminar este conhecimento a nível global 1, [2].
Desde essa data até ao isolamento do vírus SARS CoV 2 decorreram apenas sete dias e outros seis dias até que a sequência genética do novo coronavírus fosse conhecida e rapidamente tornada pública quer através da OMS, quer através da publicação de artigos científicos ou de agências e de institutos nacionais de saúde pública de vários países, permitindo a rápida utilização das características clinicas, genéticas, diagnósticas e epidemiológicas da doença e do seu agente na resposta aos primeiros casos da doença e na preparação de respostas preventivas[3], [4], [5].
Esta sequência de eventos ilustra a importância que os sistemas de vigilância epidemiológica, uma das bases da abordagem de Saúde Pública, têm para a identificação precoce de ameaças à saúde das populações como é o caso das ameaças microbiológicas.
Desde o inicio, a rapidez do diagnostico da situação e avaliação do risco contrastaram com o leque relativamente reduzido de intervenções farmacológicas e não farmacológicas disponíveis[6], [7]. Este foi provavelmente um dos factores que explicam que apesar de em 30 de Janeiro de 2020 a OMS ter declarado o surto de novo coronavírus como uma Emergência de Saúde Publica de Âmbito Internacional (Public Health Emergency of International Concern – PHEIC), o nível de alerta mais elevado na escala da OMS, já estivessem registados 98 casos da doença em 18 países fora da China, com evidência de transmissão da infecção de pessoa a pessoa em quatro países fora da China (Alemanha, Japão, Estados Unidos da América e VietNam)1, 2, [8]. Em 11 de Março a OMS declarou a situação como uma pandemia, fase em que o epicentro da pandemia já se localizava na Europa1, 2.
O aumento exponencial de novos casos da doença em Itália e em Espanha ilustraram desde cedo a dificuldade em acompanhar a rapidez da disseminação da doença com medidas de Saúde Pública efectivas2. Esta dificuldade radica em parte nas características clinicas da infecção, designadamente no facto de que uma pessoa infectada possa contagiar outras pessoas entre 1 e 14 dias após a infecção e no facto de cerca de 20% dos infectados não desenvolverem sintomas[9].
A confirmação em 2 de Março de 2020 do primeiro caso de COVID-19 infectado em Portugal, teve uma resposta rápida e intensa com o encerramento das escolas em 16 de Março, seguido do primeiro estado de emergência em 22 de Março, com restrição das deslocações e confinamento domiciliário de grande parte da população[10]. A implementação destas medidas resultou na diminuição da incidência da infecção entre Abril e Maio e na posterior estabilização do número de novos casos10. Nesta fase o impacto sobre os serviços hospitalares era ainda reduzido. Com o fim do Verão a incidência aumentou um pouco por toda a Europa e excepto fases de estabilização e ligeiro decréscimo manteve-se em aumento até agora, como impacto crescente sobre os serviços clínicos hospitalares2, 10.
A par da rapidez da disseminação global do vírus SARS-CoV-2, da constante monitorização epidemiológica e do desenvolvimento de vacinas eficazes e seguras, temos podido observar a implementação de medidas de Saúde Pública com respostas heterogéneas entre os diversos países, numa abordagem ao controlo da pandemia a nível populacional que durante um ano, até à inoculação das primeiras doses de vacina, apenas dispôs de medidas não farmacológicas1, 2, [11].
Após 25 de Dezembro de 2020, o índice Rt de transmissibilidade da infecção, que mede o número de pessoas que cada infectado infecta (R(t)) aumentou rapidamente em Portugal passando de um valor de 0,97, que reflectia uma diminuição do número de novos casos para 1,21 em seis dias (um aumento absoluto de 0,24 e relativo de 25%), seguido de valores superiores a 1,2 durante 10 dias, até 8 de Janeiro10.
Esta alteração ilustra a volatilidade da infecção e o conhecimento ainda insuficiente quanto aos factores que a podem prevenir, designadamente os que estão ligados á combinação de medidas não farmacológicas de saúde pública, e ao processo de decisão da sua implementação, para além dos factores proximais associados a maior mobilidade e proximidade das pessoas3, 11. Embora os factores envolvidos na efectividade das medidas de etiqueta e protecção respiratória, afastamento físico e social, higiene de mãos e superfícies, testagem e isolamento profiláctico sejam cada vez mais conhecidos, as decisões tomadas e o tempo da sua implementação têm sido diferentes nos vários países e regiões, o que possivelmente importa para compreender diferentes efeitos na redução da incidência e da transmissão da doença[12], [13].
Na fase actual da pandemia, o surgimento de variantes do vírus que lhe conferem vantagem na infecção de mais pessoas, constitui-se como um novo factor cuja evolução ainda é desconhecida: se resultará na circulação deste novo vírus na população, à semelhança de outros coronavírus que causam doença respiratórias ligeira, se, pelo contrário, obrigará a modificações periódicas na vacina que agora inicia a cobertura de fracções crescentes da população, pelo menos nos países mais ricos, ou se originará variantes com consequências graves como a denominada “variante britânica”[14], [15].
Considerando os aspectos epidemiológicos e éticos que contrariam estratégias de obtenção de imunidade de grupo através da infecção de grandes segmentos da população, a vacinação de uma elevada proporção da população, geralmente considerada acima de 70%, permanece como a via disponível para que as sociedades possam retomar o seu funcionamento em moldes próximos do que se verificava antes da pandemia[16], [17].
As elevadas taxas de mortalidade entre as pessoas mais velhas, em especial aquelas que residem em Estruturas Residenciais para idosos (ERPI) é um dos indicadores do importante impacto que a pandemia tem num dos grupos mais vulneráveis da população, além de outros grupos como o das pessoas que vivem com deficiência, com Paralisia Cerebral ou de outra etiologia. Os dados mais recentes indicam que em Portugal a média de idade à data do óbito é de 82,1 anos, e que apenas 13,5% dos óbitos ocorreram em indivíduos com idade inferior a 70 anos[18], [19].
Um dos outros impactos da pandemia verifica-se no aumento do número de internados em serviços hospitalares, enfermarias e unidades de cuidados intensivos, o que resultou no redireccionamento de grande parte da capacidade de prestação de cuidados para os doentes com COVID-1918, 19.
Uma das lições que desde logo se pode retirar desta pandemia é a da importância que a abordagem de Saúde Pública e os serviços de Saúde Pública têm no funcionamento de toda a sociedade. Apenas com uma rede de serviços de saúde pública funcional e treinada se pode vigiar a ocorrência de ameaças como a que se concretizou a partir de Dezembro de 2019, algo para que os serviços públicos de saúde com enfoque clínico e curativo não estão vocacionados.
A capacidade de utilização de métodos epidemiológicos para a quantificação e monitorização ao longo do tempo do número de casos da doença nos vários grupos da população e sua distribuição no espaço são igualmente uma das lições que esta pandemia tem propiciado, como ilustrado ao longo deste texto e pelas diversas fontes de dados disponíveis acerca da situação a nível nacional e internacional.
A abordagem preventiva primária, que visa impedir novos casos de doença e, a montante, todas as medidas que promovem de forma primordial a organização de serviços preventivos e a redução ou eliminação dos factores promotores e de risco para a doença, têm tido nesta pandemia uma ilustração dramática.
A capacidade de comunicar de forma adequada os diferentes públicos-alvo da população de diferentes países é outra das lições que deve ser retirada desta pandemia. Sem esta preparação cuidada da mensagem, forma e canais de comunicação, a efectividade das medidas, grande parte das quais estão relacionadas com comportamentos e escolhas não pode ter o impacto pretendido, em especial nas pessoas mais vulneráveis[20].
[1] World health Organization: Timeline: WHO’s COVID response.
[Disponível em https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30183-5/fulltext; acedido em 15/02/2021.]
[2] European Center for Disease Control and Prevention: Event Background-COVID-19.
[Disponível em https://www.ecdc.europa.eu/en/novel-coronavirus/event-background-2019.]
[3] Zhu, N. et al. A novel coronavirus from patients with pneumonia in China, 2019. N. Engl. J. Med. 382, 727–733 (2020).
[disponivel em https://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMoa2001017?url_ver=Z39.88-2003&rfr_id=ori%3Arid%3Acrossref.org&rfr_dat=cr_pub++0pubmed; acedido em 09/02/2021].
[4] Wang, C, Horby, P.W., Hayden,F.G., Gao, G.F.: A novel coronavirus outbreak of global health concern. Lancet Volume 395, Issue 10223, 15–21 February 2020, Pages 470-473.
[Disponível em https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30185-9; acedido em 10/2/2021); acedido em 10/02/2021].
[5] Huang, C et al: Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. The lancet vol 375, February, 15: pag 497-506 [disponível em https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30183-5/fulltext; acedido em 15/02/2021].
[6] Portugal, Direção-Geral da Saúde: Plano Nacional de preparação e resposta á doença por novocoronavirus (COVID-19). DGS, 2020.[disponível em https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/03/Plano-de-Conting%C3%AAncia-Novo-Coronavirus_Covid-19.pdf; acedido em 17/02/2021].
[7] Portugal, Direção-Geral da Saúde: Norma 004/2020, abordagem do doente com suspeita ou confirmação de COVID-19. DGS, 23/03/2020, atualizada em 14/10/2020.
[Disponível em https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/12/Norma-004_2020.pdf; acedida em 15/02/2021].
[8] Portugal. Direção-Geral da Saúde: Comunicado C160_15_v1 de 31 de janeiro de 2020.
[Disponível em https://covid19.min-saude.pt/wpcontent/uploads/2020/03/Atualiza%C3%A7%C3%A3o-de-31_01_2020_20_23.pdf].
[9] Mizumoto, K, Kagaya, K, Zarebski, A, Chowell, G: Estimating the asymptomatic proportion of coronavirus disease 2019 (COVID-19) cases on board the Diamond Princess cruise ship, Yokohama, Japan, 2020. Euro Surveill. 2020;25(10):pii=2000180.
[Disponível em https://doi.org/10.2807/1560-7917.ES.2020.25.10.2000180; acedido em 10/02/2021]
[10] Portugal, Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge: Evolução do número de casos de COVID-19 em Portugal. INSA, 2020-2021. [Disponível em http://www.insa.min-saude.pt/category/areas-de-atuacao/epidemiologia/covid-19-curva-epidemica-e-parametros-de-transmissibilidade/; acedido em 17/02/2021]
[11] Hale, Thomas, Sam Webster, Anna Petherick, Toby Phillips, and Beatriz Kira (2020). Oxford COVID-19 Government Response Tracker, Blavatnik School of Government. Data use policy: Creative Commons Attribution CC BY standard.
[Disponível em https://covidtracker.bsg.ox.ac.uk/; acedido em 15/02/2021]
[12] Government of Canada: Community-based measures to mitigate the spread of coronavirus disease (COVID-19) in Canada. https://www.canada.ca/en/public-health/services/diseases/2019-novel-coronavirus-infection/health-professionals/public-health-measures-mitigate-covid-19.html
[13] SIGMA (Support for Improvement in Governance and Management).
Disponível em http://www.sigmaweb.org/publications/sigma-contributions-coronavirus-covid-19.htm; acedido em 16/02/2021].
[14] Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge: Diversidade genética do novo coronavírus SARS-CoV-2 (COVID-19) em Portugal. [Disponível em https://insaflu.insa.pt/covid19/ ; acedido em 17/02/2021].
[15] Public Health England: Investigation of novel SARS-COV-2 variant of Concern. PHE, 2021. [disponível em https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/959438/Technical_Briefing_VOC_SH_NJL2_SH2.pdfPublic; acedido em 10/02/2021].
[16] The Great Barrington declaration. [Disponível em https://gbdeclaration.org/; acedido em 17/02/2021].
[17] The John Snow memorandum. [Disponível em https://www.johnsnowmemo.com/#; acedido em 17/02/2021]
[18] Portugal. DGS e INSA: Monitorização da situação epidemiológica de COVID-19. Relatório n.º 11 Lisboa: Janeiro, 2021.
[19] Portugal. Direcção-Geral da Saúde: COVID-19, Relatório de situação, 16-02-2021.
[disponível em https://covid19.min-saude.pt/wp content/uploads/2021/02/351_DGS_boletim_20210216.pdf; acedido em 17/02/2021].
[20] Guterres, A : “This is the moment to step up for the vulnerable”; United Nations
https://www.un.org/en/un-coronavirus-communications-team/moment-step-vulnerable