Planeta-globo ou planeta-mundo?
Uma reflexão sobre que categoria devemos querer para dar sentido à globalização e ao que dela se espera em termos de acção no planeta
Fez a pandemia retroceder o caminho da humanidade para a globalização? Compreende-se o sentido da pergunta quando regressam as fronteiras fechadas e os limites à circulação, inibindo um certo modelo de globalização que estava em curso, com consequências em termos de exportações, dando voz às razões dos que se têm oposto à globalização económica e defendido a importância da resiliência e da autossuficiência das economias domésticas, tomando a proximidade das actividades de produção e consumo não como um obstáculo mas como um valor de desenvolvimento e prosperidade. Neste sentido, compreende-se que haja uma questão que a pandemia trouxe a um processo histórico em que nós, portugueses, gostamos de nos ver como percursores, com os feitos das descobertas e da circum-navegação.
Contudo, por outro lado, o combate à pandemia não poderia ser mais global. Sabemos que se a pandemia não for enfrentada à escala planetária em nenhuma parte será superada. Por isso, por exemplo, é fundamental a vacinação chegar também aos países com menos recursos financeiros, desde logo a África. A solidariedade estendida a todas as comunidades do planeta ser exigida mesmo por motivo egoísta é bem demonstrativo da natureza global da resposta à pandemia. E ainda assim a resposta tem sido insuficiente: à data de 22 de fevereiro, de acordo com declarações do Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres, 130 países não haviam recebido uma única vacina.
Quer isto dizer que a globalização não encontra na resposta à pandemia uma contrariedade, mas uma sua expressão muito concreta, ainda que diferente e que precisa de ser compreendida. A pandemia exige-nos uma aprofundada compreensão da globalização, não no sentido de que fosse necessário interrompê-la ou fazê-la regredir, mas de a pensar num quadro em que seja sustentável, uma mudança de paradigma que acomode aspectos que vão além do mercado global, da circulação global sem obstáculos, que tem sido o que está em quando se fala de globalização. Uma estratégia de optimização da eficiência da economia de mercado, oferta e procura igualmente disponíveis em todas as partes do planeta, maximizando as potencialidades de expansão da economia de mercado, globalização não só ao serviço da economia de mercado, mas alheia a tudo o que não se conforma a este esquema de compreensão da actividade humana no planeta, é profundamente contraditória com uma consciência planetária. Devia causar sobressalto a essa consciência perspectivas que encaram a pandemia como nada mais do que uma colossal externalidade negativa, um efeito colateral, um custo.
Ora, globalização aprofundada seria outra coisa evidentemente. Sem deixar de incluir dimensões de economia de mercado, tem sobretudo que ver com a própria condição da humanidade na sua relação com o planeta, ou seja, uma globalização à luz de uma ecologia planetária. Mas, isto exige repensá-la e imprimir-lhe outras preocupações além das da ordem do mercado. Exige recentrar as prioridades e não tomar como colateral o fundamental.
É interessante notar que a palavra ‘globo’, que está na raiz das palavras ‘global’ e ‘globalização’, acaba por reflectir muito exactamente este problema. É um conceito geométrico que indica não o planeta mas a sua forma, e uma forma que o abarca, como a definição de um perímetro. “Erdapfel”, o mais antigo globo terrestre conhecido, foi construído por Martinho da Boémia (Martin von Behaim) um cartógrafo e astrónomo de Nuremberga que, em grande parte da sua vida, esteve ao serviço de João II. No mesmo ano em que Colombo chegaria ao Novo Mundo, Martin já concebia o velho mundo dentro de um globo que o abarcava. Ver esse globo suscita fascínio, o mistério de contornos e relevos impressos na superfície curva, mas também uma vontade de domínio, de conhecimento e apropriação. Aliás, um globo e uma caveira, o domínio das naturezas do mundo e humana, foram peças de mobiliário de letrados, humanistas, polímatos, cientistas por séculos.
A mudança de paradigma que já era urgente antes da pandemia consiste no movimento simples nas ideias, mas difícil nas práticas e nas crenças, de compreender o planeta não como a totalidade contida, e a conter, num globo, mas como a totalidade aberta de um mundo.
Curiosamente, na língua francesa, fala-se de mundialização em vez de globalização. O conceito de mundo valoriza o planeta como nosso mundo, totalidade aberta em vez de fechada. Já não uma geometria, uma abstracção, mas uma indicação da nossa condição existencial, em que o humano vive lançado no mundo, entre realidades que lhe são exteriores e lhe dizem alguma coisa, com as quais se relaciona e convive. Portanto, urge reflectirmos sobre que categoria devemos querer para dar sentido à globalização e ao que dela se espera em termos de acção no planeta. E perceber que a escolha entre um planeta-globo e um planeta-mundo é uma escolha entre uma globalização unidimensional que, de forma mais ou menos expedita, externaliza tudo o que não lhe convém, numa missão de domínio, e uma globalização integradora que tem na ideia de mundo a sua expressão mais elegante, de vida conjunta.
Mas para que esta mudança possa ter lugar é preciso sondar fundo sobre uma representação do mundo como realidade ameaçadora imbuída na história ocidental e na cultura que a globalização tornou planetária. A vontade de domínio bebe muito desta percepção de ameaça e da resposta a ela, que encontramos representada, por exemplo, em “O Misantropo” de Pieter Bruegel, o Velho, pintura inscrita numa circunferência, que traz a legenda “porque o mundo é tão pérfido, por isso me enluto” e que retrata um circunspecto homem, de luto, a ser roubado por um pequeno ladrão que é também um globo terrestre. De costas viradas para o mundo, convencidos da sua falta de bondade, mais facilmente nos sentidos justificados a tratá-lo como mero recurso, meio para todas as extracções. Como o planeta, também as nossas crenças culturalmente mais arreigadas sobre o mundo precisam de uma rotação que nos proporcione uma relação melhor com o mundo nas suas diferentes configurações, mundo humano, mundo vivo, planeta inteiro. Para que a história da globalização continue, é preciso que comece a ser uma outra história, do planeta como mundo. Além de tudo o mais, a pandemia é uma oportunidade para o compreender.