Reestruturação empresarial e relançamento da economia
Medidas de apoio às empresas e ao plano europeu para a recuperação económica
É escusado dizer que a “crise COVID-19” causou prejuízos graves e irreparáveis na economia, atingindo com intensidade a esmagadora maioria das empresas.
Cabe, nesta altura, à UE não só guiar os Estados-membros na definição e no “sustento” das políticas macroeconómicas mas também disponibilizar instrumentos jurídicos para superar a crise instalada das empresas, designadamente de reestruturação. Em contrapartida, recai sobre os legisladores nacionais o dever de agir em linha com a legislação europeia.
É verdade que, em estado de necessidade, a harmonização deixa de ser um valor ou um fim em si mesmo. O Direito da UE continua, porém, a funcionar como referência, pois, salvo prova em contrário, ele é sempre a fonte das soluções mais apuradas em dado momento.
1. PLANO EUROPEU DE RECUPERAÇÃO ECONÓMICA
Uma das primeiras iniciativas pós-crise foi a Comunicação da Comissão 456, de 27.05.2020 – “A Hora da Europa: Reparar os Danos e Preparar o Futuro para a Próxima Geração”. Desenha-se aí, no essencial, um plano – o Plano Europeu de Recuperação Económica – assente na criação e no funcionamento de um novo instrumento de recuperação designado “Next Generation EU”.
A expectativa é a de disponibilizar financiamento aos Estados-membros por meio de subvenções e empréstimos no quadro dos seguintes três pilares: apoio prestado aos Estados-Membros e destinado ao investimento e às reformas para fazer face à crise; relançamento da economia da UE por meio de incentivos ao investimento privado; e aprender as lições da crise[1].
Mais recentemente, foi apresentada a Comunicação da Comissão 32, de 19.01.2021 – “O sistema económico e financeiro europeu: promover a abertura, a solidez e a resiliência”. Trata-se de uma estratégia que assenta (novamente) em três pilares: reforçar o papel internacional do euro; continuar a desenvolver as infraestruturas dos mercados financeiros da UE e reforçar a sua resiliência; continuar a promover a aplicação e o cumprimento uniformes das sanções da UE.
2. NOVA ESTRATÉGIA PARA AS PME EUROPEIAS
É sabido que as PME[2] representam 99% da totalidade das empresas da UE e são as mais atingidas pela crise COVID-19.
Alterado o quadro em que havia sido apresentada a Comunicação da Comissão 103, de 10.03.2020 – “Uma Estratégia para as PME com vista a uma Europa Sustentável e Digital”[3] – , tornou-se necessário rever a estratégia definida para as PME.
Surgiu, então, a Resolução do Parlamento Europeu 2131, de 16.12.2020, sobre uma nova estratégia para as PME europeias. Entre outras coisas, o Parlamento Europeu adverte para a necessidade de garantir a liquidez das PME e de reforçar as medidas de capitalização. Mais insta a Comissão a apoiar os Estados-Membros na transposição da Directiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20.06.2019 (Directiva sobre reestruturação e insolvência).
3. REESTRUTURAR AS PME PORTUGUESAS
A Directiva entrou em vigor ainda em 2019, portanto, antes da pandemia. Deverá ser transposta para os ordenamentos dos Estados-membros até 17.07.2021 mas alguns terão feito uso da possibilidade de extensão (pelo prazo máximo de um ano) do período de transposição. Tudo indica que o Estado Português foi um deles, confiando em que os instrumentos existentes são adequados.
Sendo embora numerosas as medidas de apoio às empresas constantes da legislação de emergência (abertura de linhas de crédito, moratórias, lay-off simplificado), elas não serão suficientes. É provável que, a certa altura, a maioria das PME não consiga cumprir as suas obrigações. A solução é renegociar o passivo.
De imediato se olha para a Lei n.º 75/2020, de 27.11., e para a criação, ad hoc, do PEVE[4]. O legislador não aproveitou sequer para ensaiar uma aplicação parcial da Directiva. É certo que, no caso de PME, a divisão em categorias e a possibilidade de imposição do plano a categorias discordantes não devem ser obrigatórias. Podendo, ainda assim, funcionar em alguns casos, muito se ganharia no plano da aprovação (há tantas maiorias quantas as categorias) e no plano da homologação do acordo (exige-se apenas igualdade intracategorias e entre categorias de grau igual)[5]. O maior reparo prende-se com o facto de o PEVE pressupor um acordo já fechado e não desempenhar, ele próprio, a função de propiciar / estimular a renegociação do passivo.
Para esse e outros efeitos, a melhor opção é, sem dúvida, o RERE. Não por acaso o RERE é o que mais se aproxima do tipo de instrumentos preconizado na Directiva[6].
4. AUMENTANDO A CONVERGÊNCIA
Não obstante a Directiva ainda não estar transposta em todos os Estados-membros[7], há já movimentos adicionais. Na Comunicação da Comissão 590, de 24.09.2020 – “Uma União dos Mercados de Capitais ao serviço das pessoas e das empresas – novo plano de acção” –, afirma-se que a divergência entre as leis da insolvência é um obstáculo estrutural ao investimento transfronteiriço e antecipa-se uma iniciativa, que pode ser legislativa ou não legislativa, a ter lugar no segundo trimestre de 2022, com o objectivo de atingir maior convergência no Direito da insolvência (sector não bancário). As áreas de interesse são as seguintes: os pressupostos de declaração de insolvência, incluindo a definição de insolvência e a delimitação dos sujeitos com legitimidade processual activa; as condições para as acções contra actos prejudiciais aos credores e os efeitos das acções de restituição; os deveres dos administradores no âmbito dos processos de insolvência e pré-insolvenciais; a posição dos credores garantidos no confronto com aos restantes credores (trabalhadores e fornecedores); a especialização dos tribunais e a formação dos juízes; localização dos bens sempre que relevante, em especial no contexto das acções contra actos prejudiciais aos credores.
Já houve um primeiro período de consulta pública em 2020 (sobre a oportunidade da intervenção) e decorre actualmente um segundo (sobre as possíveis áreas de interesse), até 26.03.2021.
[1] Destaca-se, no primeiro pilar, a criação do Mecanismo de Recuperação e Resiliência, destinado a apoiar os Estados-Membros, sob forma de subvenções e empréstimos, na realização de investimentos e reformas essenciais para uma recuperação sustentável, no âmbito do qual Portugal apresentou, em 15.10.2020, o Plano de Recuperação e Resiliência – Recuperar Portugal 2021-2026 – Plano preliminar. E destaca–se, no segundo pilar, o novo Instrumento de Apoio à Solvabilidade, vocacionado para mobilizar recursos privados para o apoio urgente às empresas que à partida seriam sãs mas se encontram em dificuldades.
[2] Incluem-se aqui as microempresas.
[3] Foi publicada exactamente um dia antes do alerta da OMS sobre a pandemia.
[4] Sobre esta Lei e o PEVE cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2021 (2.ª ed.), pp. 716-776.
[5] A divisão em categorias é pressuposto da imposição do plano a categorias discordantes. Cfr., neste sentido, Paulus / Dammann, European Preventive Restructuring – Article-by-Article Commentary, München-Oxford-Baden-Baden, Beck-Hart-Nomos, 2021, p. 156.
[6] Cfr., neste sentido, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, cit., pp. 600-603.
[7] Mas foi transposta já na Alemanha, através da SanInsFoG, em particular, da StaRUG, em vigor desde 1.01,2021.