A agricultura intensiva e superintensiva e os seus impactos em Portugal
INTRODUÇÃO
Numa tendência que se tem vindo a acentuar nos últimos 10 anos em Portugal, há cada vez mais casos de grandes extensões territoriais convertidas à agricultura intensiva ou superintensiva, aproveitando a disponibilidade de terra fértil e a estabilidade de fornecimento de água, garantida por zonas de regadio. Estas plantações definem-se mais concretamente pela opção por uma monocultura de alto rendimento com elevada densidade de ocupação do solo[1] e pela utilização intensa de agroquímicos – pesticidas e fertilizantes, para garantir a qualidade e quantidade da produção.
Historicamente, foi a emergência desta agricultura industrial baseada em monoculturas em grande escala (o “Green Deal” americano dos anos 40/50 do século passado) que permitiu ao mundo um aumento substancial na produção e uma queda nos preços dos alimentos, acabando com séculos de fome e abrindo caminho para um rápido desenvolvimento económico e social. No entanto, com cada vez mais terras a ser cultivadas, hoje reconhece-se que os ganhos de produção foram acompanhados por impactos ambientais negativos, colocando em risco o próprio futuro da agricultura, já que os métodos de cultivo intensivo pressionam os recursos naturais dos quais dependem.
De facto, a lista de efeitos negativos da agricultura intensiva parece estar a crescer: degradação do solo, salinização de áreas irrigadas, superextração e poluição das águas subterrâneas, resistência a pesticidas, erosão da biodiversidade, etc. A agricultura também tem causado danos ao meio ambiente por meio do desmatamento e da emissão de gases de efeito estufa ou outros poluentes atmosféricos.
Mas resta pouca terra para alimentar uma população mundial crescente (sem contar com as zonas de floresta, que devem ser protegidas), pelo que aumentar a produtividade das terras disponíveis continua a parecer a opção mais desejável.
Em suma, todos parecem estar de acordo que qualquer nova intensificação da produção agrícola deverá ser sustentável. Mas a questão permanece: serão esses dois objetivos alcançáveis em simultâneo?
PANORAMA NACIONAL
Em Portugal fala-se principalmente em três regiões onde a agricultura de grande escala e cariz empresarial mais impactou o território e população, seja pela sua dimensão ou inovação cultural, seja pelas repercussões da atividade agrícola a nível social e ambiental. Falamos da agricultura intensiva e superintensiva realizada (1) no perímetro de regadio do Alqueva (Empreendimento de Fins Múltiplos do Alqueva ou EMFA), em causa os novos olivais e amendoais; (2) no Perímetro do Regadio do Mira (PRM), nos concelhos de Odemira e Aljezur, com a aposta em estufas de frutos vermelhos, e por último da que está a ter lugar (3) no Barrocal Algarvio, aproveitando as especiais condições edafoclimáticas da região para a introdução da nova cultura do Abacate.
Os novos olivais superintensivos da zona do Alqueva (EMFA) contabilizavam em 2019 os 66.327 hectares e os Amendoais cobrem atualmente uma área de 11.448 hectares, com tendência para aumentar[2]. Embora a Oliveira seja uma cultura tradicional em Portugal, estas novas oliveiras contrastam muito com as antigas, veja-se o facto de só terem uma esperança média de produção de sensivelmente 20 anos, contra os mais de 300 das oliveiras tradicionais. Além disso as práticas adotadas nas explorações intensivas de Olivais tem vários efeitos ambientais indesejáveis já conhecidos. Um deles, divulgado mais recentemente, é a morte de milhares de pássaros (a Quercus estima o valor de mortes entre as 70.000 e as 100.000 aves protegidas[3]) devido à apanha noturna da azeitona.
No Sudoeste Alentejano, a agricultura intensiva de frutos vermelhos em estufas e estufins praticada em pleno Parque Natural, nos concelhos de Odemira e de Aljezur e dentro do Perímetro de Rega do Mira (PRM), já cobre de plástico uma área de terreno que se estimou em 2019 em 1600 ha (11% do PRM). A tendência é de crescimento, foi autorizado[4] recentemente um aumento de área coberta até aos 4800 ha (40% do PRM), ou seja três vezes mais área do que aquela que já existe atualmente, ameaçando colocar uma pressão explosiva em todas as estruturas e nos recursos existentes no território.
Por último, o caso do Ouro Verde Algarvio, a Pera Abacate, que é uma cultura com necessidades hídricas intensas (pelo que imediatamente se duvida da sua sustentabilidade na zona em que está inserida), que se adapta bem ao clima algarvio e está ali a ser introduzida e em franca expansão desde há cinco anos. Os agricultores arrancam antigos pomares para colocar os abacateiros, alterando a paisagem tradicional algarvia e criando maior pressão hídrica numa região já muito fustigada pela seca. Estima-se que a produção de abacate que ocupava 1500 hectares em 2019 poderá rapidamente chegar aos 2 mil hectares a muito breve trecho.
POSIÇÕES
As alterações climáticas previstas para o sudoeste da Península Ibérica apontam para uma subida da temperatura e para menor precipitação, o que leva à redução das disponibilidades hídricas com redução de caudais e menor capacidade de recarga dos aquíferos subterrâneos[5]. Para muitos, a aposta em culturas de grandes necessidades hídricas, que avolumam ainda mais as importantes exigências hídricas já presentes em qualquer cultura intensiva (por força da grande densidade de cultivo e das extensas áreas envolvidas) não deveria ser permitida ou deveria ser aceite apenas dentro de condicionantes restritos previamente definidos.
Além desta crítica genérica às práticas agrícolas industriais, sobre a utilização intensiva de água (caso dos amendoais do Alqueva, das estufas do Sudoeste e principalmente dos Abacates do Algarve) num país que a breve trecho irá lutar (já luta) contra a desertificação, também se levantam muitas outras questões, das quais salientamos as seguintes:
o perigo para a saúde pública, dado o potencial alergénico e carcinogénico do uso de fertilizantes e pesticidas, principalmente quando as propriedades são confinantes com núcleos urbanos (o caso vg. das povoações de Ervedal e Benavila, junto à barragem do Maranhão) e quando se praticam pulverizações aéreas como meio de tratamento fitossanitário das culturas. Neste caso, são muitas as vozes que propõem a obrigatoriedade de criação de faixas de segurança/proteção no mínimo de 500m, ao redor dos núcleos urbanos, impossibilitando ali o regime intensivo[6].
A quebra da biodiversidade dos habitats, devido às monoculturas em regime intensivo e aplicação de pesticidas. Em especial há casos em que as explorações intensivas estão a colocar em risco zonas de proteção especial (ZEP) da avifauna, objeto de projetos Life+ e também nesta área, existem usos agrícolas que sacrificam diretamente milhares de aves, como o caso das colheitas noturnas de azeitona nos olivais superintensivos;
a poluição do solo, do ar e água com agroquímicos e outros fertilizantes, aplicados intensiva e regularmente, comprometendo-se também desta forma a segurança alimentar e a saúde pública. Esta poluição da água e solo resultante da utilização de forma excessiva e não racional de fertilizantes azotados conduz ao aumento do teor de nitratos nas plantas e a um excesso de fertilizante no solo, degradando-o. Estes processos de degradação e/ou lixiviação do solo, provocam a contaminação dos lençóis freáticos e das águas superficiais. Existem vários exemplos de como esta prática tem consequência terríveis e por todos lembramos a emergência de uma “zona morta” no golfo do méxico.
As estufas na zona do Sudoeste, (fazendo lembrar os campos de Almeria, algo que ninguém deseja para o país) já cobrem largas extensões de terreno numa zona de Parque Natural, com indubitáveis efeitos ambientais que ainda se desconhecem pois estas plantações, na sua esmagadora maioria, não foram sujeitas a quaisquer estudos do Impacto Ambiental. Trata-se de uma omissão legislativa que está a ser muito aproveitada pelos produtores, pois a lei apenas exige AIA para propriedades entre os 50 e os 2000 hectares e não contempla o efeito cumulativo de várias parcelas com área inferior mas que, todas juntas, representam largas centenas de hectares submetidos ao mesmo tipo de exploração agrícola[7].
A contratação em condições muito pouco claras, principalmente no Alentejo, de milhares de trabalhadores emigrantes. Estes têm acorrido à região vivendo uma realidade de precariedade e baixos salários. Estima-se que estejam atualmente 10.000 emigrantes a trabalhar nas estufas do Sudoeste, o que implica também um esforço enorme de adaptação dos serviços públicos (saúde, educação, Seg. Social, justiça, etc…) nos Concelhos afetados. Não obstante a sobrecarga já existente, a recente RCM autorizou a instalação de mais “cidades” de contentores dentro das explorações agrícolas para albergar até 36.000 novos trabalhadores! A zona do Alqueva experiencia as mesmas dificuldades e realidades: tráfico de seres humanos, imigração ilegal, exploração de trabalhadores imigrantes e dificuldades em conseguir alojamento para milhares de imigrantes, o que leva a que muitos vivam em “condições indignas e infra-humanas”
A poluição causada pelas fábricas de tratamento e valorização dos resíduos resultantes da produção do azeite (vg extração de óleo de bagaço de azeitona). Esta atividade tem gerado enorme desconforto, as populações confinantes queixam-se do cheiro nauseabundo e da inexistência de regulamentação apropriada.
No outro extremo deste “diálogo” estão os produtores e o Governo. O crescimento da agricultura de grande escala no país tem sido, em grande parte, fruto de investimento externo[8], aproveitando as nossas boas condições edafoclimáticas, nomeadamente existência de áreas de regadio e boa qualidade do solo e clima nacionais. A aposta na captação do grande investimento internacional foi considerada o meio necessário para uma célere valorização do território e combate à desertificação populacional do interior, promovendo ainda o equilíbrio da balança comercial pelas exportações (a grande maioria destes produtos agrícolas é destinada a este fim) e rentabilizando megaprojetos públicos como o Alqueva.
Em paralelo, o fomento do regadio, nomeadamente através da expansão, reabilitação e modernização dos regadios existentes e da criação de novas áreas regadas, tem também sido uma prioridade, contribuindo para a adaptação do país às alterações climáticas, para o combate à desertificação e para a utilização mais eficiente dos recursos. Na realidade, a implementação dos novos sistemas hidroagrícolas nas zonas mais fragilizadas pelos efeitos das alterações climáticas como o baixo Alentejo, demonstrou ser uma importante medida para a adaptação e mitigação climática, incrementando a resiliência e robustez dos sistemas agrícolas e contribuindo também para a fixação das populações, em particular nas zonas mais afetadas pelo despovoamento. A produção agrícola em regadio tem ainda um papel de elevada importância no aprovisionamento e na segurança alimentar nacional, pois a produção nacional tem associado um menor transporte de produtos e, portanto, um menor impacto em termos de emissão de gases com efeito de estufa e consumo energético.
Na zona do Alqueva é ponto assente que o grande lago potenciou uma revolução económica na região. As culturas de regadio aumentaram a resiliência e a competitividade das explorações agrícolas: em geral permitiram multiplicar por seis o rendimento económico obtido por unidade de área e ainda reduzir a aleatoriedade climática.
Desta forma o regadio é, no geral, visto como um instrumento essencial para a criação de riqueza e de bem-estar, na medida em que contribui para o desenvolvimento socioeconómico sustentado das zonas rurais e para a fixação das populações.
CONCLUSÃO
Vivemos uma época em que é necessário encontrar respostas para os desafios colocados pelas alterações climáticas bem como pelas descobertas que se vão fazendo quanto às consequências nocivas de certas práticas agrícolas. A adequada harmonização entre a produtividade da agricultura intensiva e o ambiente é sem dúvida uma exigência que cada vez mais se faz sentir por parte da sociedade e uma garantia que qualquer processo de desenvolvimento não comprometerá o futuro.
Existem alguns métodos para alcançar a desejada produtividade sem necessariamente usar mais fertilizantes ou pesticidas.
Em primeiro lugar promover a opção por práticas agrícolas “mais verdes”, o que implica ter uma maior preocupação com a conservação dos solos, com o uso eficiente da água e energia, com a redução das emissões de poluentes atmosféricos, com a conservação da biodiversidade e a preservação dos ecossistemas. Em particular, no que toca às culturas de regadio e neste quadro sério de crise climática que enfrentamos e de escassez de água, o futuro passa necessariamente por adaptar o regadio à provável redução das afluências dos cursos de água às albufeiras, apostando no aumento da eficiência de rega e na redução da área regada com as culturas mais consumidoras.
Depois apostar na “Agricultura de precisão”, fazendo mais com os recursos existentes. A agricultura de precisão permite aos agricultores gerir melhor os recursos – como sementes e fertilizantes – usando-os em áreas agrícolas específicas com base no tipo de solo, níveis de fertilidade e outras características do local. Esta agricultura de precisão também pode envolver o uso de tecnologia avançada – incluindo GPS, ICT, radar e sensores – para aplicar quantidades variáveis de água, fertilizantes e pesticidas onde são mais necessários. Os exemplos incluem sensores de clorofila para controlar a aplicação de nitrogénio e sensores de humidade no solo ao redor das raízes, para detetar as necessidades hídricas da planta. Este tipo de precisão ajuda a melhorar a qualidade e quantidade de água disponível, eliminando as sobreposições e a aplicação excessiva de agroquímicos, e assim reduzindo o seu escoamento superficial e a lixiviação do solo.
E principalmente será necessário adaptar o mais rápido possível a legislação a estas novas realidades e os seus efeitos. É preciso regular a agricultura intensiva e algumas das atividades conexas com esta, zelando mais pelo território e suas gentes.
Deverá prever-se uma transição ecológica e energética para uma agricultura baseada nos princípios da agroecologia, adaptando-a aos objetivos e soluções do Pacto Ecológico Europeu para a neutralidade carbónica da UE até 2050, aos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas e às diretivas da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), aconselha a agricultura Biológica como sendo a alternativa mais óbvia para a agricultura intensiva industrializada[9] e propõe que se aposte na sustentabilidade das sua práticas bem como em técnicas agrícolas tradicionais, que ajudam a aumentar o suprimento de alimentos e a obter um nível mais alto de nutrientes nos alimentos produzidos (por exemplo, as tradicionais técnicas de semear culturas como cobertura para suprimir ervas daninhas e da rotação de culturas, a incluir leguminosas, para fixar o nitrogénio).
[1] São consideradas culturas intensivas todas as que são sujeitas a regime de regadio e que possuem mais de 200 árvores por hectare (ha), sendo qualificadas como superintensivas, as culturas onde o número de plantas seja superior a 1000 árvores por ha.
[2] Anuário Agrícola Alqueva 2019
[3] Quercus defende a suspensão da apanha noturna de azeitona.
[4] A autorização foi dada através da Resolução do Conselho de Ministros n.°179/2019 (RCM), de 24 de outubro de 2019, que estabeleceu um regime especial e transitório para o Aproveitamento Hidroagrícola do Mira.
[5] Esta preocupação com a utilização racional dos recursos hídricos antecipando cenários de conflito em caso de escassez de água, o que se antevê cada vez mais frequente num quadro de alterações climáticas evidentes, levou já o Parlamento (Resolução da Assembleia da República n.º 15/2019, de 5 de fevereiro, com origem num projeto de resolução do CDS-PP de 2018) a recomendar ao Governo que promova um estudo sobre a melhor forma de gestão e compatibilização dos diversos usos da água para o setor agrícola e pecuário em caso de escassez daquela, em particular nas áreas servidas pelo Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva. Veja-se a propósito também a notícia do Jornal Público de agosto de 2020.
[6] Vd O. Projeto de Resolução 2202/XIII do grupo Parlamentar do PCP, apresentado a 14/06/2019, que “Recomenda ao Governo o desenvolvimento de um regime de ordenamento e gestão das áreas de produção agrícola em regime intensivo e superintensivo” e dentro da mesma linha, o Projecto de Resolução n.º 194/XIV/1.ª do PAN, de 22 de setembro de 2020, e que Recomenda ao Governo que implemente respostas sociais e ambientais nas regiões mais afetadas pelas culturas agrícolas intensivas e superintensivas.
[7] Uma das medidas mais recentes das populações afetadas e descontentes com esta situação (organizadas como “Movimento Juntos pelo Sudoeste”) foi pedir à CCDR Alentejo que «imponha a Avaliação do Impacto Ambiental» dos projetos de agricultura intensiva, em estufas e não só, no Perímetro de Rega do Mira, dando entrada de um processo judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja (aproveitando assim o facto da lei dar possibilidade às CCDR de impor a AIA). Vd.; e também, a propósito de demais queixas encabeçadas por este Movimento, a Petição apresentada na Assembleia da República.
[8] Entre muitos outros exemplos: Alqueva e Sudoeste Alentejano