A questão da redução da semana de trabalho para quatro dias será uma das questões mais debatidas em 2023. De facto, trata-se de uma questão civilizacional não só com repercussões na vida dos trabalhadores mas em toda a economia, e é natural que, numa sociedade como a portuguesa, as opiniões divirjam.
As nossas preocupações surgem sobretudo quanto ao direito dos trabalhadores à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da atividade profissional com a vida familiar, conforme alínea b) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Vejamos.
A proposta do Governo prevê a redução de 40 horas para 36, 34 ou 32 horas semanais, o que, de acordo com a própria Sra. Ministra do Trabalho, permitirá “que num dia os trabalhadores façam mais horas do que atualmente e noutros menos.”[1] Ora, esta afirmação revela muito do que está em jogo, uma vez que essa possibilidade apontada pela Sra. Ministra é já uma realidade no nosso país, mormente por via do regime do banco de horas. Demonstra a experiência que este mecanismo funciona sobretudo em função das necessidades das entidades patronais em detrimento dos direitos dos trabalhadores, como o acima referido, mas também do direito a uma remuneração justa e ao repouso e aos lazeres, consagrados na CRP e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O banco de horas, nas palavras de Francisco Liberal Fernandes [2], acabou por demonstrar que “tem exclusivamente uma vertente empresarialista, na medida em que está previsto apenas para possibilitar ao empregador aumentar o tempo de trabalho para além do período normal de trabalho [(PNT[3])], não passando, por isso, de uma modalidade anómala de trabalho suplementar” (e, em regra, não remunerado).
Ainda, David Falcão e Sérgio Tenreiro chamam a atenção para o facto de que, se o disposto no n.º 2 do art. 209.º do CT for interpretado de forma literal – aos trabalhadores abrangidos por regime de horário de trabalho concentrado não pode ser simultaneamente aplicável o regime de adaptabilidade -, “nada impede a aplicação simultânea da adaptabilidade e banco de horas ou de horário concentrado e de banco de horas[,] o que pode acarretar que as horas diárias e semanais prestadas por trabalhador consubstanciem uma verdadeira escravatura.”[4]
Considerando que o banco de horas permite aumentar o PNT até 4 horas diárias e 60 horas semanais, tendo o acréscimo o limite de 200 horas por ano [5], a pergunta que nos surge é a seguinte: alguém duvida, ou exclui a hipótese, de que o recurso a mecanismos de flexibilização da duração e organização do tempo de trabalho – como o banco de horas – deixarão de ser utilizados pelas entidades patronais a partir do momento em que se aplique a semana de 4 dias? É que tais mecanismos são aplicados e explorados ao máximo actualmente na semana de 5 dias e 40 horas semanais. O que faz alguém acreditar em que as entidades patronais – para quem os atuais limites não são suficientes -, de repente e com mais «espaços em branco» por semana, deixarão de esticar o mais que conseguirem a prestação de trabalho?
Seguindo as propostas de redução para 36, 34 ou 32 horas semanais, temos que:
i) o trabalhador que passa a prestar 36 horas passará a prestar 9 horas por cada um dos 4 dias. De acordo com a Sra. Ministra do Trabalho, “as horas semanais podem ser “modeláveis”. O objetivo tem de ser uma base de adesão do próprio trabalhador. […] Mas sempre com acordo, a vontade do trabalhador.”[6]
Ora, em primeiro lugar, somos da opinião de que a igualdade entre as partes na relação juslaboral é uma falácia.[7] Segundo, esta solução em que o trabalhador presta 9h de trabalho diário não pode colher, porque além de ilegal – viola o limite máximo do PNT de 8h/dia, estabelecido no art. 203.º/1 CT –, constitui um retrocesso histórico[8] que afronta o espírito progressista da Constituição e de outros instrumentos legais internacionais. A consolidação das 9 horas diárias teria apenas como consequência, parece-nos, o aumento do PNT diário, independentemente de o limite legal ser de 8 horas – veja-se o sucedido com o próprio banco de horas, em que a revogação desse regime na sua modalidade individual (pela Lei n.º 93/2019, de 04-09) não impediu que, por via dos contratos coletivos celebrados entre as entidades patronais e os sindicatos/federações afetos à UGT, tal regime se tivesse implementado de forma geral no setor privado, passando a ser regra.
O legislador acabou por «mudar algo para não mudar nada», acabando, até, por agravar a situação dos trabalhadores abrangidos por tal regime.[9]
ii) Reduzindo a semana de trabalho para as 34 horas, o trabalhador prestará, se se dividir de forma igual essas horas pelos 4 dias, 8,5 horas. Ora, repete-se o que se disse quanto ao aumento do limite do PNT diário pela prática: ainda que seja ilegal, não deve – nem pode! – colher, se de facto quisermos salvaguardar os princípios constitucionais do trabalho, de histórica importância.
Nestas duas hipóteses – redução para 36 ou 34 horas -, e não tendo esperanças de que o regime do banco de horas vá ser revogado, as hipóteses para o patronato «compensar» a redução da semana de trabalho são inúmeras. Tomemos o caso da redução para as 36h, 9h/dia. Se se admitir a hipótese de, por via do banco de horas, prestar mais 1h (no mínimo!) em cada um desses dias, trabalhará 10h por dia e 40h nessa semana. Acresce que, como a própria Sra. Ministra do Trabalho afirmou, a prestação de trabalho pode ser maior nuns dias e menor noutros; ora, dificilmente a entidade patronal abdicará da prestação de trabalho por menos de 8h/dia, pelo que a tendência, parece-nos, será a de aumentar a jornada de trabalho. Em qualquer destes casos, estamos com Isabel Camarinha, que aponta que a “vantagem que resultaria de mais um dia de descanso é anulada, em parte, pela maior sobrecarga nos restantes dias.”[10] Refere a Secretária-Geral da CGTP-IN que deverá atender-se, ainda, ao tempo de deslocação para o – e do – local de trabalho e aos intervalos de refeição, factores entre os quais poderão anular a referida vantagem.
Outra hipótese é o aproveitamento do próprio dia de descanso semanal que se conquistará com a redução: o patronato, receamos, não deixará de olhar para esse dia como uma oportunidade para «compensar» a redução do PNT semanal – especialmente numa situação como a que atravessamos, em que o poder de compra dos trabalhadores e das suas famílias é cada vez mais diminuto. Ou seja, preocupa-nos as condições económicas e sociais vigentes, que poderão vir a ter um efeito contrário àquele que se pretende com a redução do horário semanal de trabalho: ao invés de se dar um passo na concretização de princípios constitucionais como os já aqui referidos, os trabalhadores poderão ser «aliciados» a trabalhar horas extraordinárias, tantas vezes pagas abaixo do valor convencionado em IRCTs – aliás, basta que o trabalhador, na hipótese de redução para 36h, labore 8h e não 9h, que passará a «dever» ao patrão 4h no final de uma semana, que poderá ter que «devolver» à empresa trabalhando no(s) seu(s) dia(s) de descanso.
iii) Apenas a redução do trabalho semanal para as 32 horas semanais respeitará o PNT diário de 8 horas. No entanto, para que, mais do que o PNT, a própria Constituição seja cumprida, qualquer redução do horário de trabalho não se pode traduzir numa redução de rendimentos dos trabalhadores e, não menos importante, deve ser acompanhada por medidas – legais e fiscalizadoras – que garantam que tal redução se traduza numa efetiva melhoria das condições de trabalho, e não, como apontámos, numa oportunidade para o poder patronal estender a jornada de trabalho ou evitar empregar trabalhadores, acabando por desvirtuar a medida, esvaziando-a da sua natureza progressista e humanista.
Cabe, em particular, às Advogadas e aos Advogados acompanhar esta questão e fazer tudo ao seu alcance para defender os direitos dos trabalhadores, que é dizer o progresso social, a Constituição, a Democracia.

[1] Ana Mendes Godinho, “Semana de 4 dias: Governo não afasta aumento da jornada diária, mas diz que pode variar de dia para dia”, in observador. pt, acedido em 23-11-2022.
[2] Citado por Paula Quintas e Hélder Quintas, in “Manual de Direito do Trabalho e de Processo do Trabalho”, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, outubro 2020, p. 122.
[3] O tempo de trabalho que o trabalhador se obriga a prestar, medido em horas por dia e por semana, cfr. art. 198.º do Código do Trabalho (CT).
[4] “Esta realidade ainda se torna mais perversa se se acrescer a eventual prestação de trabalho suplementar por motivo de força maior (artigos 204.º n.º 1 e 205.º n.º 2 [do CT])” – in “Lições de Direito do Trabalho”, 7.ª ed. revista e aumentada, Almedina, Coimbra, novembro 2019, p. 191.
[5] Cfr. n.º 2 do art. 208.º do CT.
[6] Artigo citado (nota 1).
[7] Por exemplo, Paula Quintas e Hélder Quintas referem-se ao contrato de trabalho como um “contrato de adesão, em que a proposta […] é unilateralmente apresentada e dificilmente será alterada” por vontade do trabalhador – op. cit. (nota 2), p. 133.
[8] A título de exemplo, consulte-se o vídeo “Luta pelas 8 horas – 1962 – 2002”, disponível em youtube.com (acedido em 20-12-2022). O próprio 1.º de Maio de 1886 teve como reivindicação principal as 8 horas diárias.
[9] Alguns exemplos do que ficou conhecido como o «banco de horas negativas»: “Trabalhadores da hotelaria obrigados a «compensar» as horas no futuro”; “O «banco de horas negativo» é uma finta vossa” – ambos em abrilabril.pt, acedidos em 23-12-2022; “FNAC inventa “banco de horas negativas”; “Despedimentos, corte de prémios, férias forçadas, banco de horas negativo, tudo serve ao Grupo Trofa Saúde”, ambos em cgtp.pt, acedidos em 23-12-2022.
[10] “Semana de 4 dias. Medida popular do Governo que não convence empresas”, in sol.sapo.pt, acedido em 25-12-2022.