O Impacto das Criptomoedas no Contexto do Sistema Financeiro e a sua Regulamentação
As criptomoedas são hoje, no essencial, um fenómeno que não foi ainda objeto de uma regulação própria no mundo do Direito.
I. As criptomoedas (“cryptocurrencies”, “cryptomonnaies”, “Cryptowährungen”, “criptomonete”), também por vezes designadas moedas virtuais ou cibermoedas, podem definir-se com um tipo de moeda emergente em suporte digital cuja emissão, titularidade e transmissão assenta numa tecnologia de registo criptográfico e descentralizada de dados digitais (“blockchain”), que é aceite no âmbito de uma comunidade virtual e é suscetível de desempenhar as funções monetárias (meio de troca, unidade de conta, reserva de valor).
II. As criptomoedas representam a mais recente etapa da história monetária – uma história multimilenar, aliás, sempre renovada e em permanente devir. Após a exclusividade da moeda física (notas de papel e moedas metálicas) durante séculos a fio, a hegemonia da moeda bancária (“bank money” ou “b-money”) desde meados do séc. XX, a emergência da moeda eletrónica (“electronic money” ou “e-money”) em plena viragem para o séc. XXI, eis que, no espaço de apenas uma década, assistimos à génese ou embrião de um novo tipo ou espécie de moeda – a moeda virtual (“virtual money” ou “v-money”).
III. A origem histórica das criptomoedas está indissoluvelmente ligada ao estudo seminal e pioneiro do enigmático Satoshi Nakamoto, intitulado “Bitcoin: A Peer-to Peer Electronic Cash System”, publicado em 31 de dezembro de 2008, que concetualizou um novo tipo de moeda exclusivamente assente numa rede direta de participantes (“peer-to-peer”) baseada numa nova tecnologia descentralizada e criptográfica de registo, tratamento e armazenamento eletrónico de dados que permite assegurar um sistema de emissão e circulação de moeda e de pagamentos sem necessidade da intervenção de intermediários, mormente bancos (“blockchain”).
O relevo económico desta nova espécie monetária é muito significativo, tendo as criptomoedas, no espaço de pouco mais de uma década, registado uma enorme difusão
IV. O relevo económico desta nova espécie monetária é muito significativo, tendo as criptomoedas, no espaço de pouco mais de uma década, registado uma enorme difusão. Em 1 de junho de 2021 (data em que escrevemos) a capitalização do mercado das criptomoedas era de aproximadamente 1 674 biliões de dólares, com mais de 5 400 tipos de criptomoedas em circulação e um volume diário de transações na ordem dos 236 biliões de dólares. A criptomoeda dominante é a “Bitcoin” (BTC), com mais de 18 milhões de unidades em circulação e representando cerca de 43% do total do mercado: relembre-se que esta moeda, que atingiu a paridade com o dólar apenas dois anos após a sua primeira emissão (2011), chegou já a atingir no corrente ano de 2021 o valor astronómico de 63 523 dólares por “bitcoin”. Outras criptomoedas com difusão e capitalização de mercado relevantes são a Ether (18,86%), Tether (3,78%), Cardano (3,34%), Binancecoin (3,27%), Dogeoin (2,57%), XRP (2,86%), USCoin (1,38%) e Polkadot (1,31%), representando todos os demais milhares de moedas em circulação cerca de 19% do mercado.
V. Desde o seu aparecimento, as criptomoedas tem sido o mote de apaixonadas discussões, que alternam entre a fascinação confessa e a crítica feroz. Para os seus admiradores, representam a “alvorada” de uma nova era jurídico-financeira e tecnológica (Don Tapscott): enquanto moeda privada independente dos Estados e dos bancos centrais e comerciais, ela permite assegurar as funções monetárias diretamente pelas próprias partes das transações económicas (“peer-to-peer”) sem necessidade da intermediação de terceiros, com ganhos de eficiência, rapidez, segurança, polivalência e privacidade. Para os seus detratores, pelo contrário, as criptomoedas são sinónimo de risco e infortúnio (Paul Krugman), sendo-lhe apontados os perigos da volatilidade, inconvertibilidade, anomia regulatória, potencial uso ilícito e impacto sistémico.
VI. As criptomoedas são hoje, no essencial, um fenómeno que não foi ainda objeto de uma regulação própria no mundo do Direito. A extrema novidade das moedas virtuais, a sua matriz tecnológico-computacional (dando origem a uma espécie de “criptês” exotérico para os quadros tradicionais dos juristas) e a controvérsia reinante em torno das suas vantagens e riscos tem conduzido a uma verdadeira encruzilhada regulatória ou “criptodilema” (Bert-Jaap Koops): se alguns defendem uma estratégia regulatória minimalista, assente num princípio de autonomia privada e de autorregulação, outros inversamente sustentam ser necessária a intervenção do legislador na matéria, subordinando as criptomoedas a um quadro legal de emissão, circulação e supervisão adequado.
VII. Qualquer que seja a estratégia regulatória que venha a vingar no futuro, afigura-se inequívoco a multiplicação, nos últimos anos, das intervenções de natureza legislativa, regulamentar e até jurisprudencial na matéria – dando origem a um mosaico regulatório assaz incipiente, fragmentário e inarticulado de “fontes” internacionais, europeias e nacionais.
VIII. Ao nível internacional ou comparado, assiste-se a uma profusão algo errática de entendimentos. Sirva de ilustração o caso dos Estados Unidos da América, onde a autoridade federal dos crimes financeiros (“Financial Crimes Enforcement Network” ou FinCen) qualificou as criptomoedas como um valor equivalente a moeda (“value”), a autoridade tributária (“Internal Revenue Service” ou IRS) como “propriedade” (“property”), e a autoridade de supervisão do mercado de capitais (“Securities Exchange Commission” ou SEC) como “valores mobiliários” (“securities”) sempre que tenham por função essencial o investimento e a captação de fundos.
IX. Ao nível da União Europeia, destacam-se as noções de moeda virtual contidas na Diretiva UE/2015/849, de 20 de maio (art. 3.º, 18], na versão dada pela Diretiva UE/2018/843, de 30 de maio), relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, e na Diretiva UE/2019/713, de 17 de abril, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não numerário (art. 2.º, d]). A jurisprudência europeia também já equiparou os pagamentos realizados em “bitcoins” e em divisas tradicionais para efeitos fiscais (Acórdão do TJUE de 22-X-2015 [Skatteverket v. David Hedqvist]). Mais recentemente, merece especial destaque a proposta de um Regulamento Relativo aos Mercados de Criptoativos de 2020: entre os objetivos desta proposta, encontram-se a promoção da inovação tecnológica, a preservação da estabilidade financeira e a proteção dos investidores dos riscos, bem assim como a segurança jurídica relativamente aos emitentes e aos prestadores de serviços de criptoativos (Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo aos mercados de criptoativos e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937, COM(2020) 593 final).
Se o Direito tem avançado lentamente, a realidade económica das criptomoedas não parou, trazendo assim novos fatores a ser tidos em conta na sua equação jurídica.
X. Enfim, ao nível de Portugal, são também escassas e de teor genericamente precaucionista as referências ao fenómeno das moedas virtuais. Entre elas, pode referir-se os arts. 2.º, ll), 112.º, 112.º-A e 169.º-A, ccc) da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, vulgarmente designada como Lei do Branqueamento de Capitais e Financiamento de Terrorismo (relativos à noção de ativo virtual e à supervisão das entidades prestadoras de serviços sobre moedas virtuais); os diversos comunicados da autoridade de supervisão do mercado bancário (v.g., “Esclarecimento do Banco de Portugal sobre Bitcoin” (2013), Carta Circular do BdP nº 011/2015/DPG, de 10 de março, etc.), da autoridade de supervisão do mercado financeiro (v.g., “Comunicado às Entidades Envolvidas no Lançamento de «Initial Coin Offerings» (ICOs) Relativo à Qualificação Jurídica dos Tokens” de 2018) e até da própria autoridade tributária (v.g., Processos nº 5717 e 14.763, por despachos respetivamente de 27/12/2016 e 28/1/2019).
XI. Sublinhe-se, aliás, que, se o Direito tem avançado lentamente, a realidade económica das criptomoedas não parou, trazendo assim novos fatores a ser tidos em conta na sua equação jurídica. Exemplos disso são as criptomoedas estáveis – uma modalidade especial de moeda virtual que incorpora mecanismos de estabilidade destinados a mitigar o típico problema da volatilidade criptomonetária (“maxime”, a projetada Libra do Facebook) – e as criptomoedas públicas – uma espécie de versão virtual da moeda física tradicional, emitida e garantida pelas próprias autoridades monetárias oficiais (“maxime”, o “Digital Currency/ Electronic Payment” (DCEP) lançado pela República Popular da China em 2021, que constitui uma espécie de “yuan digital” destinado a substituir a prazo o “yuan” físico).
XII. Uma derradeira nota final. Malgrado não tenham obtido uma consagração ou regulação expressa na Ordem Jurídica, as moedas virtuais são uma espécie monetária juridicamente relevante, colocando problemas aos mais variados ramos do Direito, desde o direito das obrigações e dos direitos reais ao direito comercial ou ao direito financeiro, passando pelo direito fiscal, direito penal ou direito internacional privado. Será de qualificar como compra e venda o negócio de aquisição cujo preço seja saldado em “bitcoins”? Será possível considerar as criptomoedas, que mais não são do que pedaços de informação digital (“strings of data”), como coisas suscetíveis de propriedade ou outros direitos dominiais (v.g., para efeitos de penhora, massas insolventes)? Devem os rendimentos das operações criptomonetários objeto de tributação em IRC, IRS ou IVA e, em caso afirmativo, a que título ou em que categorias? Atenta a sua natureza global, virtual e ubíqua, como determinar a lei aplicável ou a jurisdição competente às criptomoedas que circulam numa nuvem cibernáutica? São as criptomoedas com funções de financiamento (“investment tokens”) de qualificar como instrumento financeiro para efeitos do CVM? E as criptomoedas funções de consumo (“utility tokens”) devem ser objeto da tutela das leis do consumo? É possível a um sócio realizar a sua entrada na sociedade mediante uma prestação pecuniária em moeda virtual? Tais, apenas, algumas das dúvidas que, mais tarde ou mais cedo, o jurista será chamado a responder.